A Família Mestiça Gloriosa - Resenha de ''A Gloriosa Família''



Régia Mabel da Silva Freitas – UCSal[1]

Segundo Ki-Zerbo (1980, p.27), "a tradição oral é a fonte histórica mais íntima, mais suculenta e melhor nutrida pela seiva da autenticidade". Esta assertiva permeia todo o romance africano "A Gloriosa Família" – O Tempo dos Flamingos, pois o escravo-narrador, através de uma crônica descritiva cheia de imaginação, apresenta uma "revisão" da História Geral da África.

Na preconceituosa visão eurocêntrica, o primitivismo, o exotismo e a uniformidade africanos não mereciam referência. Nos mais diversos aportes teóricos só se divulgam o clima assustador, a paisagem íngreme, as matas impenetráveis e "as zonas espinheiras cerradas desabitadas por gente e bicho" (Pepetela, 1997, p. 299), desconsiderando toda a riqueza bionatural. Além disso, "as diversidades geográficas, sociais e culturais são apagadas". (Reginaldo, 2002, p. 107).

Felizmente, em A Gloriosa Família (Pepetela, 1997), faz-se uma releitura, mas, ainda assim, aparecem vários discursos da ideologia do branqueamento, a saber: o cristão-novo é sempre tratado com desconfiança; os mulatos, mesmo sendo padres, estão ligados a feitiços; os guerreiros jagas não possuíam amor filial, pois vendiam até a mãe; a Jinga é considerada, diabolicamente, inteligente e hábil, o mulato é considerado fruto do pecado, uma aberração, um monstro, um ser contra a Natureza entre outros.

Alguns destes julgamentos consagram a superioridade da crença, como a crítica do padre Tavares aos cultos afros, chamando-os de cerimônias demoníacas com cenas de feitiçaria e o kimbanda (adivinho) Sukeko ser considerado um macaco crédulo do diabo. No episódio da visita do padre Tavares à sanzala dos Van Dum, ele queimou todos os objetos (ídolos) e deitou água benta nas cubatas dos escravos que nem puderam protestar por lhe roubarem os deuses. Às vezes, este preconceito é tão generalizado que chega ao extremo de inferiorizar toda uma etnia ao afirmar que os escravos não têm direitos nem liberdade, não podem manifestar sentimentos e juízos; enfim, considerá-los objetos animados.

Este romance africano pós-modernista, escrito pelo professor angolano militante e nacionalista Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (Pepetela), traz uma descrição minuciosa do cotiano do holandês Baltazar e de sua família mestiça gloriosa Van Dum. Na narrativa, que acontece em Luanda – 1642 a 1648 – da dominação dos flamingos (holandeses) à expulsão destes e reconquista portuguesa, misturam-se elementos fictícios e fatos históricos.

O narrador, um escravo guarda-costas filho de uma negra e um padre napolitano, só foi efetivamente reparado pelo seu dono, Baltazar, duas vezes: quando o recebeu de presente da rainha (rei) Jinga Mbandi e quando o viu chorar pela prisão de sua mãe de criação Mocambo (D. Bárbara) – irmã de Jinga. Esta propriedade semovente é considerada pelo dono um analfabeto e mudo de nascença, por isso ele não se importava com a sua presença.

Na verdade, este escravo, ciente da sua condição servil, nunca dirigia a palavra ao seu dono, mas era poliglota e entendia português, kimbundo, flamengo, castelhano e francês. Durante a narrativa, relata todos os atos interlocutivos recheados dos idiomas supracitados que presencia na bodega e na casa do seu dono protagonista. O ápice desta polissemia discursiva é o diálogo em que várias línguas são misturadas.

O narrador reverbera que sua missão era servir de relator do que acontecia com a família Van Dum, pois foi criado para descrever os fatos tal como vivia o seu dono e a sua gloriosa descendência. Ele utiliza a primeira pessoa do singular e os discursos direto, indireto e indireto livre. Embora afirme que "a neutralidade tradicional é necessária para a narrativa" (Pepetela, 1997, p. 183), delatava os fatos com subjetividade e ironia.

Com um tom irônico e, muitas vezes, até sarcástico, o narrador relata, sob o seu ponto de vista, as histórias do seu dono Baltazar Van Dum, ora criticando o discurso ("...os brancos dizem que não temos histórias..."), ora julgando comportamentos cotidianos ("...os brancos armam sempre confusão por causa de mulheres...")ouatitudes ("...os brancos são mesmos complicados..."), ora confessando um aprendizado ("...as vantagens da dissimulação e do recato...") e até elogiando ("Ah, grande Van Dum, um vivaço!").

Baltazar era um comerciante que traficava escravos para o Brasil. Ele vivia na Luanda portuguesa, era casado oficialmente com D. Inocência (negra) com quem três filhos mortos e oito vivos: Ambrósio, Ana, Benvindo, Gertrudes, Hermenegildo, Matilde, Rodrigo e Rosário. Também tinha vários "filhos do quintal" (bastardos), mas só reconheceu Catarina, Nicolau e Diogo. Esta numerosa família mestiça não era muito bem vista, pois estava do lado dos portugueses; mas, devido às amizades influentes, sempre se salvava de alguma situação constrangedora com os mafulos.

