Capítulo da Lutas Antifascistas no Brasil



Pedro Ernesto Fagundes

"No dia do meu casamento nenhum chofer de carro de aluguel queria levar a minha noiva para igreja. Eles eram todos comunistas. Era assim que nós chamávamos o pessoal da Aliança Nacional Libertadora. Tive que conseguir um automóvel emprestado para minha noiva, eu e meus companheiros do integralismo fomos a pé". Era esse o ambiente político de Cachoeiro de Itapemirim em outubro de 1935, segundo relato emocionado do ex-dirigente integralista Nelson Silvan. Mas, por que um simples casamento despertou tanta animosidade?

O motivo da recusa dos chamados chofer de praça (atuais taxistas) era que aquele seria o primeiro casamento na cidade que seguiria as normas ritualísticas integralistas. Em outras palavras, o noivo casaria de camisa verde, um dos mais caros símbolos da Ação Integralista Brasileira (AIB). Apesar dos contratempos, ele e sua noiva chegaram a tempo para a cerimônia.

Como em muitos outros lugares do país, também no sul do Espírito Santo a moldura política local acabou refletindo a situação de disputas ideológicas que marcaram o panorama mundial nas décadas de 1920 e 1930. Nesse cenário, principalmente a partir de 1935, duas frentes políticas protagonizariam a maior parte dos embates no Brasil: a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional Libertadora (ANL).

Fundada em 1932, na cidade de São Paulo, pelo jornalista e escritor Plínio Salgado, a AIB, em um curto espaço de tempo, passou a ser uma organização de cunho nacional e a contabilizar milhares de militantes filiados em quase todos os estados do país. Seus militantes realizavam "paradas" e desfiles cívicos usando camisas verdes.

Já a Aliança Nacional Libertadora (ANL) foi organizada nos meses iniciais de 1935 a partir da junção de inúmeros sindicatos e federações de trabalhadores aos quais se somaram várias organizações políticas da esquerda e de cunho democrático. Seu presidente de honra foi Luis Carlos Prestes, líder da chamada Coluna Prestes. A ANL teve como principais metas combater o latifúndio, o imperialismo e o crescimento dos camisas-verdes. Dessa forma, não é de se estranhar que os enfretamentos entre os militantes dessas organizações tenham causado muito mais que atrasos em casamentos.

A disputa entre a AIB e a ALN foi pontuada por enfrentamentos públicos que geraram dezenas de vítimas fatais. A historiografia brasileira costuma destacar os episódios que ocorreram nas cidades de Bauru (1934), São Paulo (1934) e em Campos dos Goytacazes (1937). Porém, constatamos que outro conflito entre militantes dessas organizações ocorreu em novembro de 1935 em Cachoeiro, menos de um mês após o incidente do casamento integralista, e resultou em três óbitos.

Outro importante momento na trajetória da AIB no Sul do estado foi a realização de um grandioso desfile pelas principais ruas da cidade, vindo de uma concentração na localidade de Pacotuba. Antes de subir nos caminhões e rumar para Cachoeiro, todos se perfilaram para o registro fotográfico do encontro que foi destaque até nas paginas da A Offensiva, jornal oficial da AIB nacional que teve circulação nacional entre 1934 e 1938. Nelson Silvan recorda que durante todo o desfile a polícia esteve acompanhando os integralistas para evitar possíveis conflitos com os "comunistas" daANL.

Já a ANL, apesar do grande número de militantes comunistas em suas fileiras, se estruturou como ampla frente única contra os integralistas. Como observou a historiadora Marly Vianna, isso foi fundamental para que se juntassem à força aliancista militares, estudantes, nacionalistas, professores e profissionais liberais. Um exemplo foi o núcleo cachoeirense que, apesar de contar com uma forte presença de ferroviários e de trabalhadores da construção civil, teve como dirigente mais conhecido na região o professor e advogado Waldemar Mendes Andrade, que nunca teve ligação direta com o Partido Comunista do Brasil.

Uma importante estratégia utilizada pela ANL para divulgar suas propostas foi a realização das Caravanas Libertadoras que percorreram o país de norte a sul. Em maio de 1935 uma dessas caravanas passou pelo Espírito Santo e realizou comícios em Vitória e em Cachoeiro.

Enquanto na capital concentração da ANL foi dissolvida pela força pública, em Cachoeiro os aliancistas foram recepcionados festivamente no ponto mais importante da cidade: a estação ferroviária. Logo em seguida, foi realizado um comício no campo do Estrela do Norte F.C., que contou com uma assistência vultuosa.

Ainda empolgados pelo sucesso do primeiro evento, o núcleo cachoeirense da ANL atendeu ao chamado do diretório nacional e convocou uma outra grande concentração aliancista para o dia 5 de julho. Contudo, dessa vez, a força pública estadual negou a autorização para a realização da manifestação. Mesmo assim, foi realizada uma concentração dos militantes da ANL que foi marcada por discursos antintegralistas e contra o governo Vargas.

