O Homem Contemplativo



Tinha tempo, nosso homem contemplativo. Por pouco, e apenas por força de uma ou duas atividades diárias obrigatórias, escapou da classificação de vagabundo, alcançando, numa suspeita auto-definição, a condição menos depreciativa de pensante. Sem esquecer que entre um e outro não existe lá tanta diferença, exceto que todo pensador em geral é meio desocupado, embora o contrário não se dê. O fato, ainda seguindo a linha de raciocínio de nosso personagem, é que no mais das vezes não temos tempo ou hábito de contemplar. Aqui nos referimos, claro, ao costume de olhar refletindo, não apenas ao ato de estudar visualmente o horizonte. A maioria de nós tem impulsos diversos movendo-nos para frente, a despeito de nem sabermos por que ou para que. Vamos logo aplicar um exemplo clássico: o sujeito tem família, filhos para criar. Não há que pensar em sentido para cumprir essa tarefa, ela será levada adiante, apenas. Dúvidas existenciais ou crises de opinião certamente ocorrerão, mas a manhã seguinte será outro dia em que o comum dos homens terá de providenciar o sustento da espécie e matar o leão que lhe cabe. Nesse caminho perpétuo, há pouco tempo para refletir sobre as escolhas, as renúncias, ou aquilo tudo que nos leva do que pensávamos ser, para aquilo que nos tornamos. Pois o nosso homem contemplativo podia quedar-se olhando o horizonte, buscando nele as respostas para várias perguntas com que a ociosidade do corpo preenchia-lhe a mente. Podia filosofar que o horizonte não se alcança: por mais que o persigamos sua linha é sempre deslocada para frente, e mais para a frente, indefinidamente. Olhando para trás, tampouco podemos alterar este outro horizonte de onde viemos. Eis que encontramos nosso personagem no meio do caminho, que afinal é mesmo o único ponto palpável de nossas vidas. Aqui temos a primeira ironia constatada por ele: estamos sempre vindo de algum lugar e desejando chegar a outro, mas sempre ficamos pelo meio. Existem aqueles que acreditam ter chegado aonde desejavam, mas sua paz só é imperturbável porque não se deixam parar, contemplativos como nosso amigo. Porque, se olhassem direito, veriam: se podem olhar, é porque não chegaram ainda a lugar algum, haja vista o horizonte bem ali diante de seus olhos. Se não chegaram, significa que não morreram. Se não acabou, como saber se chegaram? Trocando em miúdos, se é que se pode dar alguma lógica aos pensamentos do homem contemplativo: quem pode dizer se foi feliz, antes de morrer? E quem pode dizer que foi feliz, depois de morto? Cá estamos novamente, no meio do caminho, no meio termo, no limbo existencial entre o passado e o horizonte. E nosso homem contemplativo, que era amigo do homem unitário e compreendia sua descrença no Destino, percebeu que era ali, nessa metade do caminho entre o passado e o futuro, que as pessoas costumam acomodar o que chamam de Deus. Deus costuma ser, para a maioria, o que as empurra nesse lodo de incertezas. Mas nosso homem contemplativo enxergou em Deus uma perturbadora semelhança com os filhos daquele sujeito do exemplo clássico que mencionamos acima. Aquele mesmo que cumpria as tarefas sem preocupar-se com o sentido delas, apenas porque elas tem de ser cumpridas, e pronto. Não é mais ou menos assim que acredita-se em Deus? E o homem contemplativo perguntou-se: será que acreditava em Deus apenas para conseguir atravessar o pântano da dúvida? E uma vez que podia despender seu tempo respondendo às próprias questões, indagou-se mais: se para chegar a algum lugar precisamos determinar origem, destino e localização do viajante, qual é o terceiro ponto da minha navegação entre o passado e o futuro? Deus? Ou eu mesmo? Se é Deus, como posso fazer a triangulação que me apontará a direcão, se a mim não é dado ve-lo? Devo estabelecer uma posição imaginária para Deus, e navegar segundo essa crença? O homem contemplativo deixou-se levar por uma digressão, ao pensar que fora de muito proveito o tempo de escoteiro. Graças as expedições na mata fechada de um parque, encravado seguramentre entre 4 avenidas