Vereda Nordestina
Para o amigo e Poenauta Marinho, em resposta a
seu texto “Sobre Quibes e Tapiocas”
Meu caro Marinho:
Desde sua mais que merecida admissão à Venerável Ordem Marinheira dos
Poenautas, nós, seus confrades, passamos a dispor de um relé cerebral
automaticamente ativado quando da anunciação de textos de sua lavra; de
imediato, piscam as luzes coloridas e ecoa a mensagem – vem aí coisa de mestre.
Foi assim hoje, quando me deparei com o e-mail (ou “imeiu”, no dizer do
bodeverdiano Bus) que transportava a magnífica crônica “Sobre Quibes e
Tapiocas”. O próprio título já é magistral, pois, como sói ocorrer aos títulos,
expressa, integralmente, o teor do tema abordado – no caso, o debate quanto à
escolha do local de nosso próximo encontro: Quiosque Árabe da Lagoa (“Quibes”)
ou Feira de São Cristóvão (“Tapiocas”). Claro, preciso e conciso, como nos
ensinavam Hamilton e Sílvio Elia, naquele distante e saudoso tempo em que
vivíamos abrigados pelas muralhas da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de
Villegaignon.
De início, duas observações – de um lado, muito me honra ser considerado, por
você, o metteur em scène de nosso grupo, mas, calçando as sandálias da
humildade, prefiro ver-me como um mero escriba, responsável pelo registro em
Ata de nossas atividades, ou, no máximo, um arremedo de “agente provocador”; de
outro, espicaçam-me a curiosidade os porquês de, tendo sido o Sep seu pupilo,
na infância comum em Resende, ter ele, também laureado escritor, desenvolvido
um estilo tão diverso do seu, vale dizer, tão cáustico, tão cartesiano, tão
desprovido de poesia, tão “Gregório de Mattos, o Boca do Inferno”, enquanto
você prima pela sutileza, pela verve, pela fleugma, pelo inimitável “sense of
humour”, como também o faz – registre-se ! – o Mano Zé. Mas que seria do azul
se todos gostassem do amarelo, não é mesmo? Assim, por certo as preferências
dos leitores de ambos se distribuirão equitativamente, ou segundo a Curva de
Gauss, que, parece-me, regula a distribuição de todos os fenômenos
transcorridos no orbe terrestre.
Mas retomo o foco de minha proposição. Logo às primeiras linhas de seu texto,
transportei-me para a serra de Baturité, no Ceará, na primeira década do século
XX. Sentei-me à varanda do casarão, ao lado de minha bisavó Jovina, com seu
cachimbo longo, fino e recurvado, cheio de fumo de rolo picado por canivete, e
de meu bisavô Antonio, com seu jeitão circunspecto, acenando para seu filho,
também Antonio, meu avô, que partia, viola nordestina às costas, em direção à
terra potiguar, deixando saudades
Alternando meu percurso virtual por aquelas bandas com a leitura de seu texto,
deparei-me com o trecho “ÊTA CABRA DE ASSOMBRAÇÃO!!!! ÊTA CABRA DE
ASSOMBRAÇÃO!!!!! (não vou dar mole não, Gil. Vá ao Houaiss. Essa seu pai não te
ensinou)”.
O emprego – correto e adequado, ressalve-se – dessa expressão evocou em mim
todo um jargão que, como você bem sabe, meu pai me transmitiu. E retornei às
varandas dos dois casarões, para ouvir, ora numa, ora noutra, trechos das
conversas de meus quatro bisavós com seus compadres, afilhados, “coronéis”,
jagunços e tantos tipos mais que povoaram (ainda povoam ?) o sertão, todos,
como meu pai, eméritos contadores de inacreditáveis “causos”, tão bem retratados
pelo nordestino de boa cepa Chico Anysio, em seu quadro “Pantaleão” – “É
mentira, Terta ?”. Pois aí vão para você alguns trechos dessas conversas de fim
de tarde...
“É o hervanso nos baixios dos riachos que nasce embastido...lá surge um
almocreve pequenino, mais sabido que vigário de vila...e esse cavalo frio que
não beneficia, solta o dundo nos pastos, que não apanha rengue...’bora ouvir os
gagáos das miliêtas de arumarás, pelas gurguéias do Apodi...sentir a cruviana
das madrugadas, cobertas de lubrina...ou ouvir o tundé dos brocoiós
desadorados, mangando das caritós, cada qual orando a Santo Antonio para que
lhe arranje um bode arretado...E estes, mitrados, se casqueiam p’ro mato, ou,
com tenência, se protegem sob a reima do abagão...Êita, ferro, que esse
granganzá intojado, cheio de fricotes, vem chegando assim, de pega-bode,
querendo tramamoca ou cochambrança p’rá godelar um putufu...”
