Resquícios avulsos de um ensaio sobre a imaginação de velhos tempos tropicais...



Como estamos longe do sonho "heróico", nos perigos dos mares, dos conquistadores portugueses! No imaginário brasileiro, apesar das proezas dos bandeirantes, dos heróicos revoltosos da Inconfidência Mineira, das vãs rebeliões dos paulistas e dos cangaceiros do Nordeste, o âmago da alma brasileira é esta mística terrena, esta imensa natureza feminizada, simultaneamente encarnada na mãe negra, na destemida amazona, na amante mulata e na nobre companheira de tez "clara" (...) O hino nacional celebra o "Gigante adormecido", mas não deveria dizer-se antes "a Giganta adormecida", como aquela que celebra um grande poeta francês: "Gostaria de viver com uma giganta... De dormir descansadamente à sombra dos seus seios..." Acordei lembrando de palavras avulsas de Gilbert Durand!

Geralmente, ao falarmos no dito Brasil Antigo, temos sempre a impressão de estar presos pelo olhar no quadro rústico, código fixo e imutável. A imagem é o olhar de domínio sobre o alegórico – institui-se pela paisagem a óleo e tinta sua bem pensada permanência no tempo. O olhar primeiro é o que institui. A paisagem de um poder econômico e político ameaçando qualquer tentativa modernizadora no estado nação arcaico.

Todas as imagens encontradas ao longo do texto possuem tal finalidade: ilustrar outras imagens e fazer-nos refletir sobre a consolidação destas sobre o imaginário em nossa cultura. Sempre nos reportamos a um capitalismo tardio, um esplendor bucólico, uma personificação da violência da terra. A memória colonial viva rebuscada, capaz de ajudar a manter valores relacionados do presente.

A força física do masculino e a gestação do feminino teriam sido responsáveis pelos mitos institucionais do Ocidente: a mitologia judaico-cristã (Eva e Adão) e grega (Pandora e a Caixa dos Mistérios) são símbolos ocidentais que personificam a culpabilidade, uma idéia de controle cultural nestas sociedades? Portanto, a mulher estaria sempre mais vulnerável ao gerar filhos filhas(os) na terra, ao passo que o homem exerceria sua capacidade de domínio?

No antigo sistema das capitanias hereditárias, base de formação civilizacional do nordeste açucareiro do Brasil, não há metáfora mais emblemática do que a guerra contra os Tupinambás. Como os portugueses já haviam herdado a pólvora do Oriente, a dizimação de povos autóctones e o aprisionamento de suas mulheres com a cultura do estupro – própria de qualquer invasão – facilitaram a hegemonia cristã.

Seria uma base fundamental para levantarmos um pequeno velcro sobre as estruturas antropológicas do imaginário e, talvez, explicar os campos majoritários : os símbolos solidificados. Para o materialismo histórico, tudo que é sólido se desmancha no ar. O manchar do desmanche perpetua-se pelo tempo do perdulário, do fixista, do caráter moral e formador: a sociedade de engenho. Um motor sociológico crucial para escravizar homens e mulheres.

Devemos comparar um pouco, sem equívocos – será uma contribuição louvável a este trabalho – sobre a figura de Marianne, standart da república francesa, épica mulher de seios à mostra carregando uma espada: liberté, igualité, fraternité. O fenômeno dessa imagem feminina no possui uma conotação positiva à Europa liberal na vanguarda das primeiras vozes de mulheres adquirindo registros na história.

Gostaria de utilizar um exemplo para o caso do nordeste brasileiro: a mobília antiga sustentando tradicionalismos empoleirados, não completamente limpos pela poeira do tempo. Os reflexos da tradição agrária perduram em nosso ser imagético, tornando viva cada relação de opressão psicológica capaz de ocultar e esvaziar debates de igualdade, sobretudo entre os sexos.

Talvez, a única forma de mergulhar na parte mínima dos cotidianos e suas representações imaginárias difíceis: fazer-se ouvir e falar numa senzala, descrita como um espaço de servilidade e debilidade. Poderíamos conjurar, hipoteticamente, o resultado arquitetônico da casa-grande como voz reinante da colônia. Uma fala masculina. Se portugueses trazem em sua gênese uma continuidade de sua luta contra mouros e castelhanos continuada nas Américas (terras e religião), não será uma surpresa que a sociedade patriarcal – matriz dessa idéia – estabeleça o casarão de engenho como sua representação máxima: o pátrio.

