Resenha do Livro Brasil de Todos os Santos, de Ronaldo Vainfas e Juliana de Souza



VAINFAS, Ronaldo. SOUZA. Juliana Beatriz de. Brasil de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

Resenhado por Fernanda Cristina Vale[1]

Ronaldo Vainfas e Juliana de Souza traçam em Brasil de todos os Santos o quadro de formação da religiosidade dos brasileiros, e numa linguagem simples e bem acessível não só a historiadores como também ao publico em geral, trabalham o modo como o catolicismo desembarcou aqui com as caravelas portuguesas e a partir de então passou a conviver com conceitos e ritos da fé indígena e africana, misturando-se a estas no cotidiano dos colonos e construindo, assim, esse traço fundamental da experiência religiosa do Brasil até os dias de hoje: o sincretismo.

Para os autores o sincretismo começa a se formar logo nos primeiros momentos da colonização. Desembarcam aqui junto aos navegadores, também a igreja e a tradição católica de Portugal, que expressa seu desejo de expandir-se para a América com uma missa realizada alguns dias depois da chegada em terra e com os nomes dados inicialmente à nova terra – Terra de Vera Cruz e Terra Santa de Cruz- e os nomes dados às vilas aqui fundadas – Salvador da Bahia, por exemplo. Só que, segundo o nosso primeiro historiador, o franciscano frei Vicente do Salvador[2] citado por Vainfas e Juliana de Souza, a influência demoníaca se fez presente aqui no Brasil, mostrando-se justamente neste novo nome escolhido para a colônia, nome que fazia alusão a uma simples árvore e não a, segundo o frei, madeira bem mais importante: a cruz de Cristo, o que era, portanto, obra e influência do demônio. Assim, o maniqueísmo europeu chegou ao Brasil e aqui multiplicou-se para formar o imaginário religioso que hoje conhecemos.

A partir do desejo de expansão para América da igreja era, então, preciso ensinar aos índios a fé cristã, de modo a criar no Brasil uma extensão da cristandade européia. Para cumprir tal missão vieram os jesuítas, que criaram uma logística própria que incluía os aldeamentos, uma identificação da Bíblia com o imaginário dos nativos, através de dramatizações, comparações, e de sua principal arma, que foi a criação da língua geral para evangelização. A partir desse contexto, é traçado um quadro até certo ponto cômico para o leitor contemporâneo, onde os autores buscam exemplificar o hibridismo que resultou dos esforços jesuítas: o caso das "santidades" mostra como rituais indígenas misturavam-se a conceitos da fé católica resultando em pregações de cunho messiânico, ataques a povoações, engenhos, igrejas e aldeamentos, e pregadores itinerantes como no caso do índio Antônio, que se autodenominava Tamandaré – um herói tupinambá- e proclamava ser o próprio papa, nomeando bispos e até mesmo construindo uma igreja.

Percebe-se, então, que a convivência entre catolicismo, ritos indígenas e, posteriormente, práticas das religiões africanas vindas pra cá com os escravos criou uma barreira muito tênue entre o permitido e o proibido para os colonos católicos. Assim, muitos colonos portugueses ou descendentes diretos destes recorriam a feitiçarias, benzeduras, bolsas de mandingas, sonhos, adivinhações, rezas e simpatias para resolver seus mais diversos problemas. Tais práticas eram muito usuais, também, devido ao pouco caso feito pela igreja em relação a elas. Sendo que, mesmo quando havia processos inquisitoriais contra os escravos que praticavam feitiçaria e estes eram condenados, alguns não sofriam punição devido à proteção de seus senhores, que os escondiam para não perder a mão-de-obra. Segundo os autores, a escravidão teria contribuído para a manutenção e popularização dos cultos de origem africana no Brasil, o qual incorporou vários aspectos do catolicismo e dos ritos indígenas.

Os autores também tratam da questão dos cristãos novos vindos para o Brasil na tentativa de fugir das pressões da Inquisição na Europa. Num primeiro momento, estes encontraram respostas positivas nas ações dos colonos, ficando os laços sociais entre cristãos novos e velhos estreitos através de casamentos, relações comerciais e de amizade, sendo que, também, aqui não havia tribunais inquisitoriais e, assim, os descendentes de judeus constituíram um importante agente da economia açucareira e amealharam riquezas, poder e prestigio no Nordeste açucareiro. Porém, com a Célebre Visitação (1591), os cristãos novos passaram a ser alvo de acusações por parte dos colonos – cristãos velhos-, o que, segundo os autores, se devia a preconceitos e rivalidades antes adormecidos, mas que vieram à tona com a presença da Inquisição no Brasil. Assim, muitos cristãos novos foram acusados de manter práticas judaicas em suas casas e zombar ou desmerecer os símbolos sagrados do cristianismo, sendo alguns deles condenados pelo Tribunal da Inquisição em Lisboa, no século XVI, XVII e XVII. Com as invasões holandesas, em 1630, os cristãos novos, que mantinham relações comerciais com os judeus de Amsterdã e ajudaram os holandeses a assenhorear-se de Pernambuco, viveram um hiato da perseguição católica, abraçaram o judaísmo e viram a vinda de muitos judeus holandeses, que fundariam a primeira sinagoga das Américas, em Recife. Porém, com a expulsão dos holandeses, em 1654, recomeçaram as perseguições e muitos dos cristãos novos que tinham se convertido ao judaísmo apostataram dessa religião para tornarem-se católicos outra vez. Nesse quadro, os autores atestam que o judaísmo dos cristãos novos era fragmentado, e sua noção de religião e sua identidade religiosa eram incertas, pois, de acordo com a historiadora Anita Novinsky[3],citada no livro, eles eram católicos renegados para os judeus e judeus apostatas para os católicos.

