MISTÉRIO PROFUNDO NA ÚLTIMA PROFECIA DE KEEL E PELLINGTON



MISTÉRIO PROFUNDO NA ÚLTIMA

PROFECIA DE KEEL E PELLINGTON

"Os mortos não voltam mais. Bebe teu vinho." Frases de um "rubai" desse extraordinário Omar Khayyam, deixadas por ele na antiga Pérsia por volta do ano 1150, juntamente com centenas de outros quartetos para deleite e reflexão de quem os lesse. Mas às vezes os mortos retornam, como nos contam inúmeros relatos de lugares mal-assombrados ao redor do mundo e muito bem documentados em canais a cabo como A&E Mundo, Infinito, History Channel, etc.; ou se não, pelo menos voltam no pensamento de muitos autores e diretores de cinema. A citação vem a propósito deste "A Última Profecia" ("The Mothman Prophecies"), ou das profecias do homem-mariposa, ente fictício (?) do livro de John A. Keel, inspirado em visões e eventos estranhos ocorridos em cidadezinha do interior dos EUA e relatados por pessoas aparentemente "sugestionáveis ou perturbadas", tudo isso ainda no inverno de 1966, bem assim na queda de uma ponte sobre o rio Ohio por causas desconhecidas.

Segundo seus realizadores, não se trata de um filme de monstros ou demônios, mas sim de um mistério "encrustado" em elementos surrealistas, ou seja, com ativação sistemática do inconsciente e do que poderia (?) se chamar de "irracional" dos pesadelos.

A síntese do argumento seria: A mulher de um jornalista sai gravemente ferida de desastre de automóvel; a tomografia no hospital revela a existência de tumor cerebral. Antes de morrer, ela desenha visões supostamente provocadoras da colisão. Dois anos depois, o viúvo, John Klein (Richard Gere), se vê perdido à noite em estrada deserta, quando seu carro pifa (verificaria depois não ter havido problema algum com o motor). Ao buscar socorro numa casa, é recebido com arma apontada para o rosto, acusado pelo morador de já ter estado lá duas vezes antes... Klein também não sabe explicar como chegou ali, percorrendo sem sentir e durante curtíssimo tempo, mais de 600 km. A partir daí e até ao final, estaremos na "visão" (e na experiência) de Klein, ainda traumatizado pela perda da mulher, e no cotidiano inquietante de alguns personagens menores dos quais emergem relatos de telefonemas misteriosos, sonhos recorrentes, profecias de desastres e aparições de seres voadores ou gigantes vindos de outros sistemas solares... [Importante lembrar que o fato de estar em um lugar sem saber como foi parar lá é uma homenagem indireta ao excelente "The Interrupted Journey", de John G. Fuller, que relatou o caso verídico de Betty e Barney Hill, considerado o 1o casal abduzido da história da ufologia moderna].

A propósito, em seu livro "Os grandes enigmas da humanidade", o brilhante escritor Luiz Carlos Lisboa revela a existência de mistérios sem fim nas entrelinhas da realidade, alguns dos quais chegam a "fazer sombra" à insolitude do mistério do Mothman, mesmo sendo este um intrincado conjunto de dados freqüentemente incompreensíveis e de difícil conexão com qualquer coisa conhecida. É importante salientar que num país como os EUA, onde muitos estão convencidos da presença e domínio psíquico dos extraterrestres, abduções e sob o pavor de ataques terroristas, não admira tenha o autor John A. Keel salpicado toda a trama de "A Última Profecia" com fatos concretos para dar ao filme 120 min. de suspense, via incidentes inexplicáveis e alguns dados reais oriundos de suas próprias pesquisas no insólito. Daí talvez se explique o êxito bilhetérico de filmes como "O Bebê de Rosemary" (Rosemary's Baby), de Roman Polanski (1968), de seriados como "Arquivo X" e 'LOST' [ver nosso comentário sobre "LOST" neste website], deste "A Última Profecia" e de muitos outros, alimentados por uma cosmovisão menos policiada dos "Segredos de Estado".

