Doenças genéticas na comunidade judaica e aconselhamento genético com suas implicações



Segundo a literatura científica, pode-se considerar as doenças genéticas como uma das condições mais democráticas da Humanidade. “Assombram” a todas as populações, não respeitando, em seu conjunto, sexo, etnia, cor ou condição sócio-político-econômica. Todavia, há algumas anomalias genéticas que acometem, preferencialmente, determinados grupos populacionais ou étnicos com frequência especialmente altas, mesmo apresentando-se raras em outros povos. “Isolado” é o termo utilizado para se referir a um grupo populacional de tamanho variável e que se apresentaram separados do restante da espécie humana no decorrer de certo número de gerações. Isso ocorre por variadas barreiras, quer sejam geográficas, políticas, sociais ou outra, levando a uma alta frequência de casamentos endogâmicos. O presente artigo tem como objetivo esclarecer os acadêmicos do curso de Biomedicina e de outros curso da área da saúde a respeito de doenças como Tay-Sachs, Gaucher, Nielmann-Pick e Bloom.

INTRODUÇÃO

Os séculos gritam. O grito seu é pasmo, é medonho e ecoa por entre as trevas do códon humanóide.

Em grupos populacionais isolados durante algum período da história, as frequências de determinado gene em especial pode se tornar demasiadamente – ou especialmente – alta por dois fenômeno
s, segundo Roberto Muller (2000):

a)"Endocruzamento ou Casamentos Consanguíneos: - uma vez que, como se sabe, os casamentos consanguíneos aumentam a probabilidade de homozigose entre os filhos resultantes deles e que, nos isolados, conclui-se que a probabilidade e doenças recessivas raras nos demais grupos populacionais seria maior nesse grupo.

b)Deriva Genética: - quando determinados genes são eliminados ou tem sua frequência aumentada devido a variações aleatórias nas frequências gênicas ao longo das gerações."

Entre os isolados mais conhecidos estão a comunidade Amish e Huteritas nos Estados Unidos da América. A comunidade judaica, por razões históricas, por muito tempo constituiu isolamento e, como consequência, apresenta frequências muito altas de certas doenças que as demais populações. Esse fato merece ser melhor estudado.

ORIGENS DA POPULAÇÃO JUDAICA

Os judeus são um povo caucasóide do Oriente Médio. Sua história é seu orgulho e grande motivo de culto em sua religião; está descrita na Torá, o Antigo Testamento da Bíblia Cristã.

Os judeus foram palco de uma longa história de perseguições em várias terras, resultando numa população que teve frequentemente seus números e suas distribuições alteradas ao longo dos séculos. Os limites em ser ou não judeu gera um grande debáte sócio-político que parece não ter fim.

1.Os patriarcas e o Êxodo:

De acordo cm a tradição judaico-cristã, a história judaica começa com o chamado de Deus ao hebreu Abraão. Abraão teria sido um fiel seguidor do monoteísmo em uma época de idolatria, o que fez com que Deus fizesse prometesse dar descendência à Abraão e fazer desta o povo eleito deste Deus. Esta promessa se cumpriria com o nascimento de Isaque, que daria origem à Jacó e que este seria pai de doze filhos, os quais seriam os pais das doze tribos de Israel. Após a imigração para o Egito devido a uma grande fome, a família de Jacó cresce em número e influência, o que leva à sua escravização por parte dos egípcios, e o surgimento de um libertador, Moisés, que sob a mão de Deus tira o povo do Egito, entrega-lhes às leis divinas e dá aos filhos de Jacó um sentido de "nação". Após uma peregrinação de quarenta anos no deserto, este povo teria, sob o comando de Josué conquistado a terra de Canaã.

A narrativa do Êxodo no entanto não tem encontrado respaldo fora dos escritos bíblicos. Mesmo os documentos egípcios da época (conforme calculado pelo Tanakh) encontrados até agora não tem fornecido informações a respeito do êxodo israelita. No entanto, alguns estudiosos tendo encontrado menções aos hapiru, têm acreditando que este termo se refira aos hebreus.

2.Os juízes e a monarquia unida:

Os israelitas conquistaram algumas regiões de Canaã, mas ainda assim não mantiveram uma unidade nacional. Cada tribo mantinha suas leis e costumes e uniam-se ou combatiam entre si de acordo com as suas conveniências. Geralmente cada tribo era governada e julgada por juízes, pessoas que seriam determinadas por D-us para tal cargo.