O ambiente político da cidade entrou de vez em ebulição após o anúncio de uma possível visita de Plínio Salgado como principal palestrante do Congresso Provincial Integralista do ES, marcado para os dias 02, 03 e 04 de novembro de 1935. A expectativa dos integralistas cachoeirenses era reunir cinco mil camisas-verdes capixabas. Essa informação teve como resposta imediata a convocação de um outro evento pelos aliancistas: um congresso antintegralista para a mesma data do encontro dos camisas-verdes. O palco estava montado para mais um enfrentamento entre membros da AIB e ANL.

Contudo, antes mesmo de se iniciarem os trabalhos do Congresso Provincial, Cachoeiro foi abalada pelo assassinato do jovem Alberto Secchin, militante integralista. Tudo aconteceu na véspera do dia de finados, quando um grupo de integralistas da localidade de São Vicente se dirigia para Cachoeiro em cima de um caminhão. Na altura do km 11, na região conhecida como Morro Grande, todos foram surpreendidos por vários tiros que teriam sido disparados por indivíduos escondidos no matagal existente às margens da estrada. As circunstâncias da morte do jovem lavrador serviram para aumentar o clima de apreensão e medo que tomou conta do município

Durante todo o dia de finados os integralistas velaram o corpo do seu militante em sua sede. Entre discursos inflamados e cerimônias de homenagem, a cena mais marcante foi o fato de colocarem uma imensa bandeira da AIB sobre o corpo do camisa-verde. Mesmo com a morte do militante integralista os trabalhos do Congresso Provincial prosseguiram segundo a programação. O dirigente nacional da AIB, Gustavo Barroso, presidiu as sessões de abertura e encerramento do encontro.

Apesar de sua anunciada presença, na última hora Plínio Salgado divulgou nas páginas do jornal integralista A Offensiva um comunicado justificando sua ausência. A prometida presença do chefe nacional dos camisas-verdes deixara de prontidão os aliancistas locais. Tanto que o boato da chegada de um trem trazendo integralistas do Rio de Janeiro correu pela cidade e levou para a estação centenas de militantes de ambas as organizações. Cada um dos grupos, a sua maneira, prontos para "dar as boas vindas" aos visitantes.

"Então houve um tiro dentro da plataforma nós estávamos na frente, de frente para a praça, quando ouvimos os tiros entramos dentro da máquina, mas o maquinista botou a gente para fora". Esse trecho do relato do ex-dirigente integralista Nelson Silvan, testemunha ocular do conflito, dá uma idéia do caos que se instalou nas imediações da estação ferroviária naquela noite de 03 de novembro.

Houve um grande tiroteio envolvendo integralistas, aliancistas e elementos da força pública estadual que instalaram um ninho de metralhadora na frente da plataforma de desembarque da estação. Balas zunindo por todos os lados causaram uma imensa correria pelas ruas centrais da cidade. Quando a fumaça abaixou foi possível ver a dimensão do conflito: duas vítimas fatais: Waldomiro dos Santos, chofer de praça, e Orestes Cândido, pedreiro.

Com o tempo os nomes dos dois mortos na estação acabaram sendo esquecidos, entretanto, o mesmo não aconteceu com o militante integralista. Um dos aspectos mais singulares da AIB foi a preocupação em preservar e valorizar a memória dos seus militantes falecidos em enfrentamentos com outras forças políticas. Os integralistas ao longo de sua trajetória construíram uma galeria de mártires, pois eles acreditavam que a morte não representava o fim da militância. O camisa-verde falecido se incorporaria à chamada Milícia do Além.

A AIB foi muito eficaz no sentido de criar uma série de rituais e cerimônias ligadas aos momentos lutuosos que vitimaram seus militantes. A organização utilizou todos os recursos existentes na época para transformar as vítimas fatais dos conflitos de rua em verdadeiros heróis de sua causa. Outra estratégia importante dos integralistas para perpetuar na memória de seus militantes as lembranças de seus mártires foi a prática de "batizarem" inúmeras escolas integralistas com os nomes desses militantes mortos. Inclusive, inúmeras escolas mantidas pela AIB ganharam o nome de Alberto Secchin. Entre elas podemos citar uma em Campos dos Goytacazes (RJ), uma na região de Gamboa, na cidade do Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal) e outra na localidade de Bela Vista, em Passo Fundo (RS).

É importante destacar a competência dos camisas-verdes em criar e construir rituais, cerimônias, momentos, enfim, um amplo e complexo elenco de eventos que tinham como finalidade destacar não apenas seus mártires individualmente, mas, acima de tudo, colar essas imagens e representações de sacrifício e heroísmo ao movimento integralista em geral.

Se pensarmos que os integralistas se puseram no papel de vanguarda do combate aos "comunistas" da ANL e, por conta disso, se envolviam constantemente em conflitos de rua, certamente acreditavam que era preciso "preparar os espíritos" de seus jovens militantes. Por mais elementar que possa parecer, a simples concepção de que um integralista seria eterno foi um dos elementos essenciais que, possivelmente, durante os conflitos de rua com forças anti-integralistas, serviu de estímulo, impulsionou e encorajou os novos militantes no sentido de se mirarem no exemplo dos gloriosos mártires do integralismo.


Autor: Pedro Fagundes


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