A CONFISSÃO



 

 

A CONFISSÃO

 

A igreja do Divino Salvador, no Bairro Santiago, estava mergulhada na penumbra.

Dom Henrique refletia, ajoelhado num canto de um daqueles incômodos bancos compridos de madeira, quase no fundo da ampla nave.

Era um padre dominicano de seus 40 anos, um homem forte, alto, com peso pouco acima do padrão, que administrava com entusiasmo a “sua” igreja.

Poucas luzes trêmulas tentavam inutilmente espantar a escuridão,

As estatuetas dos Santos, postada nos nichos próximos ao altar, vigiavam o espaço vazio; tinham uma visão privilegiada da igreja e a abraçavam com seu olhar doce.

O padre tinha adquirido, desde o seminário, o habito salutar da meditação diária.

Comportado e metódico, parava no fim de cada tarde, naquele único momento dele, inteiramente dele e se entregava ao prazer de mergulhar numa espécie de lagoa, em que lavava carinhosamente seus pensamentos e suas emoções.

Eram quinze, vinte minutos, não mais.

Depois, atirava-se à organização do programa do dia seguinte.

Suas atividades mantinham-no ocupado o dia inteiro: aulas de religião, de violão, de canto, de carpintaria, de mecânica, a pequenos grupos de estudantes irrequietos, que iam e vinham, nunca conseguindo chegar ao fim de um curso completo, mas aprendendo sempre alguma coisa a mais.

Naquela tarde, porém, ele não se sentia tranqüilo.

Uma aflição, uma espécie de premonição, alertava-o para algo diferente, que poderia acontecer de um momento para outro.

Ele não conseguia atinar o que era, mas não se sentia em paz.

 

Ao cabo de alguns minutos, puxou um profundo suspiro, vindo do fundo da alma, persignou-se, levantou-se , encaminhando-se para o altar.

Tinha que apagar as velas votivas e desligar a luz.

Depois iria devorar rapidamente o seu jantar frugal, sozinho, como sempre, num canto do salão da casa paroquial.

Aquela sensação de algo errado caminhava junto com ele, como uma sombra; não podia vê-la, mas a percebia claramente.

Foi aí, ao passar diante do confessionário, que percebeu uma sombra – esta sim, de verdade - destacando-se da parede e deslizando silenciosamente até ele.

Aos poucos, o padre conseguiu definir os contornos; era um homem de uns 35 anos talvez, franzino, de gestos rápidos e nervosos, bem mais baixo que ele; parecia aflito e precisando de ajuda.

Dom Henrique esqueceu todos os seus pensamentos anteriores e ficou feliz por ter encontrado a razão – qualquer que fosse – do seu mal estar. 

Concentrou-se no homenzinho, como se pudesse  analisá-lo na penumbra da igreja, descobrir mais sobre o que lhe andava na alma do que, na verdade, sobre a sua fisionomia.   

Antes que o homem pudesse abrir a boca, o Padre fê-lo sentar e relaxar.

- “Qualquer que seja o seu problema, meu irmão, eu estou com você e Deus está conosco. Somos três para carregar o seu fardo, agora.”

 “Acalme-se, respire fundo, sente aqui, descanse; fale só quando se sentir pronto; eu vou esperar; tenho todo o tempo do mundo. Prometo-lhe que não vou interferir, não vou abrir a boca.”

- “Obrigado, padre” – disse por fim o homenzinho; agora dava para perceber melhor o seu estado de terror, de pânico, agitando sua respiração e suas palavras– “mas receio que não teremos muito tempo; a esta hora já devem estar procurando por mim; eles logo chegarão aqui.... “

- “Esta é a casa do Senhor, meu irmão, e você procurou a sua proteção. Eu estou aqui para defendê-lo. Tente ficar tranqüilo. Tenha fé.  Tudo vai se resolver pelo melhor.”

Não era a primeira vez que Padre Henrique enfrentava uma situação como aquela.

