A Espuma dos Dias



A Espuma dos Dias

 

Muito em virtude, ou somente em virtude de 2009 ser o ano da França no Brasil, o SESC Paulista homenageia o artista multi mídia francês Serge Gainsbourg. A mostra tem mais de uma instalação e não te digo nada sobre ele, afinal com um clique a verdade lhe será revelada, mas te digo sobre um de seus modelos inspiradores: Boris Vian.

Veja quantas bulas tem o Boris: engenheiro, inventor, trompetista, pintor, diretor artístico, produtor de discos, poeta, romancista, autor dramático, ator, jornalista, crítico e tradutor. Gainsbourg também toca mais de um apito. O que dirão os historiadores sobre a arte de hoje, daqui cem anos? Posso te adiantar: daqui cem anos ninguém vai lembrar.

Tipo de raciocínio reativo, ocorrido logo após uma extração dentária. Digo, você não vai no dentista e escolhe com ele, no palitinho, qual dente será arrancado. Por esporte ou lazer. Assim, voltando a moviola do livre pensar, chega-se numa extração porque suportou-se até onde foi possível os rugidos do organismo brigando com a dentição. Ou o inverso.

Voltarei para ver Gainsbourg com melhor humor.

No restaurante ao lado, a angústia do proprietário se reveste com palavras infladas. Dentro de poucos dias entra em vigor a tal lei anti-fumo. De acordo com a lei, ocorrem três penalidades para o dono do estabelecimento, antes que a casa seja lacrada.

- Imagina o tormento? – balbucia ele atrás do caixa, e depois passa a discursar para os íntimos. Quem é bom de ouvido distingue umas idéias. Quem está sentado próximo ao caixa não se esforça. A indignação do proprietário ataca tanto a falta de senso dos legisladores quanto a perspectiva aparente dos futuros inquisidores. Na primeira, chega a ser um desaforo esse negócio do cigarro, num país que neste mês de julho foi apontado pela ONU como o maior consumidor de cocaína do globo. Na segunda, o inferno dos fiscais, da propina, do achatamento, por aí segue.

Gainsbourg foi casado com a semi deusa Jane Birkin.  Enquanto Maio de 68 cozinhava Paris ele brincava de cinema e iê- iê - iê.
O mundo civilizado tinha outras preocupações. Quarenta anos depois, de degradê em degradê, vamos otimizando a barbárie.

Boris Vian escreveu doze livros.

No cinema duas quadras ao lado saiu de cartaz “Milagre em St. Anna”, de Spike Lee. Ainda não tiraram o cartaz, que em letras garrafais anuncia: “o melhor filme de guerra desde O Resgate do Soldado Ryan”. Quaisquaisquais. Quem nasceu em 60 já está pelas tampas do cenário Segunda Guerra. Nessa questão, Soldado Ryan passou a régua.

Mesmo com a mão do Spike, “Milagre...” é adaptado do romance de James Macbride. Um não precisa do outro para se sobressair, mas o fato é que nas cenas de guerra dá uma vontade imensa de cochilar. Se é verídico o massacre dos nazistas em mais uma igreja cheia de civis, está na hora desses caras assumirem que nunca foram guerreiros - mas antes e tão somente – capiaus fardados matando inocentes. Guerreiro é outro papo. O pai do Gainsbourg, por exemplo, era músico de orquestra mas de madrugada ralava no jazz para levar o pão para casa. Músico popular nutre uma esquiva simpatia pelo erudito que cai na noite, pois este possui uma técnica quase sempre invejável. Já o erudito sofre na noite, pois improvisar, para ele, é uma verdadeira batalha.  Quanto ao “Milagre...” do Spike, só vai se destacar, e aí com bastante velocidade, nas cenas em que os atores não matam e nem morrem mas antes falam, cada um numa língua, a ação se desenrolando num vale italiano, os soldados do 92 Batalhão são negros do Harlen, as camponesas e os partisans são nativos, os nazistas celebram o idioma de Wagner e quando eles se encontram dá pano pra manga.  É de supor porque não se esfolaram mais, pois mesmo na mesma língua a compreensão rareia. E muito. A própria questão do racismo perde o sentido, para quem acha que tem algum sentido, face as diferenças ressaltadas no sem sentido absoluto chamado guerra.

“A Espuma dos Dias”, título publicado em 1947, é  considerado a obra prima de Boris Vian, que não viu o sol nascer depois de julho de 1959. Gainsbourg estava atraído por este pólo – diversidade e consistência - quando começou a sair da casca e criar seu próprio universo. Uma história pessoal que se envolveu com muitas histórias pessoais, bem  antes de todos se tornarem celebridades póstumas e  à serviço de selos corporativos. Era o indivíduo em ação.

A “Revista E”, publicação do SESC/SP e à disposição de quem foi ao dentista, visitou Gainsbourg, sorveu um café com discurso e refletiu sobre um cartaz tardio, traz entrevista com o historiador Francisco Doratioto, especialista em Guerra do Paraguai. Não se sai impunemente do conteúdo, sem associar o recrutamento no Segundo Império e o 92 Batalhão “Buffalo Soldier”. Este último tem Spike Lee para lhes render um tributo. E os que sucumbiram em Lomas Valentinas, em 1864?

Doratioto diz que “estudamos pouco nossos personagens históricos. (...) Houve tanta preocupação em apresentá-la, a história,  como um processo, que se minimizou o papel do individuo”.

Indivíduos que vivem à mercê terão ontem, hoje e sempre, somente a espuma dos dias. E olhe lá.


Autor: Bernard Gontier


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