De Jure Brasiliae
Hesíodo
(O juiz é condenado quando o culpado é absolvido)
Desafia-nos,
a Editora Rio, a elaborar reflexão crítica sobre a Justiça no Brasil, com base
no livro "O Equívoco – Contos Bandidos", de João Uchoa Cavalcanti Netto.
Bacharel em
Administração pela Universidade por ele fundada – a Estácio
de Sá -, não resisti ao convite. Li o livro, lançado em 1970, reeditado em 2005
sem alterações, e ainda atualíssimo. Resumem-no eloqüentemente, ao final,
quatro renomados escritores. Dentre eles, escolho Nelson Mello e Souza, ao
mencionar que o autor "ao dissipar a
dúvida sobre se valeria a pena trazer à luz um mundo (o de 1970) que já não
existisse mais, e decidir-se pela reedição, evitou o que poderia ser afinal o
seu único... Equívoco". E complementa, magistral: "Essa época não passou. Ao contrário, agravou-se. Em seus episódios de
dor, sintetiza o processo de malogro de uma sociedade que perdeu a bússola
moral" (grifou-se).
É
sobre esse aparente fracasso da Justiça - não ter impedido, em cinco séculos, a
"perda da bússola moral pela sociedade" - que recai minha reflexão crítica, da
qual, en vol d'oiseau, abordarei o
que penso serem suas origens e conseqüências, e o que talvez se possa fazer
desde já, para atenuar as perspectivas pouco promissoras que se prenunciam.
Não
desposo integralmente as teses de Raymundo Faoro ("Os Donos do Poder"), José
Júlio Senna ("Os Parceiros do Rei") e outros exegetas do patrimonialismo
ibérico. Entretanto, penso ser inevitável admitir que o processo de formação do
Estado português, por eles tão bem analisado, e seus desdobramentos no Brasil,
de fato contribuíram sensivelmente para o desenvolvimento e a quase
impossibilidade de eliminação de determinados traços de nosso caráter que, de
certa forma, explicam algumas das facetas indesejáveis de nosso comportamento
social, as quais, parece-me, refletem-se particularmente no plano das relações
entre o Estado e a Nação, ou entre governantes e governados, como é o caso da
aplicação da Justiça, bem mais do que no das relações interpessoais.
Recordemos
de início que, em países como a Inglaterra, em que teve lugar, na Idade Média,
um feudalismo forte, as relações estabelecidas ao longo do tempo entre servos e
suseranos culminaram no surgimento de Estados contratuais. Eloqüente exemplo de
tanto foi a promulgação, em 1215, pelo Rei João-Sem-Terra, da Magna Carta, por
pressão dos Barões, senhores de terras. Ali se estipulou o princípio do "no
taxation without representation", que, embora voltado originariamente para a
questão da legalidade tributária, expandiu sua interpretação para algo mais
amplo: a convicção de que o poder pertence, de direito, ao povo; este, ao escolher
seus representantes, cede-lhes parte desse direito – particularmente o de
tributar; e os representantes, em contrapartida, assumem o dever de bem gerirem
aqueles tributos, na condução dos destinos do povo pela senda do bem-comum. O
governo, portanto – aí entendido como a integração dos três Poderes - é
claramente visto como um mandatário do povo – ainda que a Justiça, no Brasil,
não seja eletiva - e incumbido de, em seu nome, exercer adequada e honestamente
o poder que lhe foi outorgado. Se não, que seja destituído, pelo voto ou pela
força.
Já
em Portugal não houve o feudalismo. Decorridos setecentos anos de dominação
árabe – povo de fortíssimas características patrimonialistas – foi o poder
retomado, no século XV, pela força das armas, sob a liderança de famílias
nobres. Estas, ao assumirem o governo, não estabeleceram, com as classes menos
favorecidas – artesãos e camponeses, em boa parte judeus, "cristãos-novos" e
árabes, vistos como "inferiores" -, relações contratuais, mas patrimoniais: não
competia à nobreza, e sim ao "povo", "trabalhar"; fidalgos deveriam doutorar-se
em Universidades e dedicar-se às letras, artes... e à navegação, para a
conquista de colônias de onde se extraíssem riquezas – vivia-se o mercantilismo
e o metalismo.