E, talvez, por mais que as matronas do senhorio possam reagir, negociar, envenenar seus maridos, as possibilidades de encontrar outro patriarca para viver dignamente na relação de relativa liberdade será difícil. São as falas da parede do tempo. Os mitos áureos que trazem mulheres como Chica da Silva e Escrava Isaura através da história, são em verdade, respostas raras ao imaginário instituído. Com a decadência da sociedade do açucareira, as representações sociais formaram no inconsciente coletivo um conjunto indistinto de símbolos, códigos reinantes, capazes de impossibilitar novas relações entre o masculino e feminino numa dimensão igualitária. Assim, a senzala perdurará como relação dominada (fêmea), ao passo que a casa-grande relembrará sempre, antigas histórias de bravura (macho) entre homens do mando e seu arquétipo máximo: o paterno, o clã institucional. Aquilo que vai ficando em detrimento da outra.

Os sulinos e sudestinos em sua maioria pouco informados sobre outras partes do Brasil ouviram de seus avós, pais e mães – quando descendentes destas paragens por laços consangüíneos – uma miríade de fragmentos do passado rural. Não há historiadores para contar tais histórias. Na medida de um tempo patriarcal, não há espaço para fêmeas, mas para mulheres-macho, Marias-Homens, Luzia-Homem, compêndios da literatura de escritores como Domingos Olímpio.

A relação do cangaço, fruto da decadência e atrazo das elites rurais nas regiões sertanejas trarão para noticiários da década de 1930 um tal Virgulino, vulgarmente chamado "Lampião", já acompanhado de uma bela e jovem mulher, "Maria Bonita". Sua relação criminal como o bando era bastante similar às práticas do marido.

Através da cultura popular, veremos as filhas(os) do passado colonial emergirem da opressão, agora ausente de escravos, mas repleto de líderes religiosos, enriquecidos como um patronato capitalista, oligárquico e alegórico. Figuras patriarcais que reavivam o passado onipresente. Símbolos como Padre Cícero, no Ceará, caso de representação imagética, de formas discursivas religiosas, de pendor paternal (um santo vivo, protetor dos miseráveis), ser de divinação masculina. Na representação feminina, as carolas, as beatas, as remotas sinhazinhas freqüentandoras de missa. Damas honradas que devem seguir os ditames da sociedade de engenho e a manutenção do controle. A cristã católica bem casada.

A própria função apologética no sertão patriarcal institui nomes masculinos para mulheres: Raimunda, Antonia, Josefa, Cícera. O conjunto dos símbolos imaginários perfazem diversos meandros da vida simples da subsistência agrícola, da ladainha de romarias católicas, de profusão de fé e santidade no poder do santo-homem, do padre na santa (mulher) missa.

No jogo de ensaios, na subliminaridade da linguagem transmitida pelo terço da Virgem (santa), de uma pureza inacabada, tal inocência explode em fúrias de negação pública quando se traz à tona uma rebelde na estrutura da família: o escândalo desolador e violador da ordem patriarcal. O adultério da Santa Maria.

Cotidiano ambíguo, velho, ainda presente entre netos(as) e filhas(os). O imaginário não possui uma relação de envelhecimento, mas de atemporalização, pois é capaz de estar ligando novidade e arqueologia. Mudança e tradição. Os saberes da imaginação coletiva e popular sempre carregarão um arquétipo patriarcal?

O bom e velho ato de bravura permanece. O épico e saudoso coronel sentado numa cadeira de balanço, degustando um cigarro de palha, cercado de agregados e escravos. O impiedoso representante da ordem agrária que tomou conta de contextos nefandos dos "rincões do Brasil", quando nem Euclides da Cunha (Os Sertões) havia aportado para descrever as "façanhas" republicanas sobre homens e mulheres dizimados no arrabalde de Canudos (1898), na Bahia.

O mesmo paternalismo rural da província era inexistente para os republicanos do sudeste. Mulheres com estilhaços de pau e pedra também desapareceram. Sua restituição imaginária conserva apenas algumas representações fotográficas em fins do século XIX. Macérrimas, diluídas pelos dias de confronto, exauridas por partilharem a pólvora dos maridos contra as tropas federais. Lutaram contra um estado patriarcal, militar, ainda representado por um imaginário anti-democrático.

O declínio latifundiário do açúcar ibérico deixa viva a memória dos mestres de engenho acerca da trova trazida pelos portugueses, sua eterna tentativa de extensão militar, o cansaço naval, o "pessoalzinho ralo", quase sem gente do minúsculo território ameaçado pela vizinha Castella, pelos Árabes, pela escassez de sua empreitada além-mar: a civilização. É o surgimento de uma tese social, mas, sobretudo, imaginada por suas visões de força dentro das mentalidades que estudam tudo isso. Sobretudo, as vozes que não tiveram voz:

Os rituais de nascimento da mãe índia escravizada e abortada...

O açoite de ferro nos dentes e nos seios da mulher escrava...

De homens índios e negros violentados e militarizados...


Autor: Paulo Milhomens


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