Uniões Homoafetivas
Como as uniões homoafetivas não encontram qualquer regulamentação na doutrina brasileira, serão analisadas as possibilidades de reconhecimento dessas uniões no Brasil e a realidade delas em outros países.
A escolha do tema se faz pela necessidade de análise entre os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da não-discriminação e da igualdade como alicerces fundamentais para sustentar uma futura regulamentação dessas uniões.
Primeiramente, há de se apresentar algumas questões sobre união estável. A união estável é reconhecida como entidade familiar somente quando tratar de uniões entre homem e mulher, quando houver convivência entre ambos, sendo essa pública, contínua e duradoura e quando existir o objetivo de constituir família. Portanto, por mais estável que seja a união entre pessoas do mesmo sexo, jamais ela se caracteriza como uma entidade familiar.
A não configuração de família nos casos de uniões homoafetivas é resultante da constatação de que duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo de procriação humana, não podendo oferecer a conjugação de pai e mãe como em uma união heterossexual. Assim, verifica-se uma absoluta ausência de regulamentação no que se refere às uniões homoafetivas.
Desde a primitividade a homossexualidade esta presente nas mais diversas civilizações e culturas, estando inserida no contexto histórico da própria humanidade. O que norteia a formação das uniões entre pessoas do mesmo sexo é o sentimento, o afeto que, sendo forte o suficiente, enseja a concretização da união.
No plano internacional, verifica-se que as legislações estrangeiras já reconhecem a existência do vínculo afetivo entre pessoas do mesmo sexo, conferindo-lhes os direitos e impondo-lhes os deveres característicos de uma verdadeira entidade familiar. A Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união homoafetiva, no ano de 1989. A Suécia aprovou em abril de 2009 o casamento homoafetivo. Já, na Noruega, a lei que regulamenta as uniões entre pessoas do mesmo sexo foi aprovada em março de 1993. A Islândia, da mesma forma, possui lei que concede os direitos das pessoas casadas às uniões homoafetivas. E o país cujo nível de desenvolvimento revela-se em maior amplitude é a Holanda, pois além de conferir direitos, inseriu em seu ordenamento jurídico o instituto da adoção por casais do mesmo sexo. Na América Latina, Buenos Aires se tornou a primeira cidade a reconhecer a união estável homoafetiva no ano de 2003.
Em contraposição, constata-se, segundo dados da Anistia Internacional, que mais de setenta nações tipificam a homossexualidade como crime e em trinta delas foram verificados abusos aos direitos humanos dos homossexuais.
A maior carga de preconceito em face das uniões homoafetivas advém da Igreja Católica que, seguidora das bases do Cristianismo e dos seus dogmas e preceitos de ordem cristã, admite apenas a família constituída pelo casamento.
No Brasil, conforme o artigo 3º da Constituição Federal*, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, visando a promoção do bem-estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Entretanto, inexiste uma regulamentação que trate de questões referentes às uniões entre pessoas do mesmo sexo e “quando se trata de buscar uma legitimação para as relações homoafetivas, os princípios morais presentes na sociedade não devem ser considerados as premissas maiores, dado o fato de serem carregados de subjetivismos”. (BRITO, 2000, p. 87).
Partindo da premissa que o texto constitucional é muito claro em relação aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, verifica-se, em contrapartida, a resistência de um determinado segmento social que impede que a união formada por pessoas do mesmo sexo encontre seu espaço na legislação brasileira, seja em sede constitucional ou infraconstitucional.
Maria Berenice Dias reflete que,
Nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigual entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito. (DIAS, 2008, p.30)
Percebe-se que a diversidade de sexos é requisito essencial para que se obtenha perante o Estado a merecida proteção, uma vez que, a união estável como entidade familiar só é reconhecida se formada por um homem e uma mulher. Portanto, não há dúvidas de que o tratamento diferenciado pelo fato de alguém direcionar seu interesse sexual a outrem do mesmo sexo, configura uma evidente discriminação à própria pessoa, em função de sua identidade sexual.
A doutrina clássica não vislumbra a hipótese do casamento que não seja realizado entre homem e mulher com finalidades procriativas. Assim, segundo Caio Mário “o casamento é a união de duas pessoas de sexo diferente, realizando uma integração fisiopsíquica permanente.” (PEREIRA, 1979, p. 51).
No Brasil, segundo dados da ONG Gay Lawyers, estima-se que quase 10% da população seja homossexual, ou seja, aproximadamente 16 milhões de pessoas.
Para Roger Raupp Rios (2001, p. 90), na construção da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental da constituição da subjetividade, alicerce indispensável para a possibilidade do livre desenvolvimento da personalidade. Fica claro, portanto, que as questões relativas à orientação sexual relacionam-se de modo íntimo com a proteção da dignidade da pessoa humana. Esta problemática se revela notadamente em face da homossexualidade, dado o caráter heterossexista e mesmo homofóbico que caracteriza a quase totalidade das complexas sociedades contemporâneas.
Há de se analisar uma interessante abordagem sobre concepções da homossexualidade, destacando quatro perspectivas: pecado, doença, diferenciação e construção social.
Primeiramente, a homossexualidade como pecado está ligada à prática de atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, sendo moralmente reprovável, e religiosamente pecaminosa. Assim, ceder aos prazeres da carne significa abandonar a Deus. O segundo viés da homossexualidade está relacionado à doença. Por esta concepção, os atos são tidos como uma doença que acomete o indivíduo, identificando-o como homossexual, em contraposição a um ser humano normal, chamado de heterossexual. Assim sendo, o que antes era visto como imoral e pecaminoso, agora é doença, e, portanto, passível de tratamento. A homossexualidade como critério de diferenciação surge oriunda das mudanças sociais e econômicas, as quais moldaram a gênese de um grupo específico social denominado homossexual. (RIOS, 2002, p. 99).