Nascia,
assim, a prática de distribuir privilégios e benesses a quem integrasse a
nobreza – as "famílias", alçadas ao topo da pirâmide social pelo sangue ou pela
riqueza – e de deixar à mercê do destino os incapazes de tanto. Em suma,
especializaram-se, os donos do poder e parceiros do rei, em fazer, da res publica, uma res privata, o que se poderia traduzir, em quaisquer atividades,
mas particularmente na Justiça, pela máxima "aos amigos, tudo; aos
indiferentes, a lei; aos inimigos, a morte". E da parte dos menos aquinhoados,
pelo dito "quem tem padrinho não morre pagão". Curiosos, os agrupamentos
sociais formados: as "famílias" de bem-nascidos - hoje "panelas", "patotas",
"igrejinhas", "cartórios", "corriolas" e quejandos; e a plebe de mal-nascidos,
buscando "padrinhos", "pistolões", ou o que mais que lhes permitisse vencer
facilmente na vida, escapando aos enviesados e burocráticos caminhos da lei, e,
quando necessário, livrando-se do longo e pesado braço da Justiça. Uma
sociedade, de resto, também contratual, mas não como a que florescera entre os
anglo-saxões: aqui, o poder pertencia de fato aos influentes, que o repartiam
entre si mesmos e seus apaniguados. Desse conluio brotou a mais bastarda das
filhas – a imorredoura corrupção. Essa, a essência do patrimonialismo.
Esse
"pano de fundo" cultural, obviamente, foi transplantado para o Brasil, quando
Lisboa – uma metrópole já bastante avançada, no século XV – impôs,
particularmente a partir de 1534, com as Capitanias Hereditárias, seu
ordenamento jurídico de então – como as Ordenações Manuelinas, de 1521, e as
Filipinas, de 1603 – a uma população de indígenas, escravos e degredados,
totalmente incapazes de compreendê-lo e absorvê-lo. Por isso nos acostumamos a
buscar – e de alguma forma pagar - as soluções para nossos problemas nos entes
físicos e jurídicos que nos dirigem. Pelo quê, até hoje não constituímos, de
fato, uma Nação brasileira: escapou-nos forjá-la com nossas mãos, eis que tudo
nos foi imposto.
Poder-se-ia
argumentar que, no século XVII, durante as invasões holandesas, sob o Domínio
Espanhol (1580 – 1640), esboçou-se esse forjar de uma nacionalidade, no Arraial
de Bom Jesus, tendo por arquétipos o branco Matias de Albuquerque, o negro
Henrique Dias e o índio Felipe Camarão, que combateram o bom combate em Guararapes.
Todavia, derrotados os holandeses e findo o Domínio Espanhol, restaurou-se o
trono português, com D. João IV. Retornou, pois, o jugo lusitano sobre as
terras brasílicas, esvaindo-se aquele embrião de nacionalidade: tudo como
dantes no Quartel de Abrantes.
Não é difícil entrever, nesse arrazoado histórico, as raízes de certos comportamentos, que bem conhecemos, comuns a bem e mal-nascidos. Um dos mais graves deles, parece-me, é ignorarmos que o ordenamento jurídico se destina não apenas a garantir os direitos fundamentais de pessoas físicas e jurídicas, mas também a harmonizar seu convívio – o chamado Estado de Direito. Todavia, na busca incessante de sobrevivência, enriquecimento, poder, reconhecimento e outros anseios definidos na Pirâmide de Maslow, com freqüência desconsideramos o princípio indiscutível de que os direitos de um se encerram quando se iniciam os de outrem. Daí nascem os infindáveis conflitos e lides que compete à Justiça dirimir, et pour cause, é no seu âmbito que mais se refletem nossos vícios ancestrais. Todavia, os que a exercem, por serem igualmente humanos e, como tal, portadores dos mesmos traços, também falham com freqüência.
Essa multiplicidade de Equívocos – dos que procedem à margem da Justiça, dos que a demandam de má fé, dos que a exercem mal et alii – bem caracteriza o mencionado processo de malogro de uma sociedade que perdeu a bússola moral, que permeia, um a um, os "Contos Bandidos" de João Uchoa: cada qual retrata fielmente nossas mazelas, que deveríamos, desde há muito, ter extirpado, ao invés de insistirmos em justificá-las como herança patrimonialista ibérica.