A direção do britânico Mike Pellington é competente, fruto de lições bem digeridas dos grandes cineastas e daqueles capazes de trabalhar os recursos mecânicos do cinema com brilho e criatividade. Assim também Mike atuou com eficácia em seu último filme exibido no Brasil, chamado "O Suspeito da Rua Arlington" (Arlington Road), de 1999, suspense no qual denuncia o terrorismo interno numa América beirando a paranóia. Aqui Pellington faz uso inteligente de deslocamentos de imagens, profusão/difusão de luzes, fosforescências, sobre-exposições, etc., e apreende cinematograficamente o clima soturno do inverno na Virgínia Ocidental, com cenas bem construídas de silêncios e tempos mortos a sugerirem algo mais para o espectador atento, com jogo de sombras típicas do filme "noir" e o uso do contracampo oculto, como no primeiro susto dado na platéia (a mulher morta reaparece na cama do viúvo insone).

Na esteira dos ensinamentos de Val Lewton e Jacques Tourneur, nos anos 40, MP evita mostrar fantasmas ou monstros alienígenas, mas apenas sugerir a sua presença, o que, a bem da verdade, é muito mais impactante por corresponder mais à realidade dos relatos históricos. Evita também o clichê saturado de aproximação erótica entre a policial e o personagem central. Os "plongées" verticais e o "flashforward" do pensamento de Klein, quando se olha no espelho e se vê batendo com a cabeça para quebrá-lo, marcam bem o isolamento do aturdido jornalista, enquanto os giros da "steadicam" evitam o excesso de cortes nos diálogos. O cineasta também faz uso de muitos "close-ups", alguns talvez desnecessários, preenchendo assim todos os espaços do retângulo: sabemos terem os planos próximos uma função específica para sugerir estados d'alma revelados pela captação dos rostos. A seqüência final editada por Brian Berdan, sob supervisão de MP, fragmentando a queda da ponte e acrescida das cenas dentro do carro submerso, é cinema de primeira linha.

O trabalho em cores intermediárias do veterano Fred Murphy, responsável pela cinematografia de "Os Vivos e os Mortos" ('The Dead'), de John Huston (1987), baseado em conto de James Joyce, um dos mais bem escritos em língua inglesa, valoriza qualitativamente o filme. Louve-se a música de Jeff Rona, sugestiva da estranheza dos eventos, bem como a trilha sonora própria da realidade do mistério, com as inserções de ruídos e de detalhes de fios de aço e arrebites se partindo na referida seqüência da ponte (o desastre de fato ocorreu em 1977) e no acidente do início.

Não há atuações excepcionais, mas a correção exigida para as diversas situações vividas por Richard Gere, Laura Linney (já atuaram juntos, em campos opostos, em "As Duas Faces de um Crime", no original "Primal Fear", de Gregory Hoblit, de 1966), Bill Patton e Alan Bates, este com boa presença no ex-professor autor de livro sobre o mundo misterioso subjacente ao 'Mothman'. Debra Lessing (a mulher morta no início) aparece com discrição, juntamente com o elenco de apoio.

Sem dúvida, "A Última Profecia" é um dos mais extraordinários filmes do gênero. Vale a pena ver pelo seu conjunto imagístico e assaz instigante, sem banalizar o enigmático e o numinoso, além de ampliar sobremaneira a biblioteca mental dos amantes do mistério.

Prof. João Valente de Miranda.

QUEM É MIKE PELLINGTON

Mike Pellington, o realizador de "A Última Profecia", nasceu na Inglaterra nos anos 70. Estudou em Londres mas diplomou-se em cinema pela Universidade da Virgínia Ocidental, começando sua carreira profissional em documentários propagandísticos, alguns dos quais premiados. Chamou atenção pelo média-metragem sobre Jon Bon Jovi, estrela do "rock", em 1997, e depois por dois longas, o elogiado "Indo Até o Fim" (Going All the Way), também de 1997, e "O Suspeito da Rua Arlington" (Arlington Road), de 1999. Este põe em confronto Jeff Bridges e Tim Robbins num suspense quase profético e assustador, dentro do qual os vizinhos, aparentemente inocentes, podem não ser confiáveis. A "Última Profecia", segundo se lê, pode ser importante degrau na trajetória deste cineasta britânico. Admirador de nomes como Welles, Kubrick, Polanski, Scott, Reed, para ficarmos só nestes, ele realiza o êxito profissional de um bom cineasta, quando consegue combinar a arte da imagem em movimento com a comunicação plena ao grande público.


Autor: João Valente


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