O Papel Da Escola Na Formação Identitária Do Afro-descendente



1. Introdução –
A ninguém que se pergunte sobre o papel da escola deverá causar estranheza a resposta, própria ou de outrem, de que a escola tem por finalidade a formação integral da pessoa; ou, a formação toda de toda a pessoa, como costumam afirmar. Nesse conjunto, considera-se a formação para a vida social, a vida profissional, o respeito ao meio-ambiente, o aprimoramento de valores como a ética, a justiça, a tolerância e a solidariedade, a busca de formas de vida como a democracia...
Enfim, sobre a escola recai uma gama infindável de expectativas. Algumas, por certo, válidas; outras, superlativas. As expectativas variam em função de uma gama diversa de fatores, dentre os quais se podem destacar, sobretudo, a localização e a categoria administrativa à qual uma determinada escola está vinculada. A partir desses critérios, pensando-se em uma escola pública, localizada em um bairro periférico de uma cidade de porte razoável, não é surpresa que a escola seja concebida ou aceita como uma insituição que deva zelar pelo sustento dos estudantes – então, a escola deve ter cozinha e refeitório, ao menos deve servir refeições; a escola deve propiciar as condições adequadas de vestuário para os estudantes – então, deve oferecer uniforme; a escola deve aparelhar os alunos para o desempenho de suas atividades escolares – então, deve oferecer cadernos, lápis, além de livros e outros materiais didáticos...
As escolas privadas têm suas formas de suprir as demandas de seus estudantes – não raramente concebidos como “clientes” – desde que os mesmos tenham recursos para apropriarem-se do que é disponibilizado: a escola apresenta a lista de material escolar esperado, a relação de uniformes minimamente necessários, a escola firma convênios com cantinas, lanchonetes e demais fornecedores de lanches e/ou refeições, a escola firma convênios com seguradoras...
Tal aspecto merece uma atenção aprofundada, sem sombra de dúvidas. Não obstante, nem sempre se dá o devido destaque ao fato de que as pessoas, normalmente, passam uma parte significativa de suas vidas em uma escola, sobretudo na infância, adolescência e juventude. Atualmente, uma criança ingressa na escola, regularmente, aos seis anos. Se for em uma escola em tempo integral, permanecerá, até aos 17 anos, durante 12 anos, duzentos dias por ano, de quatro a oito horas por dia, dentro das paredes de um estabelecimento escolar. Pode ser um tempo de ventura, ou uma longa pena a ser cumprida – em regime semi-aberto.
Fator sumamente importante: é nesse período, indiscutivelmente, que se forma o núcleo identitário. E é aí que vêm os questionamentos relecionados à escola e aos impactos que a mesma ocasiona sobre as pessoas – indivíduo e grupos.

