Linguagem, Língua e Poder São Indissociáveis



Por Fernando Oliveira Santana Júnior
Graduado em Letras pela UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco) 

“Lingua patrona patronus est”.

A língua padrão é o patrão [1].

“A língua dominante é – ou tende a ser – sempre a língua daqueles que detém o poder econômico, social e político”. José Hildebrando Dacanal [2]

RESUMO: Acontecimentos histórico-políticos constituem marcos que afetam o uso lingüístico. Um exemplo disso nos foi legado pela Revolução Francesa. Antes dessa revolução, a língua predominante na sociedade francesa era a dos aristocratas. Todavia, quando a burguesia chegou ao poder econômico e político na França, a língua veiculada ou usada pelos burgueses passou a ser a língua padrão. Diante dessa constatação, entende-se que os estudos lingüísticos não devem isolar a língua do contexto histórico-político, visto que são indissociáveis. Portanto, a língua é utilizada como instrumento de domínio pela classe social que detém o poder.

Já dizia o célebre pai ou patrono da Lingüística Moderna: “A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro” (SAUSSURE, 1982, p. 16). Poderíamos dizer que a linguagem pertence a um eu que não pode excluir o outro, isto é, a unicidade se insere na coletividade, de modo que é incoerente demandar a exclusão do indivíduo que expressa plenamente o uso da linguagem, a qual tem como produto social a língua (Cf. Idem, 1982, p. 17). Dessa forma, a língua, pelo fato de ser produto social da linguagem, faz que ambas sejam indissociáveis do ponto de vista sociolingüístico, pois a linguagem pressupõe a língua e esta, o meio para o ato lingüístico: a sociedade coletiva e individualmente.

É inevitável conceber a língua como instrumento de poder em todo o contexto social. Nesse sentido, de forma contundente, insere-se um determinado grupo lingüístico que, por sua vez, elege e elenca uma variante lingüística como sendo padrão e extremamente escorreita para a sociedade. Fala-se, portanto, de uma sociedade complexamente definida e dividida em classes, de modo que uma delas é quem define o padrão lingüístico-social para as pessoas. À vista disso, caso as pessoas pertencentes a outros grupos lingüísticos não dominarem tal padrão, serão terminantemente excluídas e tidas como lingüisticamente equivocadas, apesar da gama de variações dentro de uma língua (Cf. DACANAL, 1985, p. 18).

Se um grupo lingüístico dentro de um povo surgir com autoridade (por que não despotismo em vários casos?) política, logo imporá uma forma de linguagem que deve ser aceita como patrona. Não obstante, é bem verdade que detrás da lingua patrona se encontram os patroni de uma classe detentora do poder econômico, político e social, os quais dispõem “de uma significativa concentração de poder [...] [e] [...] fala a língua correta. E a impõem aos demais”, segundo Dacanal (1985, p. 28).

A Gramática passa a ser o grande instrumento de manipulação lingüística que tal classe exercerá sobre as pessoas. Isso ocorre pela imposição de uma língua unívoca ou uniforme, desconhecendo (ou fazendo vista grossa?) a pluralidade como elemento intrínseco da língua e o fato de que qualquer variante lingüística possui uma gramática interna [3], a princípio, e estrutural [4], a posteriori.

Vamos ver o exemplo deixado pela Revolução Francesa. Antes dessa revolução, ocorrida no final do século XVIII, a língua dos burgueses era fadada ao escárnio e/ou à zombaria pela nobreza aristocrática da França. Resultado da revolução: a derrocada da classe social nobre-aristocrática para dar lugar à burguesia (composta de comerciantes, banqueiros e industriais). Á vista disso, “a mudança de classe social também significou mudança de variedade lingüística dominante” (BAGNO, 1997, p. 61). Em termos lingüísticos, isso fomentou que /λ/ (símbolo usado pelos lingüistas para representar o som lhe) desse lugar ao /y/, uma vez que os burgueses, diferentemente dos aristocratas, falavam este e faziam sumir aquele. Por conseguinte, já no princípio do século XIX, os franceses não sabiam mais a antiga pronúncia /λ/.