Ele sempre evitava a expressão “meu filho”, que incomodava e afastava os fiéis; tinha sempre em mente que todos os homens, de qualquer idade e religião, eram  bem vindos; não existiam pais e filhos, cunhados e tios; eram irmãos, todos irmãos – e ele se sentia bem ao oferecer e receber tal tratamento.

- Quero me confessar – murmurou o homem, depois de alguns minutos.

Entraram no confessionário, Dom Henrique abriu a janelinha, benzeu-se e fez o sinal da cruz no coitado; vista a urgência do caso, resolveu passar por cima das formulas, das frases feitas; cortou as perguntas iniciais de costume – há quanto tempo não se confessa, vem cumprindo fielmente os deveres de um bom cristão... – e voou aos “finalmente”:

-“De que se trata meu irmão? Pode abrir o coração sem receios; estou aqui para escutá-lo.”

A resposta ecoou como uma bomba: - “Acabei de matar uma moça, Padre!”.

Agora, melhor acostumado à fraca luz que vinha do altar, o Padre percebia o semblante agressivo do homem; seu desespero era genuíno, mas expressava ao mesmo tempo uma raiva, um ódio, que não combinavam com o que ele dizia.

-“Mas tem certeza? Ela está morta?”

-“Sim,, tenho certeza, Padre. Morta!”

-“Mas como foi? Conte-me, diga-me!”

-“ Eu a assaltei, agora há pouco,  na rua de cima, no jardim atrás da igreja; ela vinha depressa, quase correndo, fugindo da escuridão – ou talvez de um mau pressentimento... "

-“E o que aconteceu?”

-“Mandei que ela me desse a bolsa; ela recusou-se, tentou reagir, quis correr e eu...eu perdi a razão... e comecei a bater, bater, bater, de olhos e punhos fechados... ela caiu, e eu ainda insisti. Alguém estava se aproximando; fugi.

Estava ofegante, confuso.

Padre Henrique ainda tentou argumentar, relevar, desculpar:

-“Foi um acidente, não é?, Ela correu, tropeçou, bateu a cabeça.”

-“Não!” – foi a resposta seca, que não deixava dúvidas

-“Foi sem querer?” – e rezava para que encontrar uma justificação.

-“Não, não, não! O senhor não entende, padre? Eu a matei. Eu a vi morrer. Nunca mais vou esquecer o seu rosto. Nunca!”

Agora o homem estava caindo em um choro convulso, liberatório. 

Não articulava mais.

Padre Henrique resolveu parar de inquirir.

Nesse momento, ouviu uns golpes fortes na porta principal.

Pareciam desferidos com uma barra de ferro.

Vozes confusas acompanharam as batidas: “Ele está aqui! Ele está aqui!”

O vozerio aumentava.  Pessoas batiam repetidamente, gritavam, xingavam...

O Padre fez um sinal ao homem para que não se mexesse.

Foi com passo decidido até a porta e liberou os ferrolhos, abrindo uma fresta.

“O que foi? O que querem aqui? Esta é a casa do Senhor! Respeitem-na!

Vão embora! Vão fazer algazarra e confusão em outro lugar! Aqui, não!”

As pessoas – seriam uns dez homens e duas mulheres – não arredavam pé.

- “Estamos caçando um assassino, que acabou de matar uma mocinha e fugiu na direção da igreja. Ele não escapa! Vamos acabar com ele!. Se não estiver aqui dentro, deve estar nos arredores!”.

- “Então, procurem-no em outro lugar!” - encerrou o Padre, de maneira incisiva, que não admitia réplicas; e com esforço, fechou a porta com os ferrolhos. 

Mas o pior ainda estava por vir.

Ao voltar, recebeu do homenzinho a carteira, roubada da vítima.    

Padre Henrique olhou lentamente os documentos e empalideceu; sentiu que as forças lhe faltavam e teve que se apoiar num dos bancos.

A vítima era sua irmã, Beatriz;  vinte e poucos anos, estudante, morava numa república no bairro e visitava o irmão uma ou duas vezes por mês. 