São falas do Nordeste, esse Nordeste de Ascenço Ferreira:
“O ferreiro malhando no topo das baraúnas / Nas lombadas da serra o sol é de
lascar.../ Nem uma folha só fazendo movimento ! / - Nana! Ô Nana ! / - Inhôr !
/ - Chega me abanar ! / Pouco a pouco, porém, vem vindo um frio lento / Trazido
pelas mãos de moça do luar.../ Que gozo nos coqueiros acarinhados pelos ventos
! / - Nana ! Ô Nana ! / - Inhôr ! / - Chega a me esquentar !”
E de longe ouvi o ruído do trem de Alagoas:
“O sino bate, o condutor apita o apito, solta o trem de ferro um grito, põe-se
logo a caminhar.../ Vou danado p’rá Catende, vou danado p’rá Catende, vou danado
p’rá Catende, com vontade de chegar.../ - Adeus, morena do cabelo cacheado.../
- Adeus, adeus...”
Mas voltando de Catende, cheguei a Mossoró, e ouvi as vozes das velhas beatas
na Matriz:
“Grória a Cristo Jesus / Ce – éus i terra / Bendizei o Sinhô / Louvô i grória a
ti / Ó Rei da grógria / Amô iterno a Ti / Ó Deus di amô ...”
Ouvi também as amas-de-leite entoando para as crianças:
“Carrapato, vait’embora / Sai de cima do telhado / Deixa o menino dormir / Seu
soninho sossegado...”
E as crianças cirandando na praça:
“Amanhã é domingo / Pé de galinha / Areia é fina / Que dá no sino / O sino é de
ouro / Que dá no besouro/ O besouro é valente / Que dá no tenente / O Tenente é
valente / Que dá na gente / A gente é valente / Que senta o mucumbu no
batente...”
Ao meio-dia, não tomei água quente, para não ficar com fala fina. Almocei
primeiro a carne, depois o peixe, pois quero que a morte me deixe. Não derrubei
farinha na mesa, que é miséria certa; só açúcar, que dá felicidade. Queijo com
cachaça, nunca, para não estuporar; só puro, e sem a casca, para não
emburrecer. Vixe! Cab’a sem-vergonha ! Só sendo tentação do capiroto !
Mais eis que chegou o cantador Limão, p’rá contar a história do 13 de junho de
’27, dia de Santo Antonio, quando Lampião saiu corrido na bala, de Mossoró:
“Lampião foi se meter / A atacar Mossoró / Pensou que era Ceará / Qua a Polícia
tinha dó / Quase apanha de macaca / de Colchete e Jararaca / Que ficaram no
quichó...”
Pois é, amigo Marinho, você, com sua cantoria, digna de um ABC, de um cordel,
me fez relembrar tudo isso...e toda essa cultura nordestina, que estava amocada
em minh’alma, me ressurgiu devagarinho, que nem revência de açude, mas rija
como um baobá...
Resta agora esperar que a gente se reúna na Feira de São Cristóvão, talvez sob
uma daquelas luas do sertão, sentados em preguiçosas, afagados pela brisa que
vem da boca-da-mata, dançando ou só olhando o fandango, a chegança dos mouros,
o boi-calemba ou os congos, mirando nossas Nanas e ouvindo o violeiro pontilhar
mais uma modinha de Catulo, quem sabe, “Ontem ao Luar”:
“Se tu desejas / Saber o que é o amor / E sentir o seu calor / E o amaríssimo
sabor do seu dulçor / Sobe o monte à beira-mar, ao luar / Ouve a onda sobre a
areia lacrimar / Ouve o silêncio / A falar na solidão / De um calado coração /
A penar, a derramar os prantos seus.../ Ouve o choro perenar / A dor silente
universal / Que é a dor maior / Que é a dor de Deus....”
Amigo Marinho, espero ter respondido condignamente a seu texto, que, como
outros anteriores, também me emocionou. Só resta, agora, repetir a última
mensagem do Frater, também de origens nordestinas:
- “À Feira ! À Feira ! À Feira !”
Um grande abraço do
Gil
Autor: Gil Ferreira
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