Relatório Semanal
RELATÓRIO SEMANAL
Pai!
Estou aqui, como sempre, com o meu relatório semanal.
Nossa, finalmente consegui!
Não sei se este é o tratamento correto, mas fazia meia hora que estava procurando o jeito mais certo de me dirigir a você.
Acontece que da ultima vez que lhe escrevi, caiu todo o mundo de pau em cima de mim.
Dizem que trato Alguém que nem conheço, com muita familiaridade e até com desrespeito.
Exigiam que me retratasse, que pedisse perdão por meu abuso.
A você, Pai, até posso pedir.
Mas a eles, não; de jeito nenhum.
Fiquei quietinho, na minha, porque não é boa política ficar cutucando os cachorros do vizinho, mas digo-lhe agora, que francamente, eles não têm razão
Experimentei se conseguia mudar de tratamento, só para contentá-los.
Para começar, tentei usar “Senhor”; mas não vai, não; por duas razões:
Primeiro, porque um Senhor pressupõe escravos.
E eu, se fosse seu escravo, não poderia ser seu filho; ou então seria considerado um bastardo, filho de ninguém.
Segundo, porque nesta sua grande fazenda, em que vivo, a escravidão que ainda infelizmente existe, foi inventada pelos homens, para sujeitar outros homens.
Os grilhões, os castigos, a segregação, as humilhações, não são com certeza obra sua.
Depois tentei usar “Patrão” ; mas é quase a mesma coisa. O “Patrão” mantinha os remadores acorrentados, sofrendo todo o tipo de dores, enquanto levavam os barcos a guerrear pelos mares afora. Ainda hoje tremo, ao ouvir o “patrão” dos barcos a oito, exigindo esforço sobre-humano nas regatas.
Por fim, quis tentar o uso de “Chefe”; mas fica tão mal, parece tribo de índios, ou cozinha de restaurante; ou pior, associação de bandidos.
Então deixe que me aproxime com o gesto amigo de sempre, dando–lhe o meu beijo, recebendo o seu e a sua benção. E chamando-o de Você.
De criança, eu sentava no seu colo, lembra-se? Mas agora não dá mais. Cresci, e o povo fala bobagens. Vamos deixar como está
Vamos deixar os fundamentalistas resmungando e ameaçando.
Pois é, Pai: Você, só você, me conhece bem; de cima a baixo, por dentro e por fora. Desde quando eu era um moleque descabeçado (agora, moleque não sou mais) quando eu tentava de todas as maneiras matar algum passarinho.
E você falando, lá dentro: isso não se faz!
Mas era ponto de honra entre a molecada. E eu nunca conseguia.
Uma vez acertei um; ele ficou com a asa quebrada; minha mãe cuidou dele, e durante semanas ele ficou ciscando na mesa do almoço, junto conosco.
Mas nunca mais voou.
Morreu quando o inverno chegou.
E parecia triste.
Acho que, mesmo tendo-nos todos em volta dele, sentia-se sozinho.
Deve ter morrido de solidão.
Nunca mais eu tive vontade de atirar num passarinho.
Devia ter ouvido Você.
E depois, aconteceu também comigo.
Algum moleque travesso, com uma pedrada certeira, atingiu minha alma.
E nunca mais voei.
Mas você sabe disso tudo, Pai. Bobagem minha falar nisso.
É de coisas alegres que quero lhe falar.
Ontem teve um grande incêndio, numa favela aqui perto.
Sim, sim, desculpe, eu sei que esta não é coisa alegre; mas deixa acabar:
Uns rolos grossos de fumaça preta, nos avisaram que havia desgraça.
Todos corremos . Salvamos primeiro umas dez crianças, umas mulheres, três velhos.
Depois, corremos de novo, para salvar os pertences.
E foi um vai e vem de coisas velhas, mesas, cadeiras, colchões, fogões, de tudo.
Era tanta fumaça que a gente engasgava;
tanto calor que não dava para ficar perto.
Trabalhamos enquanto deu, cansamos de verdade.
Não deu para salvar tudo, mas ninguém morreu.
Esta deve ser a sua vontade, não é, Pai?
O chefe dos bombeiros quis dizer obrigado a todos.
Foi de um em um, dando a mão, agradecendo e abraçando-nos.
Todos choramos, quando ele disse que um monte de gente
Estava salva só porque ajudamos;
e que sem a nossa ajuda muitos teriam morrido.
Para que você veja Pai, que seus filhos, apesar de tudo, ainda têm coração.
E tem mais uma coisa importante , que quase ia esquecendo.
Naquele momento, depois de muitos anos, senti que a minha alma
Já podia voar de novo.
Talvez tenha sido por causa da boa ação.
O que sei é que ela levantou vôo, deu um longo giro, lentamente,suavemente, silenciosamente, acima da favela, dos restos de fumaça, das madeiras ainda quentes.
E depois voltou, calma, e pousou de novo
E eu me senti vivo, de novo. E sei que posso sair voando
A qualquer momento, no céu azul, agradecendo-lhe o seu amor.
Bem, por hoje, era só isso que queria lhe dizer, Pai.
Tenha uma boa noite.
PS/: Se meu tratamento o incomodar, mande-me um e-mail.
Vou procurar me conter, me comportar.
Mas lembre-se de mim: sou, e sempre serei, apenas um de seus filhos.
Autor: Romano Dazzi
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