Posteriormente, os israelitas querendo imitar outras nações, pedem um rei, e Saul, escolhido por D-us torna-se rei de Israel. Mas sua rebeldia ao seguir os mandamentos da Torá faz com que perca o reinado, e após alguns contra-tempos, Davi, um pastor-guerreiro de Judá é escolhido rei. Aqui apresentam-se a primeira vez a unificação das tribos em uma única nação, e inicia-se o período áureo da história judaica, que será consolidado com o reinado de Salomão, filho de Davi.

3.A divisão dos reinos:

Com o descontentamento constante das tribos sob o domínio de Salomão, o reino se divide em duas partes sob o governo o filho de Salomão Roboão e Jeroboão: o reino de Judá ao sul e o reino de Israel ao norte. Diversas crises políticas e religiosas acabam levando à decadência dos dois reinos: o reino de israel é destruído pelos assírios ,enquanto o reino de Judá é destruído pelos babilônios. No exílio, o povo israelita começa a tomar consciência do seu papel no "Plano de D-us" e, após alguns anos, retornam para sua terra e reconstroem o Templo, reorganizando suas Escrituras. Com estes fatos encerra-se a história do período das Escrituras Hebraicas.

4.A Era Talmúdica

Com o retorno de algumas comunidades judaicas para a Judéia , uma renovação religiosa levou à diversos eventos que seriam fundamentais para o surgimento do Judaísmo como uma religião mundial . Entre estes eventos podemos mencionar a unificação das doutrinas mosaicas , o estabelecimento de um cânon , a reconstrução do Templo de Jerusalém e a adoção da noção do "povo judeu" como povo escolhido e através do qual seria redimida toda a humanidade. A comunidade judaica da Judéia cresceu com relativa autonomia sob o domínio persa, mas a história judaica tomará importância com a conquista da Palestina por Alexandre Magno em 332 a.C. .Com a morte de Alexandre , o seu império foi dividido entre seus generais ,e a Judéia foi dominada pelos Ptolomeus e depois pelos Selêucidas ,contra os quais os judeus moveram revoltas que culminaram em sua independência.

Com a independência e o domínio dos Macabeus como reis e sacerdotes , surgem as diversas ramificações do judaísmo da época do Segundo Templo : os fariseus ,os saduceus e os essênios.As diversas intrigas entre as diversas divisões do judaísmo levou à conquista da Judéia pelo Império Romano.

5.Eras Medieval, Moderna e Contemporânea:

Florescimento da cultura judaica na Espanha, massacre dos judeus em Granada, expulsão da Alemanha e emigração para a Europa Oriental, massacre dos judeus na Espanha, massacre de cristãos-novos em Portugal, o retorno dos judeus para a Inglaterra, emancipação na América, emancipação na França, fundação da Universidade Hebraica em Jerusalém, Leis de Nuremberg, Segunda Guerra Mundial, criação do Estado de Israel, primeira guerra árabe-israelense, prisão e condenação do oficial nazista Adolph Eichman, Israel retira-se da Península do Sinai.

A POPULAÇÃO JUDAICA E AS DOENÇAS GENÉTICAS

A pergunta é: por que certas doenças são mais prevalentes na população judaica? Como descrito, nos isolados ocorrem dois fenômenos que aumentam as frequências de determinados genes raros.

Em se tratando da comunidade judaica, dois estudos (Goldschmidt, 1960 e Frafir, 1972) avaliaram a frequência de casamentos consanguíneos em Israel e encontraram altas frequências.

Por conseguinte, as frequências são as praticamente mesmas quando se estudam judeus de diferentes países, como Alemanha, Polônia, Itália, França e Israel.

PRINCIPAIS DOENÇAS DOS JUDEUS ASHKENAZIM

1. TAY-SACHS

É uma doença autossômica recessiva descrita pela primeira vez em 1881 por Tay e, vários anos depois, independentemente, por Sachs. É causada por mutações no gene Hex A, localizado no braço longo do cromossomo 15, na porção q23 – q24. Tais mutações resultam na ausência da sub-unidade a do RNA mensageiro que, por sua vez, leva a deficiência de uma isoenzima da B-Hexosamicidase, o que leva a uma deficiência na degradação lisossomal do gangliosídeo GM2.

