FILA



 

FILAS

 

Fila do INSS:  Velhos, doentes, aflitos por todos os males imagináveis.

A senhora à minha frente queixa-se:

- “Duas horas esperando e esses incompetentes não atendem!”

A reclamação ecoa entre outras pessoas atrás de mim

- “ É verdade! Falta de respeito, submeter a gente a esta humilhação!

O comentário generaliza-se; é uma reclamação justa: ficar numa fila por duas horas – ou por meia hora que seja – é um sacrifício até para quem está bem; imagine para alguém doente.

É sempre assim: comenta-se o desleixo, a demora, a falta de cuidados, o tratamento desumano; todos concordam; muitos reclamam; alguns sugerem pôr o prédio abaixo, ou tocar fogo nos móveis e nos papéis.

A maioria olha, inexpressiva, sem se manifestar. Sabem que levantar a voz é desacato e pode dar vexame – ou até cadeia.

Assim, pouco depois o assunto morre. A conversa se dispersa, se fragmenta.

 O velhinho atrás de mim  consulta-me como se eu fosse um médico: conta-me de suas dores nas costas, os remédios receitados pelos médicos, as ervas aconselhadas  pelos vizinhos, os passes espíritas sugeridos pelo jornaleiro, os exercícios.

Quer que eu veja e passe a mão, que sinta, que prove. Difícil sair desta – penso.

Dois lugares atrás, é uma senhora que se queixa; relaciona um sem número de doenças, de sintomas, de curas inúteis. 

Diz que tudo começou quando a única filha a deixou, quatro anos atrás, para ir assistir ao Carnaval no Rio – ou seria em Salvador? – Não se lembra mais direito, não. Enfim  ela nunca mais voltou. Agora está sozinha, sente-se abandonada, está muito doente.

 

É muita dor, muito sofrimento;  todos ficam mais tristes, mais velhos, mais doentes, mais desesperados.

Porque a simples consciência de que a dor existe, que está aí, à espreita, pronta para atacar,  multiplica-a, como a sombra chinesa do dragão na parede.

 

Pergunto-me o que poderia fazer , em favor de uma fila dessas, alguém poderoso e de boa vontade; mas estas duas qualidades nunca andam juntas, parece até que se detestam. 

Nunca vi um poderoso usar de compaixão.

O carinho e a boa vontade vêm só dos coitados.

 

E assim, sem saber de onde, me aparece de repente  um anjo – acredito eu, que seja um anjo

É alguém vestido de azul, que desliza suavemente entre nós, sorrindo, trazendo um sopro de paz.

 

O corredor escuro que abriga nossa fila ilumina-se, acende-se com uma luz diferente.

Alguém conseguiu – não imagino como - pintá-lo, sem que percebêssemos, em dois minutos. E sem fazer nenhuma sujeira.

 

O chão não é mais de azulejos gastos, produto de demolição.

É elástico, emborrachado, agradável de pisar e até de olhar.

 

Janelas se abrem, em lugar das lúgubres luminárias desta antiga cadeia, sobre um jardim florido.

 

Raios mornos de sol filtram e se espalham, saudando, abraçando, acarinhando cada um de nós.

 

Surgem, não sei de onde,  assentos confortáveis, estofados, acolhedores, aptos para abrigar ossos velhos, combalidos, doentes como os nossos.

 

Um perfume suave espalha-se no ar, uma melodia agradável acaricia nossos ouvidos.

 

Ficaria para sempre aqui, em lugar do abrigo úmido em que vivo.

 

Penso de novo; se não morri, este é um milagre, um paraíso; é isso, isso mesmo! O Paraíso!

 

Não, não! A fila é a mesma, os pobres são os mesmos, tudo parece mudado, mas tudo é igual.

 

Deve ter sido obra de algum político, que tenta a reeleição  e decidiu investir algum dinheiro em coreografia.  Tudo o que está aí não é tão caro; gasta-se muito mais num aeroporto, ou no Congresso,

Este contexto  não pode ser de verdade.Com certeza é cenário de televisão; tudo papel machê, plástico, acrílico. Quem encostar nele, derruba-o. Se espirrar ou tossir, vai tudo para o chão...

 

Mas não dá tempo para juntar os pensamentos, espalhados no meio de tantas novidades: uma moça sorridente, paciente e afetuosa chama os pacientes pelo nome, acomoda-os em  cadeiras de rodas que empurra pelo longo corredor.

Músculos enrijecidos se distendem,  rostos crispados pela dor abrem-se em tímidos sorrisos;. ouvem-se sussurrar tênues, incrédulos agradecimentos.

 

Agora já estou lendo o jornal de amanhã, que chega aqui em cima, nestas alturas, por entrega especial;antes de ser distribuído lá em baixo.

 

O jornal diz: 

Ontem de manhã , devido a uma inexplicável fuga de gás, vinte pessoas que esperavam na fila do Posto Avançado do INSS, perderam a vida tragicamente.

O Secretário rejeitou vigorosamente as acusações de desleixo, sustentando tratar-se de mera coincidência -  pois no mês passado dez aposentados morreram em circunstâncias iguais - mas iniciou uma investigação, que deverá ser concluída dentro de seis meses no máximo e cujos resultados serão trazidos a público assim que for possível.

 

No fim da notícia,  uma pequena nota pessoal do repórter: a morte deve ter chegado desapercebida. Todas as pessoas traziam no rosto uma expressão tranqüila e sossegada..

 

Sonhei? Ou já cheguei mesmo do lado de cá ...ou de lá? Sei lá!

 

 


Autor: Romano Dazzi


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