2. A escola e os afro-descendentes –
Será que a escola, enquanto instituição pensada para a formação democrática, universalista, de todos, consegue, de fato – na prática – atuar de maneira democrática, para além de uma visão restrita e restritiva, reducionista? A aproximação da escola como uma instituição igualitária pode não corresponder à verdade.
Pesquisas – e a própria experiência – indicam que a escola assume um padrão que, infelizmente, relega segmentos da população a planos inferiores, discriminando-os, de fato. Os exemplos são vários: a linguagem formal ocupa o centro, calando as vozes não adestradas em regras gramaticais e na prática da leitura; os problemas teóricos são bastante desvinculados da prática do dia-a-dia de muitos; os padrões familiares e de relacionamento; os valores éticos e morais...
Mas, além desses elementos, existem outros, como os próprios modelos de sociedade e de beleza. Aqui é que se dá o entrave: até em que ponto o modelo econômico capitalista, competitivo, individualista é contestado? Até em que ponto a diversidade é incluída e inclusiva? Principalmente, no caso que nos interessa: até em que ponto os afro-descendentes vêem-se espelhados, positivamente, nos ambientes e recursos escolares?
Referimo-nos, aqui, a afro-descendentes, com hífem, por opção conceitual: de acordo com Lesser (2001), poder-se-ia falar de pessoas ou grupos hifenizados, indicando hibridismo; de acordo com Stuart Hall (2003), poderíamos falar de pessoas diasporizadas. Esse segundo sentido nos parece mais apropriado: os hifenizados assim se designam por se sentirem em situação de constante mobilidade, migração, passagem – em constante diáspora, apartamento da terra originária. Os afro-descendentes podem ser encarados como híbridos, sim, pois podem ser afro-brasileiros, afro-americanos, indicando que têm um vínculo com a África, mas, também, com outro lugar ou povo ou situação (os brasileiros, os americanos...). Todavia, pode-se pensar que os afro-descendentes são todos aqueles que, em situação de diáspora, se encontram fora da África.
Mais que uma visão reducionista sobre o ser negro, a visão afro-descendente amplia o espectro – incômodo, para alguns – da pertença à África, o que gera responsabilidade: responsabilidade frente às injustiças e violências, por permitir que ocorram ou tenham ocorrido e nada ter sido feito para se evitar sua concretização ou manifestação.
O Brasil conhece os africanos e seus descendentes desde os primórdios de sua colonização. Discute-se a data precisa em que teriam chegado às terras brasílicas os primeiros africanos, sob o jugo da escravidão: estima-se que seja por volta de 1530. Do mesmo modo, discute-se, também, a quantidade de africanos que teriam entrado no Brasil sob essa condição – a de escravos. O certo é que, por cerca de 350 anos, o africano e seus descendentes, na sua quase totalidade, povoaram estas terras sob a condição escrava. O término da escravidão, porém, não se deve a uma emergência da consciência da indignidade que essa situação significa, mas a fatores de ordem política e econômica. Pior, arrastou atrás de si um outro problema, que se relacionava à constituição do novo país que emergia: no dia seguinte à Abolição, percebeu-se que os ex-escravos, transmutados em súditos (depois, em cidadãos republicanos), transformavam o Brasil em uma nova África – criou-se o problema “o negro”, como dizia Nina Rodrigues.
Ora, a construção de uma nação se faz pela adesão a valores, tradições, ideais, dentre outros fatos. Os meios de comunicação constribuem para isso, atualmente, mais que nunca. Porém, não se pode descartar o papel que a escola tem nessa trama: é a escola, através da história oficial, que transmite, mediante uma linguagem também oficial, imagens do país, da pátria e do cidadão; incute os valores que devem ser vivenciados e assumidos; propaga simbolismos e uma cultura/tradição comuns.
A educação formal, a escola – não só, mas em grande parte – é que faz com que cada pessoa seja filha de seu país, de uma pátria. É a escola quem me diz que o verde dessa bandeira significa as matas, o amarelo o ouro, o azul o céu, e o branco a paz. É a escola que me diz que no dia sete de setembro, às margens do Rio Ipiranga, Pedro I proclamou a independência do Brasil. É a escola que me diz que os negros aqui chegaram como escravos para trabalhar a terra porque eram mais dóceis que os índios, mais afeitos ao trabalho duro e, por já praticarem a escravidão entre si, não verem isso como um novo mal.
Quando se fala, já há algum tempo, em uma Segunda Abolição, há que se pensar mais seriamente na escola e no papel que a mesma exerce em relação aos afro-descendentes.
Ainda no século XXI os afro-descendentes são apresentados de forma preconceituosa nos livros didáticos, ocupando cargos e funções subalternas, desempenhando profissões consideradas de menor prestígio, aparecendo em situações constrangedoras ou desumanizantes. E isso nos livros didáticos de História e Língua Portuguêsa, sobretudo. Como se moldam as imagens e o imaginário, a partir daí?
Mas o problema maior não está nos simples subsídios ou recursos didáticos. O problema maior se concentra na própria compreensão que os docentes devem ter de seu trabalho, como descontrutores de toda uma tradição de pseudonetralidade da escola.
A escola, pensada como instituição veiculadora de uma educação formal, também é pensada, não raro, em uma instituição que deve formar e enformar as novas gerações: formar o cidadão e o profissional; reduzir a violência e ocupar o tempo. Mas já existem avanços, mesmo quando não se dê por isso.

