Se o Inferno Existe, Então Deus é um Derrotado



Se o inferno existe, então Deus é um derrotado

A Idade Média foi uma época em que o cristianismo, através da Igreja Católica, dominou quase que por completo a produção do conhecimento. Era nos mosteiros e nas abadias que se produzia o conhecimento e o saber que iriam predominar nas mais diversas áreas: filosofia, história, astronomia, etc. Não é que não houvesse produção de saber e de conhecimento fora da Igreja, mas como esta possuía um grande domínio político e econômico, produzir algo que contrariasse ou que contestasse a rígida e dogmática doutrina católica, era algo extremamente perigoso (basta lembrar de todos aqueles que penaram nas prisões ou que foram queimados nas fogueiras da Santa Inquisição). Entretanto, mesmo com esses gravíssimos e iminentes riscos à vida, existiram muitos estudiosos que, mesmo pertencendo aos quadros da Igreja, desenvolveram teorias que acabavam por desafiar e contrariar a ortodoxia católica. E quando não eram presos ou queimados, eram suas obras que pagavam a penitência, sendo destruídas ou simplesmente proibidas de circular. Esse é o caso, por exemplo, de João Escoto Erígena, que por ter uma teoria que afirmava, dentre muitas outras coisas, que a existência do inferno (física e materialmente) era algo que pressupunha a derrota de Deus para o demônio, teve suas obras condenadas pelos concílios de Valence (855) e de Langres (859). E é exatamente desse filósofo e teólogo, que pertencia aos quadros da Igreja, que iremos tratar aqui.

João Escoto Erígena nasceu na Irlanda por volta de 810 e foi para a França entre 840 e 847. Professor da Escola do Palácio, Erígena viveu na corte brilhante e culta de Carlos, o calvo. São duas as suas obras principais: De praedestinatione e De divisione naturae. O De praedestinatione foi escrito com o intuito de responder a um tal Gotteschalk, que possuía uma teoria na qual sustentava haver uma predestinação divina à perdição eterna, assim como há para a salvação; Erígena irá negar veementemente essa predestinação e lançará a partir dessa obra as teses mais ousadas que sustentaria mais tarde.

Para a morte de Escoto Erígena existem duas hipóteses. A primeira, que embora seja a menos arriscada não é necessariamente a verdadeira, é a de que morreu na França de causas naturais, mais ou menos na mesma época de Carlos, o calvo, isto é, por volta de 877. A outra, mais romanesca, leva-o a voltar da França para a Inglaterra depois da morte de Carlos, o calvo, para ensinar na abadia de Malmesbury e aí morrer assassinado por seus alunos. Embora esta última seja considerada a menos provável, veremos que devido à força de suas idéias e de sua doutrina, isso não seria algo que beire o absurdo; muito pelo contrário.

Segundo Étienne Gilson em seu livro, A filosofia na Idade Média, a personalidade de João Escoto Erígena domina sua época, e sua obra apresenta um caráter extremamente novo na história do pensamento ocidental. Não por acaso, a sua doutrina recebeu as interpretações mais divergentes. J. Görres, por exemplo, acusa Erígena de ter confundido religião com filosofia. Já Barth Houréau considerava-o um "mui livre pensador".

Antes de penetrarmos na doutrina de Erígena, convém antes lembrar que em momento algum ele põe em dúvida a existência de Deus ou a divindade de Jesus. A sua intenção não é a de afrontar as Sagradas Escrituras e muito menos de tentar desacredita-las. O seu objetivo maior é o de utilizar a razão e a filosofia para compreender de forma mais profunda e perfeita o Evangelho, pois se foi através dele que Deus falou, é impossível para a razão de um cristão não levar isso em conta. Como ele mesmo colocou, o que Deus diz é verdade, quer a razão o compreenda, quer não; o que um homem diz só é verdade se a razão o aprovar. Para Erígena, a fé é a condição da inteligência. E para compreender a verdade, é preciso primeiramente crer nela (aqui se exprime um pensamento de Santo Agostinho, de quem Erígena era um seguidor e um admirador). Sua filosofia, portanto, se fundamenta numa base totalmente escriturística. A recompensa que ele espera receber pelo seu esforço é a mais pura e perfeita compreensão e inteligência da Bíblia; não desejando e nem conhecendo alegria alguma que se compare com essa. Procurar Deus nas palavras que nos deixou e encontra-lo é, para Erígena, o ápice da sua felicidade. Para ele, a busca pelo conhecimento para alcançar a verdade é algo que é inato ao homem; uma característica própria de sua essência – senão a própria essência.

