RELIGIOSIDADE AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: IDENTIDADE E ORIGINALIDADE



As práticas mágico-religiosas são os fenômenos por meio dos quais os homens entram em contato com entidades sobrenaturais, espíritos, deuses e ancestrais. Esse era um aspecto central da vida dos africanos e que passou a ser também na vida de seus descendentes. De acordo com a cosmologia iorubá, cada orixá influencia ou rege os diversos domínios da vida e da natureza.

Nas culturas africanas e afro-americanas tanto a magia – crença na possibilidade de interferir na vida material por meio do uso de forças sobrenaturais -, quanto a religião, que remete a sistemas filosóficos, orientações/especulações do espírito e da fé, são duas concepções que se inter-relacionam formando um sistema de explicação das coisas deste mundo e do sobrenatural, que possibilitam uma vida mais integrada. Na religião dos orixás existe uma associação mágica que articula as ações humano-naturais com as forças sobrenaturais.

No Brasil, um conjunto de práticas e crença mágico-religiosas de matrizes africanas deram aos candomblés, cujas primeiras referencias literárias aparecem no século XIX. O termo candomblé pertence à língua banto, mas no Brasil se refere aos cultos religiosos de origem iorubá e daomeana.

No candomblé, as principais entidades sobrenaturais são conhecidas por orixás[1], quando a maior influência é da civilização iorubá; quando a influência maior é da civilização daomeana, são os voduns que são cultuados e reconhecidos como sobrenaturais. Voduns e orixás são entidades ancestrais e heróis elevados à divindade e cultuados como fundadores de linhagens, reinos e cidades-estados. Segundo Roger Bastide, "nota-se que em todos êles, os deuses, sejam Voduns ou Orixás, acham-se em estreita correspondência com os santos católicos".(BASTIDE, 1971, 361)

Além do aspecto fundacional, é atribuído a eles toda a orientação das ações humanas ao longo da vida terrena. Os orixás se comunicam por meio de babalorixás mediante o culto de possessão, abrindo, através deste, o contato direto com o sobrenatural em busca de orientações e soluções para os mais diversos problemas da vida cotidiana.

Uma informação interessante de se ressaltar é que antes do século XIX os candomblés foram chamados de calundus principalmente na Bahia.

Na África, grande parte dos orixás merece culto específico a partir de determinada região ou cidade, sendo de caráter local ou regional a orientação na forma de culto, sendo que poucos são os orixás cultuados em todo o território iorubá.

Os africanos de origem banto tiveram contato com o catolicismo ainda na África, principalmente no caso dos que viveram em Luanda ou em outros centros de colonização portuguesa. Este contato anterior facilitou o aparecimento no Brasil de ritos religiosos com estruturas africanas, mas com a presença de elementos católicos. Alguns africanos originários da região da Angola e do Congo aceitaram o catolicismo ou alguns de seus elementos, quando se tornavam membros de diferentes irmandades, predominantes até hoje em algumas religiões.

Existem muitas semelhanças na forma e na intenção entre os cultos de possessão, adivinhação e cura de algumas regiões da África, como Angola e os praticados no Brasil. Tanto lá como aqui foram reunidos nos altares dos ancestrais e espíritos – representados por pedras, esculturas de madeiras, cestas -, imagens de santos e de Nossa Senhora. Da mesma forma, nos cultos jêjes e nagôs, voduns e orixás adotaram também santos e rezas católicas, formando um panteão de representações e ritos religiosos sem alterar a natureza das antigas crenças africanas e muito menos as suas maneiras de relação com o sobrenatural. Por outro lado, o costume de cultuar domesticamente santos católicos foi adotado na vida cotidiana brasileira e também o costume de usar objetos preciosos e sagrados junto ao corpo, assim, o catolicismo também passou a fazer parte da vida de afro-descendentes. É a partir disso, "portanto, que o parentesco mitológico entre as várias divindades do panteão africanos, bem como sua posição hierárquica aí estabelecida, devem ser também tomados em consideração quando se analisam as identificações entre êsses deuses e os santos católicos equivalentes". (BASTIDE, 1971, 363)

Na América, são conhecidos e reconhecidos cerca de 20 orixás e tanto no Brasil como em Cuba, são poucos os orixás cultuados em todo o território desses países.

A partir disso, foi elaborado um organograma que tem por referência estas obras: Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2007), Contos e Lendas Afro-brasileiros – A Criação do Mundo (PRANDI, 2007) e Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros (CACCIATORE, 1988). Tal organograma contempla os principais orixás conhecidos no Brasil e ainda mostra algumas de suas características principais.