UMA NOVA ESCOLA OU UMA ESCOLA NOVA –
Atualmente, quando muito se discute a qualidade da escola, a qualidade da educação, deve-se questionar o que se entende por qualidade e qual deve ser a finalidade desse critério para a instituição escolar.
Pedro Demo fala de dois tipos de qualidade: a qualidade formal e a qualidade política. A qualidade formal é técnica, dizendo respeito aos insumos escolares, à tecnologia utilizada, aos recursos materiais. A qualidade política diz respeito ao papel que os atores são levados a assumir, a partir do aparelhamento escolar. Aliás, quando grandes crimes são cometidos pode-se observar que não falta, a muitos dos criminosos, capacitação técnica em suas atuações: são peritos em economia, informática, direito etc. Mas, e a formação ética e moral, o comprometimento com uma nova ordem social mais justa e democrática? Essa é a qualidade política que falta, para direcionar o que fazer com aquilo que se sabe.
Em termos legais, as iniciativas para a reorganização educacional em direção aos excluídos ainda são tímidas. Pense-se no caso da Lei 10.639/03, que alterou a Lei 9.394/96 (a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) em seus artigos 26 e 79, dando-lhe a seguinte estrutura:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Brasileira.
§ 1ª - O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2ª - Os Conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

As dificuldades para a real implementação desse dispositivo legal são muitas, havendo, ainda, quem se indaga sobre qual a peculiaridade cultural dos negros ou afro-descendentes. Riqueza cultural que a educação formal desconhece ou faz por desconhecer, não indo além de feijoada e samba. Por isso, a nova escola exige uma nova postura diante do país e daqueles que o constituem. Devem-se rever os currículos, os recursos didáticos, a formação dos docentes, como já afirmava Paulo Freire, que é a dimensão mais difícil de ser modificada em uma educação que se quer “prática da liberdade”.
Compete à escola transmitir uma imagem que orgulhe os afro-descendentes para que estes se assumam como filhos da Mãe-África, ou netos da África e filhos de um Brasil igualitário e inclusivo. A escola, construindo uma nova imagem do afro-descendente, dará a eles (a nós) o orgulho e a coragem necessários para que se empenhem (para que nos empenhemos) em uma luta por reconhecimento, atuando em diversos segmentos com conhecimento e competência.
Esse reconhecimento vai incidir sobre questões ainda delicadas e não suficientemente enfrentadas, como a própria questão das cotas para negros/afro-descendentes nas instituições públicas de ensino superior, ou uma nova política de inclusão, de ações afirmativas.
Enquanto a escola não contar a verdadeira história dos afro-descendentes, esses se sentirão envergonhados e diminuídos de reivindicarem aquilo que lhes é de direito e, não, um favor, uma migalha. Não se fala de indenização, como em outros países e de outros povos. Infelizmente, o afro-descendente encontra-se dividido: entre si e dentro de si. O preconceito de ter preconceito, o medo de acender uma discriminação que existe, escamoteada, porque o afro-descendente ainda consente em ficar “em seu lugar”.

DA EDUCAÇÃO FORMAL À EDUCAÇÃO POPULAR –
Frente a todas essas exigências é que se reivindica uma educação popular. Não popular no sentido de qualidade inferior, aquilo que não é aprimorado. Mas popular no sentido de que abrange camadas cada vez mais extensas da população antes não reconhecida e que não se reconhecia. A educação será popular quando mostrar os diversos rostos que compõem o Brasil. Rostos com histórias, culturas, lutas. A educação será popular quando considerar em seus objetivos e conteúdos uma população de mais de 50% dos brasileiros que são afro-descendentes. E quando for elaborada pensando que esses afro-descendentes também estão nos bancos escolares – pois mesmo quando fala dos afro-descendentes, o interlocutor pensado não o é.
Ou a educação assume essa missão ou continuará a ser seletiva – outra forma de se dizer elitista – mesmo quando feita “para os pobres”. Porque muitos confundem popular com pobreza.
Essa a verdadeira revolução: demonstrar que existe um povo negro, afro-descendente que, enquanto não se mudarem as regras do jogo, estará condenado a esperar a vez: esperar no posto de saúde, esperar erradicarem as exigências de boa aparência nos empregos, esperar nos fundos das prisões, esperar por uma equiparação salarial com os não-negros, esperar por vagas nas creches e escolas públicas de ensino fundamental e médio, esperar juntar dinheiro para matricular-se nas escolas privadas de ensino superior...
Diz Habermas, somando sua voz a Goldhagen, quando este discute o Holocausto judeu: quem não denuncia, quem não reage, quem não impede que essas coisas aconteçam, compactua com elas, prolonga-as... Essa a responsabilização que recai sobre a escola e seus agentes, hoje mais que nunca.

Autor: Leonides da Silva Justiniano


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