Os Dois Ramiros



Joca Ramiro e Ramiro Guedes: o jagunço e o radialista, respectivamente. Sou fã de carteirinha dos dois, mas vamos por partes.

Já faz um bom tempo que conheço Joca Ramiro. Foi na década de 90 que travei o primeiro contado com o chefão dos jagunços, temido no norte de Minas, sul da Bahia e Goiás. Lá, Joca Ramiro se tornou uma referência, ganhou fama e virou lenda.

Quem – nas Gerais, nunca ouviu contar pelo menos um causo envolvendo o grande chefe com seu cavalo branco – o grande chefe fazendo justiça pelas próprias mãos – o grande chefe temente a Deus – o grande chefe presenteando Riobaldo com um rifle – o grande chefe julgando Zé Bebelo – está mentindo.

E mente deslavadamente. Mire e veja: ou o cabra da peste tem o rabo preso com o bando do Hermógenes, ou está mancomunado com o Coisa-Ruim...

Enquanto rabiscava meu "Rurais", tive a sorte de reencontrar Joca Ramiro e, mais uma vez, fiquei muito impressionado com o maior chefe jagunço de todos os tempos. Me impressionei sobretudo com sua coragem, os causos sobre sua pessoa, seu sotaque sertanejo, os conflitos em que se envolveu nesse sertão de Deus (ou será do Diabo?).

De tudo que presenciei, contudo, o julgamento de Zé Bebelo me impressionou por demais da conta. Afinal, ficou claro para mim que Joca Ramiro foi mais que o chefe dos jagunços; foi, na verdade, o grande guerreiro, o líder sábio, justo e corajoso, quase um semideus.

Portanto, gostaria de partilhar com o ilustre leitor algumas passagens daquele que, ainda hoje, é considerado o mais importante julgamento da história do sertão. Sertão, aliás, que está em toda a parte, porque é universal e ontológico – ser-tão –, que fique claro.

Com a palavra, Joca Ramiro... Antes, todavia, convém esclarecer que Zé Bebelo tinha ligação com o governo de Minas e, portanto, era considerado inimigo nº 1 da jagunçagem. De maneira que, ao ser capturado pelo bando de Joca Ramiro, Bebelo – se vendo na iminência de perder o pescoço – exigiu um "julgamento correto e legal" que aconteceu na Fazenda Sempre-Verde, exatamente em frente à casa-grande.

Convém esclarecer ainda o seguinte: se, em vez do sertão mineiro, Zé Bebelo habitasse o sertão nordestino e, nas mesmas circunstâncias, caísse nas mãos do rei do cangaço, Lampião... Certamente, teria sido executado sumariamente, sem direito a qualquer tipo de julgamento. Isso mostra a superioridade moral de Joca Ramiro sobre Lampião.

Pois bem, com Bebelo rodeado de jagunços por todos os lados, sedentos de vingança, teve início o tão esperado julgamento. Nesse momento, o acusado sai-se com este comentário desconcertante: "Toda hora eu estou em julgamento".

Joca Ramiro, depois de conceder a palavra aos chefes e franqueá-la aos jagunços, acusa Bebelo de "desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei". Este rebate: "Velho é o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo...".

Qualquer semelhança com uma peça de teatro trágica não é mera coincidência. Na forma e na simbologia.

Joca Ramiro (em pé): "O senhor não é do sertão. Não é da terra..."

Zé Bebelo (sentado): "Sou do fogo? Sou do ar?..."

O tribunal prosseguiu grave e solene, permeado por uma retórica sui generis, extravagante e densa, com uma mistura de expressões populares e eruditas ao mesmo tempo, em pleno sertão...

Joca Ramiro, embasado na lei do sertão e de posse de um senso de justiça de causar inveja aos juízes do STF, procedeu à sentença final. Zé Bebelo estava livre, livre, mas teria que deixar o sertão imediatamente.

Julgar é fazer justiça em defesa sempre da vida. No entanto, após aquela decisão, o sertão jamais seria o mesmo!

Se o leitor quiser conhecer de perto a história de Joca Ramiro e, também, as consequências do julgamento de Zé Bebelo, vá ao endereço: Grande Sertão: Veredas. Com certeza, será muito bem-recebido.

(Na próxima semana falo sobre o outro Ramiro, o Guedes.)

(A. Zarfeg)


Autor: A. Zarfeg


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