A OUTRA CRISTINA



1

O chefe de vendas após se sentar e encarando-o:

- José Carlos, dá pra você consertar esse layout? É um pedido muito bom, já pra a nova diretoria.

Concorda, e o homem conduzindo-o no carro, deixa-o à portaria da fábrica.

Entrando, encaminha-se à seção, no primeiro andar. Com tudo assim parado, tem a sensação de estar em um cemitério. É difícil acreditar que a indústria com tantos operários ficaria desse jeito...

- Falida.

Escuta os próprios passos no cimento gasto do grande salão. Quanta vez cruzou-o, ao chegar e largar do trabalho?

- Cinco anos.

Quantas vezes Cristina – alta, morena, sorridente – também por aqui passou? Cristina... Que lhe despertou a paixão nascida por julgar que ela também o queria. Depois, temendo o ridículo, afastou-se. Contudo, restauram-lhe as lembranças. Cruzando o salão, sobe os degraus.

Pardais e andorinhas voam sobre as máquinas cobertas por plásticos. Fora, o sol banhando o trator, tira-lhe reflexos da pintura amarela.

Abre a porta, adentra.Segundo comentários, é bem provável que os novos donos logo ponham a fábrica a funcionar. Enquanto isso, o que fazer?

- Esperar...

Após ligar o ar-condicionado, senta-se à prancheta.

No birô ao lado, a colega sentava-se: o rosto fixo no trabalho. De repente, erguendo os olhos negros, parava-os em seu rosto que, emocionado, o sentia queimar. Hoje, concluie que ela simplesmente fitava-o. Ele é que, por desejá-la, julgava-a agindo diferente. Iludia-se.

Com as lembranças, trabalha.

2

Está com cinqüenta e seis anos. A cabeça praticamente branca. A testa com rugas funda. Preguinhas nos cantos dos olhos e vincos que repuxando os lábios, fazem com que o lábio superior avance sobre o outro e forme o biquinho ridículo.

- Um velho.

O desabafo ante a realidade exposta no espelho sobre a pia, onde lava o estojo. Depois, empurrando a meia-porta, entra na salinha.

Ao lado, encontra-se a mulher, junto ao fogão, esperando que a água ferva. Grande, morena, cheia de corpo. Onde está a moça que despertava atenção, principalmente, nos homens? Com a idade, engordou. Metaforseou-se. Contudo, ele também se encontra outro: gordo, calvo, mais calado e, o que julga pior: sem mais sonhar. Apenas, limita-se a viver.

Hoje, de madrugada, assistindo o filme antigo, vendo os atores jovens, bonitos, de repente, veio-lhe a conclusão de como tudo é transitório na vida...

Esses artistas ainda viveriam? E se, como se encontrariam? Deformados pelo tempo, esquecidos. Talvez, procurando força para encarar o presente amargo. Para que a beleza, o dinheiro, se tudo se esvai? E o filme terminou com o clássico beijo do casal romântico.

- Vem dormir, homem. Desliga essa televisão!

- Já vou.

Depois, deitado, insone, ficou refletindo. O que realizara em sua vida? Nunca passara de um operário. Logo, o dia nasceria e enfrentaria-o trabalhando, para regressar à noite. Tristonho, cansado. Vida apagada. Se pelo menos ainda mantivesse a ilusão de que Cristina se interessava por ele... Durante meses alimentou o sonho da conquista. A colega exercia-lhe forte atração, bastava que chegasse à seção, para que ele se sentisse possuído por uma sensação de bem-estar, que o fazia com disfarce, observá-la. E via o rosto com as graciosas covinhas ao sorrir, os cabelos negros, luzidios, longos. Os braços e as pernas também compridos, e ouvia a voz meio-rouca, contudo, sensual...

Ela se sabia analisada, tanto que, numa manhã, indagou à colega, sentada no birô atrás:

- Neide, você sabe quando está sendo "paquerada?".

Ele então sentiu o rosto queimar e envergonhado, conservou uma atenção exagerada ao que fazia. Ansioso, esperou a resposta de Neide, que logo respondeu:

- Claro que sei Cris: o enxerido não desgruda os olhos da gente, como se fosse um sapo hipnotizando uma mariposa...