O Padre sentiu primeiro um golpe no peito. Depois, uma onda de calor no rosto, um líquido amargo, ácido, subindo incontrolavelmente do estômago,  queimando-lhe a garganta, enchendo-lhe a boca, e transformando-se em um violento acesso de ânsia, incontrolável..

O peito contraia-se e parecia estourar; lágrimas encheram-lhe os olhos e as batidas fortes, aceleradas do coração ecoavam-lhe nas têmporas.

Sentou-se – ou afrouxou-se, como um balão vazio, sobre o banco e ficou imóvel.

O homenzinho não entendeu essa reação.

Ficou um tempo esperando, mesmo porque havia percebido que não tinha saída.

Só estava pensando, naturalmente, na própria pele.

.......................

Passou mais de meia hora, ante que, já refeito, superado o desespero, mas profundamente entristecido, o Padre começasse a pensar nas alternativas que se lhe apresentavam.

O homenzinho tinha admitido o crime, em confissão. 

Portanto este segredo deveria ser guardado a sete chaves. Sob nenhuma circunstância poderia ser traído.

Mas fora um homicídio. Premeditado. Sem atenuantes. Sem desculpas. Sem perdão.  E a vítima, fora sua irmã, a única pessoa da família que ainda tinha no mundo. Vinte e dois anos. Uma vida pela frente. Tudo acabado, sob a raiva incontrolada de um assassino.   Teve ímpetos de chamar as pessoas, de gritar que viessem executar a vingança, como um anjo justiceiro.

Mas sua consciência reagiu. Uma vida toda passada estudando, aprendendo, meditando e refletindo, trouxe-o de volta a uma realidade maior: os ensinamentos recebidos falaram mais alto. Ele curvou a cabeça; estava dez anos mais velho.

Mais uma vez, liberou um suspiro profundo, que pareceu levar uma parte de sua amargura.

Ainda no confessionário, murmurou, com a voz firme: “Ego te absolvo. In nomine Patris, et Filii et Spiritus Sancti, Amen”. Uma absolvição custosa, difícil, demorada e repensada; mas plena, consciente..

Pediu-lhe que se apresentasse à polícia espontaneamente, para que a justiça pudesse julgá-lo e que aceitasse com humildade a condenação que certamente viria. Mas ele mesmo não acreditava que isso seria possível. Era pedir demais.

 

Levou o homenzinho para comer alguma coisa; sentado diante dele, no canto do salão da casa canônica, ficou a observá-lo, enquanto o outro devorava tudo o que havia pela frente. Calculou que seriam uns três dias de fome...

Depois lhe explicou que nada mais poderia fazer.

Deu-lhe algum dinheiro, recomendou-lhe prudência e, passado mais algum tempo, abriu-lhe a porta da igreja. Ninguém na rua. Podia sair.

- “Adeus. Que Deus o ilumine e o acompanhe, meu irmão!”

O homem afastou-se. Dom Henrique teve a impressão que cambaleava.

De fato, poucos metros adiante, ele levantou os braços, como procurando um apoio, uma ajuda e caiu no chão, como um pesado pacote de trapos.

Um enfarte – declararam os médicos.

Pensou naquele breve momento de dúvida, em que estivera tentado a  entregar o desconhecido à vingança daquele  grupo exaltado, dando-lhe  um destino tão cruel como o da sua irmã.  

Levantou os olhos, a pedir uma resposta, uma confirmação.

E sentiu-a imediatamente, com uma paz imensa, descendo ao seu coração.

Sentiu que a sua irmã, também, estava nos braços do Senhor.

Às vezes o caminho mais difícil é o único correto.

Pela terceira vez, naquela noite, puxou um suspiro profundo; e foi enfrentar, lento, pensativo, mas decidido, as suas tarefas seguintes... 


Autor: Romano Dazzi


Artigos Relacionados


Soneto Da Primeira Estrela

Eternos Aprendizes

Avis Rara

A Sina De Ser Mulher

Raciocínio De Criança

Um Caso De Amor

Esmola De Natal