A Porta



  Olho de um lado para o outro e tudo o que vejo é uma porta. É uma porta como outra qualquer, pintada de branco, assim como todo o ambiente em que estou. A porta está fechada. Trancada? Talvez.

Não sinto fome. Contudo percebo que, se por acaso eu vier a sentir, não há o que comer. Afinal, não há nada neste cubículo onde vivo.

Pergunto-me quais são as razões que levam alguém a viver num lugar como esse. Concluo que não há nenhum motivo óbvio para alguém em sã consciência abrir uma porta e passar a viver num cubículo onde não há nada senão a porta pela qual entrou.

Percebo, subitamente, que eu estou vivendo ali. Estarei eu em sã consciência?

Reflito sobre isso por muito tempo e percebo que, se penso a respeito disso, é justamente porque estou delirando um pouquinho. Isso não significa que eu esteja pirando, ou em completo estado de demência. Eu estou – ou acho que estou - aparentemente normal. Todos os seres humanos já fizeram ou ainda fazem com freqüência esse tipo de pergunta. Se alguns porventura não fizeram, é porque são completamente loucos.

Após excluir todas as possibilidades da existência de alguém que esteja de fato em sã consciência, sinto-me um pouco mais tranqüilo. Ou estou meramente tentando convencer a mim mesmo de que estou um pouco melhor. Será que a vida exterior perdeu toda a sua graça?

Ao meu lado, percebo subitamente que há uma fotografia. Seguro-a com a mão direita e observo. Em primeiro plano estamos eu, minha esposa e nossa filha, Gabriela. Em segundo plano, nossa bela casa de dois pisos com um belo jardim, sob um maravilhoso céu sem nuvens. Era o aniversário de doze anos da nossa menininha, naquela ocasião. Começo a lembrar-me de diversos acontecimentos da minha vida, mas tudo parece muito distante, ultrapassando os limites da realidade.

Observando mais atentamente a imagem e dou-me conta de que não vejo o azul do céu há muito tempo, portanto muito tempo já se passou desde aquela fotografia. Entretanto, olho para meu rosto e vejo que não pareço muito mais jovem do que sou hoje. Tudo isso começa a me incomodar e intrigar de tal maneira que não resisto e tenho vontade de gritar. Por algum motivo, não o faço.

Meus olhos concentram-se em minha esposa. Linda, sorridente. Repentinamente tenho a lembrança de que na semana seguinte àquela festa de aniversário descobri que ela tinha um amante, muito jovem por sinal. Peguei-os em flagrante, justamente pois voltei mais cedo da empresa onde eu trabalhava havia algumas horas. Eu havia sido demitido naquele dia, e estava ansioso para chegar em casa e lá conversar com minha esposa, sempre compreensível. Foi um choque.

O amante foi embora logo que cheguei. Após isso, passamos alguns minutos sem falar palavra. Em seguida ela começou a chorar, e eu tentei acalma-la. Logo eu, que via minha vida desmoronar, tentava consola-la.

Passou-se muito tempo até eu falar. Discutimos por algum tempo a respeito de um possível divórcio. Eu consegui perdoá-la, com alguma mágoa no coração, contudo. Fiz tudo isso com a consciência de que uma separação seria péssima para a criação da Gabriela. Minha esposa disse que não merecia alguém de coração tão puro quanto eu. Logo depois, contou-me que mantinha relações com aquele rapaz havia dois meses. De lá pra cá, além de me trair, disse que começou a beber excessivamente, e que já havia tentado tirar sua própria vida de diversas maneiras.

Meu Deus! Como eu não havia percebido tal mudança em seu comportamento! Imediatamente entrei em desespero e fiz questão de saber se havia algum motivo que explicasse tudo aquilo. Em alguns instantes obtive resposta:

- É a Gabi. Está grávida de um menino.

Em algumas horas, minha vida foi totalmente destruída.

 

Estranhamente, não tenho nenhuma lembrança entre a cena narrada anteriormente e o dia de hoje. É como se alguém tivesse entrado em minha memória e apagado completamente o conteúdo armazenado neste período de tempo, que não sei precisar.

Sinto meus olhos marejarem, mas sei que não é saudade. Sei também que não é reflexo da minha tristeza. Estou desolado pelo simples fato de que um dia sei que terei de deixar este lugar.

A porta à minha frente certamente não está trancada. Caso contrário, nada disso faz qualquer sentido. Ela é minha única companhia, meu elo com tudo o que se passa no mundo exterior. Representa todas as minhas dúvidas e incertezas e estará sempre ali, até que chegue o dia em que eu decida voltar a viver, de fato.

Algum dia terei de sair, procurar um novo emprego, vender nossa casa para comprar uma mais modesta, e conviver com minha família e seu mais novo membro. A proposta até mostra-se um pouco tentadora, visto que adoro crianças, e gostaria de saber se o menininho é a cara do vovô. Em contrapartida, olho à volta e vejo quão tranqüilo é este lugar.

Aqui não há surpresas, decepções, demissões ou traições. Não é a vida que sempre sonhei, mas é a fuga que me aproxima dela. Ou simplesmente afasta-me de meus piores pesadelos.

Viso novamente a porta, antes de pegar no sono. Se depender de mim ela ainda terá de esperar muito para ser aberta.


Autor: Abbey Road


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