Assim então, durante a ocupação holandesa é relatado que muitos dos cristãos novos que aderiram ao judaísmo passaram a cometer sacrilégios e blasfêmias contra os santos e símbolos católicos. Porém, tais atitudes não eram exclusivas dos adeptos ao judaísmo no período, também muitos colonos católicos conservavam tais praticas em seus lares, sendo esta uma forma, segundo os autores, de aproximar o divino do seu cotidiano. Assim, brincavam, blasfemavam, judiavam das imagens e das invocações sagradas; incluíam até em seus momentos mais íntimos sua religiosidade, que, segundo os autores foi mais vivenciada que conceitualizada no Brasil colônia, isto, talvez, devido o despreparo dos padres e aos poucos bispados e conventos existentes aqui- o que revela a baixa estrutura da Igreja na Colônia. Nesse contexto, outro aspecto importante da religiosidade do brasileiro, ali formada, é a sua profunda ligação com os intercessores – santos, a Virgem Maria e até mesmo o próprio diabo e seus ajudantes.

Talvez pela já citada fragilidade da igreja no Brasil – colônia, o catolicismo, aqui, encontrou sua maior sustentação nas irmandades e nas festas religiosas. Enquanto padres e falsos padres mantinham ministérios torpes e indecorosos as irmandades se encarregavam da evangelização e propagação dos valores cristãos, do culto aos santos e a Virgem, bem como da rezas e procissões – as quais foram um elemento de celebração e integração usado desde os primórdios da colonização pelos jesuítas - e das festas, que refletiam bem o valor dado a exterioridade na experiência religiosa do Brasil.

Assim, as festas, principalmente no século XVIII quando foram chamadas de festas barrocas, tiveram além de um caráter religioso, um caráter político e social, isto porque representavam uma extensão de Portugal à Colônia, proporcionando uma ilusão de grandiosidade e integração social para os colonos. Luxo e ostentação eram marcas presentes, havendo até disputas de demonstração de riqueza e influência sobre a elite colonial por parte das irmandades. Negros e índios eram representados como estranhos e inferiores, sendo o índio aquele "contra quem se investia e de quem se ria", justificando-se assim, por meio do lúdico, a dominação. A elite colonial participava das festas patrocinado-as e também participando de jogos, enquanto os pobres e negros participavam por meio de danças – consideradas imorais pela igreja – e em representações de tradições e celebrações africanas. Então, as festas eram um espaço de sociabilidade e inclusão e ao mesmo tempo de desigualdade e diferenciação social, onde mostrava-se a união entre igreja, Estado e povo, explicitando esse traço marcante da religiosidade brasileira que é o encontro do lúdico, do popular e do profano com o espiritual.

Conclui-se, então, apontando a fragilidade estrutural da igreja Católica no Brasil no período colonial, e ressaltando como esta mesma igreja se desenvolveu e se tornou forte graças à intervenção popular e às influências recebidas de outras religiões e de outras culturas, o que culminaria nas mais diversas práticas sincréticas que alicerçam a fé dos brasileiros.

Desse modo, percebemos que o livro - que reúne pesquisas dos autores e de outros que trabalham cotidiano no Brasil- colônia- mostra as trocas e apropriações que formaram o imaginário religioso do país numa perspectiva que parte do estudo das minuciosidades, dos casos particulares para se chegar a uma idéia mais ampla da sociedade e de, como diria Febvre, da "aparelhagem mental" do período. Assim, estudando como se davam as relações cotidianas entre os colonos e seus santos, os autores nos mostram que a religiosidade no Brasil não se formou, efetivamente, por imposições, tirania, repressão e alienação, como se poderia pensar a priori, mas sim, foi na verdade construída por trocas e compensações, onde o erudito e o popular, assim como o sacro e o profano misturaram-se para determinar o modo como se vê a religião no Brasil até os dias de hoje.

Brasil de Todos os Santos é, portanto, uma obra de leitura fácil, divertida e atrativa para todos os públicos, porém, mais que isso, é um convite para um estudo mais profundo da religião e do cotidiano no Brasil Colônia, nos ajudando a entender quem somos enquanto nação e como desenvolvemos nossos conceitos religiosos.




Autor: Fernanda Vale


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