Segundo um artigo da biomédica geneticista Lygia da Veiga Pereira, publicado no São Paulo Medical Journal (2001):

"Na população judaica Ashkenazita a incidência da doença é de um para cada 3.500 nascimentos, e a freqüência de portadores é de um para cada 29 indivíduos. Programas de triagem de portadores da doença de Tay-Sachs reduziram a incidência da doença em 90% nas populações em risco de diversos países. A população judaica brasileira é estimada em 90.000 indivíduos. Atualmente não há programa de triagem populacional da doença de Tay-Sachs nessa população."

A síndrome é caracterizada por um retardo no desenvolvimento neuro-psíquico-motor cujo início pode ocorrer por volta dos 3 a 5 meses de vida, como uma leve fraqueza motora e uma reação exagerada ao som, geralmente na extensão súbita dos membros, simulando o refleso de Moro (Zam Mustacchi, 2000). Logos são acrescentados, a esses fenômenos, a paralisia, a demência e a cegueira com a morte ocorrendo geralmente aos dois ou três anos de idade. Segundo Sergio Peres, não há, até o momento, tratamento eficaz.

O diagnostico é feito com base nos fenômenos descritos e através da presença de uma mancha cinzento-esbranquiçada ao redor da mácula, devido a presença de células ganglionares com presença de lípides, formando uma mancha vermelho-cereja ao exame de fundo-de-olho. O diagnóstico pode ser confirmado por técnicas de hibridação in situ fluorescente (FISH).

O diagnostico pré-natal pode ser feito pela determinação da atividade da Hexosaminidase A em células fetais obtidas das vilosidades coriônicas ou por amniocentese. Entretanto, as técnicas de DNA tem-se mostrado mais eficazes.

2. DOENÇA DE GAUCHER

Descrita por Philippe Gaucher, em 1882, é bastante comum e se caracteriza pelo acúmulo de um glicolipídeo (o glicocerebrosídeo) nas células do baço, do fígado e do osso. É causada por mutações do gene que codifica a enzima glicocerebrosidase, no braço longo do cromossomo 1, em sua porção q21 –q31. A herança é autossômica recessiva, sua incidência global é desconhecida, porém se estima que seja de 1:7.000 ou 1:10.000 judeus Ashkenazim.

Segundo Jovino Ferreira, em um artigo publicado na Revista Brasileira de Hamatologia e Hemoterapia (2008):

"Tal deficiência induz ao acúmulo deste glicolipídio, levando às alterações histológicas, que são especialmente evidenciadas nos órgãos ricos em elementos do sistema imunológico monocítico-fagocitário (fígado, baço, linfonodos e medula óssea). Foi classificada em três tipos (1, 2 e 3), tendo como base a presença e a gravidade de envolvimento neurológico. O tipo 1 ou não neuropático (adulto) é a forma mais comum da doença, correspondendo a 99% dos casos. É especialmente prevalente entre os judeus Ashkenazi com uma incidência de cerca de 1:450 indivíduos e de 1:40.000 na população geral. O tipo 2 ou forma neuropática aguda (infantil) caracteriza-se pelo início precoce e rapidamente progressivo dos sintomas na infância (entre quatro e seis meses) e pelo acentuado comprometimento neurológico. O tipo 3 ou neuropático subagudo (juvenil) manifesta-se com distúrbios neurológicos no final da primeira década de vida e tem uma progressão mais lenta do que a forma aguda.

O diagnóstico da DG é estabelecido por teste que demonstra a deficiência da atividade da enzima glucocerebrosidase nos leucócitos e fibroblastos da pele cultivados, com um resultado que geralmente expressa atividade 30% menor que a normal. Transmitida por herança autossômica recessiva, definida pela presença de dois alelos mutantes para o gene da beta-glicosidase localizado na região q21 do cromossomo 1. A presença de dois alelos mutantes deste gene serve como confirmação do diagnóstico. A biópsia de medula óssea pode demonstrar a presença de células de Gaucher, entretanto, as pseudocélulas de Gaucher podem muitas vezes levar a diagnósticos errôneos, sendo imperativo a dosagem enzimática para o diagnóstico."

Segundo o mesmo artigo, onde foram estudados casos da anomalia no Estado de Santa Catarina, o tratamento da maioria dos pacientes sintomáticos era essencialmente de suporte clínico, envolvendo o uso de analgésicos e transfusões sanguíneas. A partir de 1990 foi possível demonstrar respostas clínicas animadoras com glucocerebrosidase derivada de placenta humana (alglucerase) e que tinha os macrófagos como alvos.Esta tinha um limite de fornecimento e foi substituída por uma forma de enzima desenvolvida a partir da técnica do DNA recombinante, a imiglucerase, capaz de suprir a produção em grandes quantidades e com excelentes resultados.