Este patriarca considerava a sua família como o bem mais precioso e sempre tentou mantê-la unida. Todos aprendiam com ele, pois sempre dava aula de política para educar seus filhos. Nesta grande sanzala, moravam também dois forros agregados, Ngonga e Kundi, e suas respectivas famílias em cubatas próximas, o "faz-tudo" Dimuka e também muitos escravos. Esta família, núcleo básico de organização social, ratificava o princípio africano "eu pertenço, logo existo" desde os filhos legítimos até os bastardos.

Durante os sete anos da narrativa, vários fatos marcaram a vida da família Van Dum. A atitude diplomática do protagonista sempre lhe proporcionou grandes venturas: boas relações sócio-políticas com portugueses e holandeses; casamentos ascendentes para os filhos (Gertrudes com o feitor de plantação de ascendência judia Manuel Pereira e Rodrigo com a filha do Mani-Luanda Nzuzi/ Cristina) e o trânsito livre pelas Luandas (portuguesa e holandesa). Esta diplomacia, inclusive, permitiu a sua permanência após a expulsão dos holandeses em 1648.

Infelizmente, havia, dentro da família, a perpetuação do complexo de inferioridade da própria etnia, como a visão preconceituosa de D. Inocência que considerava os casamentos de suas filhas Gertrudes e Matilde um avanço para a raça por se unirem a brancos e os dos seus filhos Rodrigo e Hermenegildo um atraso em relação ao ideal de alvura por procriarem, respectivamente, com as negras Cristina e Dolores.

Ao longo da narrativa, esta família gloriosa, entretanto, também passa por momentos de adversidade que viram escândalos, a saber: Matilde desonrou a família duas vezes, pois engravidou antes do casamento e depois traiu o marido, Thor (escravo) desonrou Ana na sanzala e Ambrósio manteve uma ligação espúria com a degredada Angélica Ricos Olhos. Nestes momentos, a honra da família sempre era lavada com discussões, puniçõese até mesmo com a morte, como foi o caso da decapitação deThor.

No âmbito religioso, apesar dos inúmeros batismos, havia muitas contradições entre a teoria cristã e as práticas dos que se convertiam, a saber: a poligamia (duque Mbata), os cristãos continuavam a explorar o seu semelhante através da escravidão condenada por Jesus Cristo, havia a crença nos presságios (Sottomayor e o óleo da lamparina derramado, as mortes do cavalo e do papagaio), a negociação de escravos entre Jinga e Baltazar, o casamento entre pessoas de religiões diferentes apenas por interesse e, principalmente, para alianças políticas, o acordo político para colocar governador Menezes em Massangano , a fuga de Pedro César, os vícios depravados de padre Tavares, entre outras.

Na sanzala dos Van Dum, por exemplo, houve uma catolização superficial, pois o único convicto e considerado verdadeiramente católico era o patriarca. No episódio em que Angélica Ricos Olhos procurou a feiticeira tia Anita para uma vingança pêlos insultos de Baltazar, ele foi o único que se manteve calmo. A casa inteira ficou em alvoroço devido aos avisos (armário, candeeiro, rede e jarra) e começou a rezar para Nossa Senhora das Almas Injustiçadas mas, concomitantemente, foram defumar a casa e queimar ervas poderosas.

Segundo Thornton (VAINFAS, 2007, p. 66), este fenômeno que mantém inalterado o sistema cultural é o "cristianismo africano" que aceita várias revelações cristãs e combina de forma dinâmica com as diferentes cosmologias. A "nobre congolesa Kimpa Vita" (Idem, p. 94), depois batizada Beatriz, e o seu antonionismo também exemplificam essa reinvenção do catolicismo com tradições africanas quando o reino do Congo abraça essa religião. No romance, rebatizaram várias pessoas pessoas (Nzuzi/ Cristina, Mocambo/ Bárbara, Henri/ Henrique) e até a própria terra (Mbanza-Kongo/ São Salvador).

Vale ressaltar também que o misticismo também permeou todo o enredo, através das visões de Matilde, o caso do leão cazumbi, a história da lagoa do Kinaxixi e a pemba jogada pelo narrador a Redinckove por ter desonrado a sua amada Catarina. Esta desonra, entretanto, não foi descoberta e alardeada (por ser filha bastarda!), limitando-se aos amantes, ao narrador e às irmãs mais próximas. Em toda a narrativa, os bastardos são apenas personagens secundários.

Enfim, entre guerras civis e militares, acordos políticos e nupciais por interesse e discursos falaciosos, "...os Van Dum se multiplicam..." e cresce a linhagem notável desta gloriosa família mestiça (outrora profetizada por Matilde!) em pleno século XVII.

REFERÊNCIAS

KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. História Geral da África. São Paulo/ Paris, Ática/UNESCO, 1980, p. 21-41.

PEPETELA. A Gloriosa Família. No Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

REGINALDO, Lucilene. Vagas informações, fortes impressões: a África nos livros didáticos de história. Humanas, 2, (2002), p. 99-121.

VAINFAS, Ronaldo e Souza, Marina Mello. Catolização e ressurreição: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento Antoniano, séculos XV-XVIII. Formas de Crer. Ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV e XXI. Salvador. Editora Corrupio/ EDUFBA, 2007, p. 47-68.




Autor: Mabel Freitas


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