Exu[2] é o orixá que está sempre presente, afinal, o culto dos demais orixás depende da sua tarefa de mensageiro. Sem a sua presença, orixás e humanos não podem se comunicar. Exu também é chamado de Legba, Bará e Eleguá e sem a sua participação na vida e na natureza, não existe mudança, movimento e reprodução. Na época da colonização e dos primeiros contatos das missões religiosas cristãs com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente associado pelos europeus com o diabo e Exu ainda carrega esse peso até os dias de hoje.

O culto aos orixás femininos não pode ser totalmente realizado sem a senhora das grandes águas, mãe dos deuses e dos homens, Iemanjá. Ela é uma das mães primordiais e está presente em vários mitos que narram sobre a criação do mundo. Em terras brasileiras, ganhou a soberania sobre os oceanos e mares, regidos na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco lembrado em Cuba. Olocum é a antiga senhora das profundezas da vida, dos mistérios ocultos e dos orixás. A celebração de Iemanjá na África está associada ao rio Níger e pode ser observada em torno das celebrações de divindades femininas primordiais.

Associado a esse culto das mães primeiras, encontraremos dois orixás infantis muito lembrados no Brasil, os gêmeos Ibejis, os orixás crianças que orientam e presidem a infância e a fraternidade e mesmo o lado infantil dos adultos.

Oxalá é o representante direto do Ser Supremo, Olorum e, por isso, encabeça o panteão da Criação. Oxalá ou Obatalá, também conhecido por Orixanlã e Oxalufã, é o criador do homem e senhor absoluto do ar, da respiração e da vida. Devido a esses atributos, é chamado de o Grande Orixá, Orixá Nlá. É um orixá muito respeitado tanto pelos seus devotos como pelas demais divindades, pois muitos orixás são identificados como filhos seus.

Odudua é o criador da Terra, ancestral dos iorubás e este orixá mantêm íntima ligação com Oraniã, o responsável pelo aparecimento das cidades. Na África há um conflito entre os partidários de Odudua e Oxalá, mas, no Brasil, Odudua foi esquecido e desapareceu quase por completo, sendo confundido com características do próprio Oxalá.

Os iorubás crêem que mulheres e homens descendem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única como no cristianismo. Cada pessoa herda um orixá e é desta divindade que provém suas características e marcas particulares e, "quando se sabe qual é o orixá da pessoa, pode-se antever como ela se comportará no dia-a-dia, pois se acredita que o ser humano herda preferências, desejos, temores e modos de agir próprios de seu orixá. Agem de acordo com o que os mitos contam. Tal pai, tal filho." (PRANDI, 2007, 203)

Os orixás sofrem e alegram-se, perdem e vencem, amam e odeiam, conquistam e são conquistados. Os humanos são cópias dessas características e desses conflitos, afinal, destes descendem.

Alguns orixás se enquadram em mais deum elemento. Além das características gerais dos elementos, cada orixá tem as suas próprias. Cada um com sua biografia mítica, sua ocupação na divisão do trabalho, seu lugar específico na família dos deuses. No candomblé, acredita-se que homens e mulheres herdam as características dos orixás dos quais descendem espiritualmente. (PRANDI, 2007, 200)

Os mitos dos orixás fazem, originalmente, parte dos poemas contatos pelos babalaôs. Versam sobre a criação do mundo e de como que este foi repartido entre os orixás. Como os iorubás não detinham a técnica da escrita, todas essas narrativas eram transmitidas oralmente.

No período da diáspora africana, os mitos iorubás reproduziram-se na América, em especial nas regiões no qual havia seguidores das religiões dos orixás: Brasil e Cuba. Foi a partir do século XIX, primeiramente por estudiosos estrangeiros e posteriormente por letrados iorubás que começaram a escrever essas narrativas mitológicas.

Em meados da década de 1930, cientistas sociais e escritores iniciaram com mais afinco o registro sobre os mitos dos orixás. Nos anos 30, o antropólogo Artur Ramos escreveu que a mitologia iorubá no Brasil estava totalmente perdida. Foi com Roger Bastide que houve o profundo discernimento de que os mitos não eram apenas narrativas sobre diversas histórias, mas uma profunda fonte cultural e de pesquisas, que se revela em vários lugares: festas religiosas, terreiros, danças, organizações políticas etc.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil – contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1971

CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 1977

LOPES, Nei. Dicionário Escolar Afro-Brasileiro. São Paulo: Selo Negro, 2006

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

________________. Contos e lendas afro-brasileiros – a criação do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

SILVA, W. W. da Matta e (Yapacani). Umbanda do Brasil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1969




Autor: Felipe Figueira


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