TUDO RIGOROSAMENTE VERDADEIRO



TUDO  RIGOROSAMENTE  VERDADEIRO

                                                                   

Chamava-se Margarida

Quando a conheci, tinha 20 anos.

Moça normal, estudante normal.

Um pouco mais loira, mais alta, mais bonita que o normal. 

Mas apenas um pouco; nada de excepcional. 

Já estava ralando na faculdade, depois de um fundamental sofrível e de um médio acima da média. 

Cursava jornalismo.

Mas queria “fazer” jornalismo; jornalismo de verdade; de qualidade; de vanguarda.

Queria ver, observar , conhecer e conviver com pessoas, famílias, Entender e decifrar os segredos profundos dos grupos, organizações; desvendar os mistérios das corporações; e quem sabe, da sociedade, do mundo. Tinha sede de fatos, de acontecimentos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               Depois poderia escrever sobre qualquer coisa e não faltaria assunto; o preceito é correto: escrever é apenas a última etapa de uma longa trilha, acidentada e difícil..

Como “foca” no jornal da Cidade, deram-lhe um colega horrível e uma pauta ótima: acontecimentos sociais.

Começou freqüentando qualquer evento que aparecesse, quase sempre sozinha; o colega, ausente, sumido.

Ia a reuniões, almoços, jantares, coquetéis, inaugurações e encerramentos: onde davam um prêmio, uma medalha, um diploma, Margarida estava na primeira fila, com caderninho, câmera digital, sorriso e boa disposição.

Conversava longamente com as pessoas.

O que ela estava vendo ou escutando era sempre a coisa mais importante do mundo, o essencial, diante do qual todo o resto parava esperando a vez.

Não tinha pressa, não perdia a paciência, não esquecia em casa o bom humor, o entusiasmo, a alegria de viver. 

Anotava tudo, com aquela letra fininha, cerrada, regular, quase sem expressão.

Quando alguém brigava com ela, só deixava transparecer uma vaga expressão de... não era deboche; não, nem sarcasmo; nem ironia... como poderia explicar.... deixa-me ver.....era como se dissesse, com seu melhor sorriso:

- “Deixa estar, jacaré! A lagoa há de secar! Algum dia, cedo ou tarde, qualquer lagoa, por muito grande ou funda que seja, acaba secando...”

 

Assim, devagar, devagar, ficou sabendo de tantas coisas, de tantos podres, de tantas fofocas e de tantas verdades, que daria para escrever um livro.

 

Um dia, ela sumiu. Nem se despediu do jornal. Foi embora.

Alguém sugeriu que tinha ido para o exterior: Ibiza, Maiorca, por lá...

 

Mas como poderia, se tinha um salário de fome, suas reportagens não lhe rendiam nada, vivia uma vida de monja.... salvo pelas roupas, que o jornal pagava.  Teria casado com algum ricaço? Ou se teria tornado amante de alguém importante? Mas quem? Quem?  

Ou teria, quem sabe, recebido uma herança?

 

Não; tinha deixado, uma herança.

Paga a peso de ouro por uma editora escandalosa, a série completa dos caderninhos, anotados naquela caligrafia miúda, regular, inexpressiva, foi parar em mãos desconhecidas.

 

Foi um reboliço, uma confusão; desmentidos fumegantes, declarações explosivas e “notas de esclarecimento” apareciam todos os dias nos jornais.

 “É mentira!”- gritavam ; “Não fui eu!”; “Eu não sei de nada!”; “Eu nem estava lá!”; “Nem conheço o fulano!”, e mais geralmente: “Nunca fiz isso, Nunca disse isso, Nunca ouvi isso!....”

Era a palavra mágica: Nunca, Nunca, Nunca!!!!

 

Aparecia um escândalo por dia, e não acabavam mais.

Algumas “peruas” pegaram-se a tapas em locais famosos e “sagrados” da cidade. 

Cancelaram-se casamentos, aumentou a taxa de divórcios, secretárias e assistentes eram sumariamente despedidas. Enfim, o caos.

O tiroteio continuou por meses a fio, com “balas perdidas” ricocheteando e eventualmente ferindo a dignidade e outras coisas, das pessoas.

 

 

 

Quando a vi, um ano depois, numa praia, do lado de lá do Atlântico,

- porque do lado de cá ainda tem gente furiosa com ela e que gostaria de encontrá-la sozinha numa rua escura - estava se espreguiçando ao sol morno da primavera, tostada como um frango assado, daqueles que a gente compra inteiros aos domingos, e bastam para o almoço da família inteira.

 

Fez muxoxo, ao ouvir os resultados mais recentes das suas reportagens.

Primeiro negou que soubesse alguma coisa: impossível! ; a marola sem dúvida tinha chegado até lá;  eu nunca engoliria tal mentira

 

Ficou um pouco pensativa, depois deu de ombros e continuou a sorver a sua “margarita": depois exclamou, sem piscar:

- “Mas era tudo absolutamente, rigorosamente verdadeiro”!

 

Tenho certeza que ela agradece todos os dias à semvergonhice da raça humana e aos falsos pudores, que lhe impedem de aceitá-la.

No fim, muitos jornalistas calejados não conseguem nem imaginar as mornas carícias do vento na praia, que alcançam apenas uma foca iniciante, que não passa de repórter e nunca será uma jornalista.

Bom pra ela!

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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