A pesquisa dos geneticistas brasileiros (anteriormente citados) divulgou tais conclusões:

1. A doença de Gaucher tipo 1 é a forma clínica mais comum. Anemia, trombocitopenia, hepatoesplenomegalia e osteopenia, associadas à deficiência enzimática da glicocerebrosidase, são as características mais freqüentes dos pacientes com doença de Gaucher em Santa Catarina.

2. O alelo N370S é o mais freqüente e está relacionado com o tipo 1. O alelo L444P em homozigose sugere letalidade precoce. O estudo do genótipo auxilia no suporte clínico e é necessário para o aconselhamento genético.

3. A TRE é efetiva e segura no tratamento da doença de Gaucher tipo 1.

DOENÇA DE NIEMANN-PICK

É uma doença autossômica recessiva cujo gene se encontra no braço curto do cromossomo 11, em sua porção p15.1 – p15.4, e que apresenta cinco fenótipos que:

TIPO A: doença neurodegenerativa infantil. Fatal aos 3 e 4 anos;

TIPO B: acomete o Sistema Retículo-Endotelial, com pouco ou nenhum envolvimento do Sistema Nervoso Central. Os pacientes costumam chegar à idade adulta em boa saúde;

TIPO C: inicia-se no primeiro ou segundo ano de vida co alterações neurológicas lentas. A hepatoesplenomegalia é menor que a que ocorre nas formas anteriores. A sobrevida é variável, porém é fatal antes dos 20 anos;

TIPO D: descrita em apenas uma família na Nova Escócia. Inicia-se aos cinco anos, assemelha-se ao tipo C e tem evolução protraída;

TIPO E: é raro; causa uma hematoesplenomegalia e não há envolvimento do Sistema Nervoso Central.

Os sintomas mais comuns são: perda da capacidade de falar, de andar, dificuldade na atividade celular, dificuldade ao comer, insuficiência respiratória e desconexão do meio.

O diagnóstico da infermedade de Niemann-Pick se confirma com os estudos enzimáticos e com uma biópsia na pele do paciente, ao mesmo tempo há estudios moleculares que determinam o tipo genético da enfermedade.

O tratamento é: atividades fisioterapêuticas, melhoramentos nutricionais e tratamento das crises epiléticas.


SÍNDROME DE BLOOM

É uma doença rara, autossômica recessiva, cujo gene está localizado em 15q27.1, caracteriza-se por um retardo grave do crescimento pré o pós-natal associado a lesões cutâneas faciais causadas pelas luz do Sol, além de face característica, infertilidade, predisposição ao câncer, instabilidade cromossômica e imunodeficiência.

OUTRAS DOENÇAS MAIS FREQUENTES EM JUDEUS

Outras doenças incluem a Disautonomia Familiar e a deficiência de 21-hidroxilase, alem da Distrofia de Torsão e a Síndrome de Gilles de La Tourette.

CONCLUSÃO

As etnias isoladas tendem a apresentar predisposição para distúrbios cromossômicos raros em outros grupos populacionais. Tay-Sachs, Gaucher, Niemann-Pickk e Bloom são doenças comuns em certos grupos judaicos, embora jamais descritas em outros povos.

Judeus Ashkenazim devem ser encaminhados à uma consulta de Aconselhamento Genético, pois:

"A arte do aconselhamento repousa na determinação da melhor época e circunstância para o fornecimento de cada informação, que pode ser complexa, mas é essencial"

- J. Hall

REFERÊNCIAS

Mustacchi, Zam. Genética Baseada em Evidências: síndromes e heranças. São Paulo: CID Editora, 2000.

Ferreira, Jovino S., Ferreira, Vera Lúcia P. C. and Ferreira, David C. Estudo da doença de Gaucher em Santa Catarina. Rev. Bras. Hematol. Hemoter., Fev 2008, vol.30, no.1, p.5-11. ISSN 1516-8484

Martins, Ana M. et al. Tratamento da doença de Gaucher: um consenso brasileiro. Rev. Bras. Hematol. Hemoter., Jun 2003, vol.25, no.2, p.89-95. ISSN 1516-8484


Autor: Bernardo Mattiello Cazella


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