Assim é que, embora retratando e cultuando a Justiça como cega e imparcial, privilegiamos, ao aplicá-la, o diplomado, o poderoso, o rico, o amigo, o parente, o apaniguado, em detrimento do apedeuta, do desprovido, do desconhecido, do não apadrinhado. Outorgamos subservientemente o trato solene e formal aos poderosos pelo cargo ou pelo dinheiro, muito mais pelo fato de deterem o poder, do que por sua capacidade profissional ou integridade moral. Apegamo-nos bem mais à forma da lei – "vale o escrito"- do que à sua essência. Relevamos o ato ilícito, se ele denota "esperteza", beneficia o autor e tem o doce sabor do logro impune da autoridade - esse dicotômico pai e padrasto, amado quando premia, odiado quando pune; e nessa ambivalência, ora o alijamos, ora o reconduzimos ao poder, navegando em círculos no pélago social, sem chegarmos a um porto seguro. Buscamos a vantagem pessoal a qualquer preço, sem remorsos pela inevitável desvantagem que causaremos a outrem. Exercemos o preconceito contra os mal-nascidos, tanto quanto contra eventuais bem-nascidos que com os primeiros se miscigenem ou convivam a qualquer título. Louvamos a ética do atalho, da busca de resultados sem esforço; e assim, embora deploremos no atacado a corrupção, a pirataria autoral e a sonegação tributária recorrentes nos altos escalões, não hesitamos em praticá-las no varejo, com o guarda da esquina, o camelô ou o Fisco. Clamamos contra a incapacidade do governo de pôr cobro à violência incontida das ruas e do campo, mas com esta compactuamos, desde a vista grossa sobre quem lança um dejeto à sarjeta, até a fuga da cena do crime, por medo do testemunho. Rotulamos amiúde as polícias como ineficazes e corruptas, quando a criminalidade impera; e se sua ação resulta exitosa, à conta do emprego da força, censuramo-las por supostos excessos cometidos contra marginais, antes temidos, e dos quais agora nos compadecemos. Indignamo-nos com as trocas de favores entre os poderosos, mas cuidamos sempre de nos acercar de alguns deles, para recorrermos ao mesmo expediente, em nosso benefício.
Ah,
são muitas as idiossincrasias que nos fazem perder a bússola moral...E embora
diversificadas, parecem ter em comum a autocomiseração que cultuamos, por nos
faltar um rosto – o da nação brasileira, que só desponta na euforia do desporto
ou na momesca manifestação folclórica. Talvez por vergonha de nossa
tropicalidade, por nos frustrar não termos nascido no estrangeiro provincianamente
idolatrado e por nos saber melhor lamentar a escuridão do que acender uma luz.
Diante
de tal, que fazer ? Como reerguer a cega dama da balança e do gládio, tão
vilipendiada por nossa lassidão moral ? Pois não estão sós seus Tribunais e Juízes;
para que atuem - nunca de ofício, mas quando acionados -, aplicando as leis que
não lhes cabe promulgar nem sancionar, faz-se mister purificar também todos os
atores correlatos – Parlamento, Polícias, Ministério Público, Serventias,
Advocacias públicas e privadas, sistemas Prisionais...e o objeto maior da dama:
nós, cidadãos, e nossas instituições. Tarefa hercúlea, eis que o mal nos ronda,
demonstram-no os "Contos Bandidos" de Uchoa. É certo não ter esse mal a
dimensão do Brasil, por ser obra de minorias; mas ecoa, em altissonante falácia
de generalização, como se impresso estivesse em nossas almas. E
mais o agravamos, ao tentarmos resolvê-lo, mormente pelo jeitinho, eis que, ao
termo e ao cabo, invariavelmente tanto servimos quanto saboreamos a trítica e
circular iguaria napolitana que hoje nos simboliza.
Que
fazer, pois ? Quem sabe, darmos um Basta
! ao auto-escárnio, parando de nos vermos como Dorian Gray,
horrorizando-nos ante nosso próprio retrato – afinal, não pactuamos nossas
almas com Lúcifer, nem nos entregamos (ainda) à total dissolução dos costumes,
mesmo que pareça estarmos próximos dela. Antes, admitamos ser, esse retrato,
fruto das mazelas descritas, cabendo apenas a nós repintá-lo, para, quem sabe,
assumirmos por fim o verdadeiro rosto que sabemos ter, que reflete, como já
disseram poetas, o "sereno jeito de nossos corações e o golpe duro e presto de
nossas mãos" [1].
Quem
sabe, nos servirá entendermos em definitivo não haver esperanças fora do
Direito e da Justiça. E quem sabe, assim pensando, seremos capazes de dar
partida, aqui e agora, com empenho inabalável, à busca do futuro que espelhará
nossa grandeza, lançando ao limbo da História o desânimo e a autoflagelação
pelo passado que reflete nossa rudeza.
[1]
Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, em soneto enxertado na melodia de
"Fado Tropical", que musicou a peça "Calabar, o elogio da traição", de João
Cabral de Mello Netto.
Autor: Gil Ferreira
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