da cidade em que crescera; graças a experiencia de usar a bússola para localizar-se entre o estacionamento de bicicletas e a area de lazer das crianças nesta floresta urbana, é que nosso jovem contemplativo (ele ainda não era um homem, então) lograra atravessar a amazonia de sua infancia, de um ponto a outro, fazendo entre eles a necessária triangulação para a qual lhe fora dada uma agulha magnética e as orientações sobre como usa-la, tendo seu Norte/Deus apontado com razoável segurança. Se bem que, mesmo na bússola, já se pressente a tentação insidiosa do demonio, acrescentando à carta uma dúvida, de poucos graus no mapa, entre norte geografico e norte magnético, uma pequena variação na escala que pode levar o viajante ao pólo que Amundsen alcançou primeiro, ou ao pólo onde Scott morreu depois. E como pensasse nesse exemplo, o homem contemplativo reparou na curiosidade de que os homens que disputaram a conquista do Pólo Sul estão sepultados nas extremidades opostas da Terra, Scott sob o gelo Antártico, Amundsen desaparecido no horizonte do norte. Separados por oceanos de águas e dúvidas. Mas aqui, voltando ao mangue da vida onde está nosso homem contemplativo, não há bússola, não há instruções, no mais das vezes não há sequer referencia visual, uma vez que os pontos de partida e chegada frequentemente não podem ser vistos. O passado, perdido nas brumas enganadoras da memória. O futuro, intangível nas dobras postergadas do horizonte. E nosso homem contemplativo imaginou-se um eterno navegante desse oceano, sem saber direito se isso seria um castigo ou uma dádiva. Ou nenhum dos dois, apenas uma contingencia, como se remar fosse a mesma necessidade que movesse aquele homem do exemplo clássico lá de cima, mais uma vez voltamos a ele. Nosso homem contemplativo decidiu que se nesta navegação não se chega nunca a lugar algum, ao menos em suas divagações ele teria de chegar a algum lugar. E para isso racionalizou, resolveu estabelecer uma premissa, ou um ponto de partida, conforme lhe ensinaram no tempo de escoteiro. Definiu que ao menos uma pergunta teria de ser respondida, pelos critérios limitados de seu conhecimento humano: afinal, em qual momento desta navegação seria possível dizer que estamos satisfeitos, se não sabemos nunca de onde viemos, nem aonde vamos, tampouco se estamos indo a algum lugar? E colocou-se a responder essa questão. Mas o diabo (a expressão veio naturalmente, mas talvez seja uma contraposição que venha a calhar)... o diabo, dizíamos, é que uma pergunta sempre leva a outra, se desdobra em outras, numa chave de dúvidas. Mas antes que nos percamos novamente nesse mar de interrogações, vamos nos cingir a pergunta principal: em qual momento da navegação podemos nos considerar satisfeitos? E para facilitar, ou dar critérios mais científicos a esse problema, vamos reduzir os momentos da travessia a 3 situações: tempestade, calmaria, e movimento. Em qual delas o navegador é mais feliz? Parece uma questão fácil, mas o homem contemplativo dispõe de tempo para sopesar as variáveis. Vamos lá: a tempestade traz o risco iminente do naufrágio, torna praticamente impossível seguir em qualquer direção, traz o desafio quase único de permanecer à tona. O desafio, pois, seria vencido caso a embarcação atravessasse a tormenta sem afundar (neste caso somos a nave metafórica de nós mesmos, frase meio desprovida de sentido, mas que o homem contemplativo achou boa, e sendo dele a elucubração, vamos aceita-la). Entretanto, (eis novamente as dobras da questão, as dúvidas trazidas pela resposta, ou... o diabo)... entretanto, atravessada a tempestade e alcançada a calmaria, a pergunta inevitável: para que? Por que foi, afinal, que lutamos tanto contra o mar que insistia em nos tragar, se agora, calmo, ele não nos leva a lugar nenhum? Durante a borrasca, mal sabíamos para onde apontava a proa, se era para o horizonte ou para o passado. Mas agora que podemos novamente olhar a bússola e definir onde é o norte para onde íamos e onde ficava o sul de onde viemos, a questão reapresenta-se, sarcástica, como a