Passemos então para a parte da doutrina de Erígena que mais nos interessa aqui: a morte do homem e o seu retorno a Deus. Para Escoto Erígena, toda a escatologia da doutrina cristã era perfeitamente inteligível e se harmonizava bastante bem com os eleitos; porém, como ele mesmo pergunta, o que fazer com os danados (os pecadores, os heréticos, os incrédulos, etc.)? É aí que sua doutrina ganha um caráter extremamente novo e particular, e entra em rota de colisão com a doutrina e os dogmas católicos. Tendo sido o homem criado por Deus à sua imagem e semelhança, como aceitar a sua condenação eterna? Para Erígena, considerar a idéia de uma geena material (lugar de suplício para os corpos) era algo que se parecia mais como um resto de superstição pagã, e de que o verdadeiro cristão deveria se livrar. Todas as histórias como as do Vale de Josafá, de vermes roedores e de lagos de enxofre parecem-lhe ridículas. Outra questão importante e polêmica levantada por Erígena dizia respeito aos castigos e a possibilidade destes serem eternos. Cito agora um trecho do livro de Étienne Gilson, A filosofia na Idade Média, em que ele formula essa questão utilizando-se de citações do próprio Erígena:

"Deve-se considerar esses castigos, corporais ou não, como suplício eterno? Responder sim é admitir a vitória definitiva do pecado, do mal e do demônio, numa natureza que, contudo, Jesus Cristo redimiu com seu sacrifício. Como admitir essa derrota de Deus pelo diabo? Deve-se afirmar, ao contrário, a vitória final do bem sobre o mal, e os dois problemas se resolvem juntos. Uma vez o universo material redimido de sua queda e restituído à sua condição inteligível, não subsistirá lugar algum para se situar um inferno, nenhum fogo para aí arder, nenhum corpo para aí sofrer, nenhum tempo, mesmo, para que suplícios corporais ainda possam aí persistir. Isso não quer dizer que a doutrina de recompensas eternas e de castigos eternos seja vã. O que Erígena sustenta firmemente é que todo vestígio de mal deverá desaparecer um dia da natureza e que, com a absorção da matéria no inteligível, esse resultado será obtido. Feito isso, a diferença sobrenatural entre os eleitos e os condenados permanecerá inteira e persistirá eternamente, mas estará nestes pensamentos puros que os homens ter-se-ão tornado, então. Cada um será beatificado ou danado em sua consciência. A única beatitude é a vida eterna e, já que a vida eterna é conhecer a verdade, o conhecimento da verdade é a única beatitude; inversamente, se não há outra miséria além da morte eterna e se a morte eterna é a ignorância da verdade; não há outra miséria além da ignorância da verdade."

Para Erígena, não há sofrimento maior do que um ser que, nascido e criado para obter o conhecimento e buscar a verdade, não consiga alcançar nem um e nem outro. O "inferno" resumi-se, portanto, na própria ignorância; e não há, a seu ver, castigo pior do que esse.

Para essas questões formuladas e levantadas por Erígena, as autoridades doutrinais da Igreja Católica responderam com a condenação de suas obras. E embora Erígena enxergue a alegria, a inteligência e a verdade como objetivos que só podem ser alcançados por aqueles que aceitam e crêem em Deus e em Jesus como seu filho, é impossível, até mesmo para um ateu (como é o caso desse autor que vos escreve) não reconhecer duas coisas nesta grande figura: sua coragem em defender suas idéias e convicções numa época em que predominava um fundamentalismo cristão (que hoje o Papa Bento XVI sonha em reconstruir) e, obviamente, a beleza e a precisão de sua argumentação. Por tudo isso, podemos agora concluir que a hipótese de que João Escoto Erígena tenha sido assassinado por seus alunos na abadia de Malmesbury (como já foi citado acima) talvez não seja algo tão romanesco quanto se pensa .

Renato Prata Biar; historiador e pós-graduado em filosofia; RJ.


Autor: Renato Prata Biar


Artigos Relacionados


Não Há Impossível

Dança Dos Mascarados: Cultura E Tradição Poconeana

Era Uma Vez

A Espera (ii)

Grande Índio

DiÁlogo De Botequim

Vida Interna