Mesmo cabisbaixo, sabia que com discrição, as moças, lhe acompanham a reação. Contudo, se fitava Cristina, era porque quando menos esperava se deparava com ela fitando-o... Ou enganava-se, por desejá-la?

3

- Já notou Cris? Seu José Carlos não tira os olhos de você...

Então, a morena sorrindo:

- Já, Neide. Mas, até que ele não mais me "paquerou". O que, aliás, acho muito bom, porque não gosto de homem baixo, e nem de "coroa". Sim: estou de novo amor. É um "gato": altão, moreno e bem forte!

Alegre, gargalha. Cruzam o salão com máquinas e trabalhadores que empurram carrinhos cheios de caixas, ou que, próximos às impressoras, fiscalizam a descida das caixas, nas esteiras.

Lá fora, a noite cobre o terreno em volta do galpão. Próximo, acha-se o muro alto que limita o domínio da indústria com a avenida, por onde transitam os coletivos lotados, de luzes acesas. As moças são percebidas pelos homens. E, o que é negro, alto, voltando-se para o colega ao lado:

- Vê, que morenaço!

Então, o outro, um brancoso, gordo, baixote, sorrindo:

-Meu camarada, eu daria o meu salário todinho por uma noitada com essa morena!

Gargalham. Elas distanciam-se.

As operárias também conversam despeitadas. E a que é pequena, envelhecida:

-Só querem ser"a caçola de Odete!".

Junto, a loura magra, feiosa:

- Vai ver, fazem pior do que as da "Pracinha"... Umas metidas!

Ante a aproximação do encarregado de turma, a velhota alerta:

- Não pára a contagem, que o "cabuloso" tá vindo.

Agora, após marcarem os cartões, elas ganham à rua.

- Até amanhã, Neide.

- Até, Cris.

Separam-se. De repente, o assovio. Reconhecendo seu autor, a morena pára, esperando-o. E o sujeito alto, forte, se encaminha ao seu encontro. Nervosa, o acolhe sorrindo.

- Tudo bem, amor?

- Tudo bem, Adeildo.

Aí, as mãos se procuram.

4

- O senhor não sabia? Ela é "garota-de-esquemas". Não vê o jeitinho dela? Agora mesmo, tá namorando o cara novato, da mecânica. Um fortão.

- Namorando?

- É modo de falar, que puta não namora, puta transa!

Perplexo com a revelação, José Carlos bebe, apressado. Jamais poderia imaginar que Cristina tivesse outra face...

O colega detalha-se:

- O carinho que foi o "primeiro", me contou... Conheço ela de "outros carnavais".

José Carlos baixando a voz:

- Acho lamentável, Pedro: Cristina é nova, bonita, inteligente... Poderia ser gente. Mas, ninguém tem nada com a vida alheia.

Busca então desviar o assunto:

- Peço outra cerveja?

- Peça, seu José, e mais um pratinho com queijo.

Acenando com a mão, José Carlos chama o garçom, enquanto pensa na colega dos sonhos e na outra, que pertence ao mundo... Defronte, Pedro cochila bêbedo.

O garçom chegando:

- Diga aí.

- Mais uma cerveja e um pratinho com queijo.

Apressado, o garçom ausenta-se. Pensativo José Carlos bebe, sentindo um grande vazio, no peito.

5

Sua mulher:

- Que Deus lhe acompanhe, José.

Abrindo o portão, ele desce a rua ladeirada. Novo dia de trabalho. Ultimamente, sente-se cansado dessa vida rotineira, medíocre. Afasta-se. De repente, a observação: as pernas estão menores, e os braços estão mais grossos? Metaforizamos-nos com a idade. O tempo cobra-nos um preço elevado pela existência.

Chega. Bate o cartão. Adiante, Cristina caminha. Os cabelos brilhando a luz do sol. Passando, desperta a atenção dos operários, que a seguem com os olhos do desejo. José Carlos acompanha-lhe os movimentos graciosos e, sem se conter, murmura:

- Ah, Cristina...


Autor: Paulo Valença


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