A chamada “pequena-burguesia” pelo autor de Linguagem, Poder e Ensino da Língua (1985, p. 29) [5] corresponde relativamente ao que Bechara chama de “modalidade coloquial (ou classe dita ‘oprimida’)” (1989, p. 12) em função de propostas lingüisticamente revolucionárias por parte das classes “inferiores”: mudanças lingüísticas a bel-prazer pelo viés da inaceitação da variante sustentada pela classe “alta”.

Dacanal propõe que o alvo do ensino da língua “será sempre o de levar o aluno a falar e escrever seu idioma segundo as normas socialmente aceitas” (1985, p. 38). Isso deve ser feito, segundo Dacanal, considerando a realidade sócio-econômica, o meio cultural e o nível da escolarização dos alunos dentro de contextos identificáveis que determinarão os procedimentos a serem usados (Cf. Idem, 1985, p. 38-41).

Insere-se, por sua relevância temática, o que disse Evanildo Bechara:

Ora, a educação lingüística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber lingüístico prévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação social, mas também não lhe furta o direito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimônio inicial. As normas da classe dita “opressora” e “dominante” não serão nem melhores nem piores, ou as normas da língua literária não serão nem melhores ou nem piores do que as usadas na língua coloquial (1989, p. 12).

O filólogo ainda ressalta que ambas as classes defendem o indivíduo “monolíngue”, ou seja, uma classe só considera uma variante em detrimento da outra, impedindo o indivíduo de enriquecer-se lingüisticamente pelo conhecer a “outra variante”. Desse modo, é mais oportuno o conhecimento de várias modalidades lingüísticas (que é liberdade no contexto lingüístico), que faz do indivíduo um “poliglota” em sua língua, do que a supressão de uma em detrimento de outra, e isso constitui opressão (Cf. Idem, 1989, p. 13-14).

Portanto, Dacanal e Bechara [6], convergem para a manutenção do ensino da Gramática Normativa, que constitui a lingua patrona, mesmo com pessoas patroni dessa modalidade lingüística, bem como para a aceitação e o respeito para com as variantes dialetais ou coloquiais. Isso converge para o que os lingüistas chamam de padrão de adequabilidade e aceitabilidade, quanto ao uso de uma modalidade de língua.

NOTAS

[1] Sentença que criamos a partir do latim, feito ocorrido com licença lingüístico-semântica, para expressar a suma das análises de Dacanal, sobretudo “a língua como imposição social e histórica” e “instrumento de poder” (Cf. 1985, p. 17-21/23-25). Assim, a língua, dependendo do uso que o homem queira dar a ela, pode ser personificada na figura do patrão déspota.

[2] (1985, p. 19).

[3] Aprendida e apreendida pelo que se conhece como letramento, que consiste no contato do indivíduo, quando criança, com sua comunidade lingüística, da qual adquirirá a língua.

[4] Que se refere à existência de “uma gramática no sentido lato do termo. Esta existe, necessariamente, pois a existência de normas básicas mínimas é o próprio fundamento desta conversão que se chama língua” (DACANAL, 1985, p. 28). Desse modo, pesquisas sociolingüísticas demonstram o funcionamento gramatical de várias variantes lingüísticas, comprovando que elas têm uma razão (gramatical) de ser.

[5] Classe de pessoas que não fazem parte da elite, nem da classe baixa, como se entende, mas que é intermediária e que se ilude, segundo Dacanal, com “o suposto direito que um indivíduo tem de alterar a seu bel-prazer a língua que fala [como] [...] um ato de liberdade” (1985, p. 29).

[6] Os quais, a propósito, escreveram seus respectivos livros em momentos próximos.


REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. A Língua de Eulália. 9. ed. São Paulo: Contexto, 1997. 215 p.

BECHARA, Evanildo. Ensino da Gramática: opressão? liberdade? 4. ed. São Paulo: Ática, 1989. 77 p.

DACANAL, José Hildebrando. Linguagem, Poder e Ensino da Língua. Porto Alegre: Mercado Aberto: 1985. 52 p.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral [Curs de Linguistique générale] Trad. de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. 279 p.
Autor: Fernando Oliveira Santana Júnior


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