rir-se dos esforços que fizemos para não naufragar: aonde queremos chegar? Está posta a calmaria. Sem risco de virar o barco, sem risco de não saber para onde está assestada a proa, mas também sem qualquer movimento. Se não sabemos de onde viemos nem aonde vamos, então a calmaria só pode nos conduzir a outra tempestade, outra possibilidade não há, lembrando que o horizonte é intocável, portanto não há terra que se possa avistar. Ainda que houvesse, outras terras imediatamente se poriam desafiadoras no horizonte. E cá estamos, parados no seguro mar da tranquilidade. Tantas palavras empregamos, e o poeta, com duas frases apenas, disse tudo, e disse mais, quando falou que "navegar é preciso, viver não é preciso". E nosso homem contemplativo concluiu: entre as duas, calmaria e tempestade, preferiria a tempestade. Ao menos ali estaria colocando em prática um dos sentidos das frases do poeta, qual seja, o de que navegar é necessário. Se é impreciso, na tormenta pouco importa, ali o que interessa é manter-se à tona. E nosso homem contemplativo mais uma vez invejou o homem clássico, de novo ele, aquele do exemplo primeiro, o mesmo que precisava sustentar os filhos e simplesmente navegava, apenas porque navegar era necessário. Mas nosso homem contemplativo queria mais, queria que seu navegar fosse preciso. Então chegamos a terceira das 3 possibilidades: o movimento. Seria este o momento em que o navegante encontraria maior satisfação? Não corre o risco iminente de afundar, não está parado, espectador, vendo a vida passar pela TV, como se só os outros participassem da programação. Segue agora um rumo que imagina correto. Mas seria o rumo preciso? Impossível saber, concluiu o homem contemplativo, uma vez que não podemos fazer a triangulação do escoteiro. Só podemos crer, imaginar que estamos na rota que nos levará ao lugar que imaginamos. E como somos senhores de nossa imaginação, podemos dar a esse lugar as feições que quisermos, será o paraíso, será conforme considerarmos justo para compensar as privações que tivemos e os riscos corridos durante a recente tempestade. Podemos usar toda a experiencia que acumulamos em muitos anos de navegação para revestir de sentido e lógica a decisão de apontar a proa para um determinado quadrante do oceano onde não há nenhuma terra a vista, em vez de voltar a proa para outra parte do mar onde tampouco havia qualquer terra que pudessemos ver, senão aquelas terras das quais lembramos de ter pisado um dia, sem ao certo saber se de fato as conhecemos, ou se sonhamos com elas, ou se as confundimos nos mapas da memória. Mas, vá lá, estamos indo a algum lugar. Talvez não cheguemos, talvez seja o lugar errado, talvez o porto a alcançar, ainda que depois dele se postem outros horizontes, seja um local coalhado das mais abjetas criaturas, portanto muito pior, comparado com o porto seguro de onde partimos (e se era seguro por que partimos? - perguntará, não sabemos se o homem contemplativo, ou aquele mesmo diabo das questões desdobradas, ou quem sabe um falando pelo outro?). Mas para o nosso homem contemplativo esta última questão não tem a menor importancia. Posto que está considerando a questão de modo científico, pouco importa se estávamos certos ou não ao partir, uma vez que não podemos voltar atrás. O que nos cumpre responder, e precisamos nos policiar para que o diabo não nos desvie das 3 questões fundamentais, é em qual situação, afinal, o navegante sente-se mais confortável? Tempestade, calmaria ou movimento? Risco iminente, risco nenhum ou movimento incerto? E nosso homem contemplativo decidiu-se. Concluiu que entre as 3 incertezas, entre as 3 possibilidades de ir a lugar nenhum, escolheria a tempestade. E justificou-se: na calmaria não se navega, e navegar é necessário. No movimento navega-se, mas o navegar não é preciso. Na tempestade essas questões tornam-se irrelevantes. Ali navegar não é necessário, navegar não é preciso. Ali, só viver é preciso. Viver, só ali é preciso. Viver só, ali, é preciso.
Autor: Luiz R.


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