Uma das soluções encontradas para resolver os casos concretos de uniões entre pessoas do mesmo sexo é a interpretação da Lei Constitucional que objetiva formar um novo sentido dialético nesse processo. Segundo, Juarez Freitas,
A interpretação sistemática deve ser definida como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar os casos concretos. (FREITAS, 1998, p. 60).
A Constituição Federal, datada de 1988, consagra a existência de um Estado Democrático de Direito. O núcleo do atual sistema jurídico brasileiro é o respeito à dignidade humana. Carlos Frederico Hymalak Pinto (2000, p. 37) afirma que, ainda que em nossa Carta não exista expressamente à proteção do direito à orientação sexual, a discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui precisamente uma hipótese de discriminação.
É indispensável reconhecer que a sexualidade integra a própria condição humana pois “ninguém pode realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sua sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual.” (DIAS, 2004, p. 32).
A homossexualidade trata-se, assim, de uma liberdade individual, um direito do indivíduo, um direito natural, e acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Sem liberdade sexual, sem direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o próprio gênero humano não se realiza: falta-lhe a liberdade, que é um direito fundamental. Maria Berenice Dias (2004, p. 32) diz que a sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada.
Não é possível negar a existência de uniões homoafetivas. Entretanto, na ausência de dispositivo legal sobre o tema a doutrina brasileira tem classificado essas uniões como meras “sociedades de fato”, restando-se a elaboração de um contrato de convivência para regular as ditas sociedades.
A união estável configura um gênero que comporta mais de uma espécie: a união estável heterossexual e a união estável homossexual. Ambas fazem jus à mesma proteção no âmbito do Direito de Família. Enquanto não surgir legislação que trate especificamente da união estável homossexual, há de buscar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares, visto que, as regras da união estável heterossexual, por analogia, são perfeitamente aplicáveis às uniões homossexuais.
A posição jurisprudencial, normalmente, antecipa-se à lei, apresentando soluções bastante diversas para os casos relativos à dissolução de uniões homoafetivas e seus efeitos. Apesar de boa parte das decisões julgarem essas uniões no âmbito do direito obrigacional, utilizando-se do instituto da sociedade de fato, já há uma tendência, iniciada pelo Tribunal de Justiça gaúcho, com vistas a reconhecer-lhes o caráter familiar. Nesse sentido, há julgado sustentando a competência das varas especializadas de família para dirimirem as demandas resultantes dessas uniões, bem como para tratar a união estável entre companheiros. (LAVRATTI, 2002, p. 61).
Segundo, Maria Berenice Dias (2003, p. 32), o judiciário gaúcho foi pioneiro em reconhecer as uniões homoafetivas como entidades familiares e inseri-las no âmbito do Direito de Família.
Conforme a Constituição Federal, o ordenamento jurídico brasileiro não criminaliza a prática de atos homossexuais e proíbe a discriminação por orientação sexual. A jurisprudência caminha no sentido do crescente reconhecimento das uniões homoafetivas, mas há um limite que o juiz não pode transpor: o limite da lei. Assim, cabe averiguar como anda a produção legislativa a respeito do tema.
Há inúmeras proposições legislativas em tramitação no Brasil, o que indica a grande preocupação do legislador em coibir a discriminação e o preconceito por motivo de orientação sexual. Diante disso, o governo lançou em 2006 o programa Brasil sem Homofobia, com o objetivo de combater a violência e a discriminação contra homossexuais. O programa apóia projetos de fortalecimento de instituições públicas e não-governamentais que atuam na promoção da cidadania homossexual e no combate à homofobia, além de capacitar profissionais e ativistas que atuam na defesa dessas pessoas.
No decorrer deste trabalho, estudou-se que há um número considerável de pessoas que têm por opção afetiva e sexual o relacionamento com outrem do mesmo sexo. A homossexualidade faz parte da história da humanidade.
Conclui-se que a possibilidade jurídica da união homoafetiva é, sob o ponto de vista jurídico, legítima e, portanto, deve ser protegida pelo Poder Judiciário e por toda a sociedade. Para a concretização desta justiça, é necessário rever o sistema legislativo brasileiro, fazendo uma interpretação mais abrangente da lei e privilegiando os princípios constitucionais vigentes.
A mudança nos costumes é um elemento que influencia os valores presentes em cada civilização. O Direito deve acompanhar as transmutações ocorridas e, em favor delas, afastar o preconceito e criar leis em nível de compatibilidade com os reais interesses da sociedade.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
BRITO, Fernanda de Almeida. União afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos. São Paulo: LTr, 2000.
DIAS, Maria Berenice. Direito à diferença, Revista Jurídica Areópago da Faculdade Unifaimi, Ano I. 3ª Ed. São Paulo: Unifaimi, 2008.
____, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
____, Maria Berenice. Homoafetividade – o que diz a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
LAVRATTI, Viviane. A união homossexual no âmbito da atual concepção de família. Porto Alegre: Monografia (graduação em Direito) PUCRS, 2002.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. V. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1979.
PINTO, Carlos Frederico Hymalak. As perspectivas jurídicas das relações homossexuais. Porto Alegre: Unisinos, 2000.
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. 1ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
____, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Autor: Daiane Pompeo Barcelos
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