A depreciação da mulher em duas cantigas de escárnio e maldizer



Ao observar as cantigas trovadorescas portuguesas, percebe-se que dois tipos delas destacam-se pela irreverência: as cantigas de escárnio e maldizer. Sendo assim, segundo a definição de "A arte de Trovar", ambas têm em comum o objetivo de se dizer mal de alguém, visto que, o que difere uma da outra é a maneira como o fazem. Segundo Massaud Moisés (1981), a cantiga de escárnio caracteriza-se por ser indireta, com traços de ironia e sarcasmo. Já a cantiga de maldizer propõe-se a fazer uma sátira direta, com a utilização de palavras maldosas e até mesmo de baixo calão, na maioria das vezes nomeando a pessoa criticada. Assim, neste presente artigo observaremos duas cantigas, "Ay, dona Fea, foste-vos queixar" de Joan Garcia Guilhade, e "Pero Rodriguez, da vossa mulher", de Martin Soares, ambas com um mesmo objetivo: denegrir a imagem de duas mulheres na mesma condição social de baixo prestígio.

Um traço bastante notável nessas cantigas trovadorescas foi o papel da mulher. A exaltação ou a depreciação da mesma sempre esteve diretamente ligada ao lugar que esta ocupava na sociedade: fidalga ou plebéia? Senhora ou cortesã? Para cada uma havia um tipo de cantiga a ser destinada, que deveria ser seguida rigorosamente pelos trovadores.

Além disso, um episódio marcante, relatado por José D'Assunção Barros, mostra o caso do trovador-fidalgo João Soares, autor de "querela das amas de leite", cantiga de amor destinada a uma mulher de menor condição social. Por ter tentado introduzir uma novidade na poesia cortês galego-portuguesa (Barros:2005), e logo quebrar uma tradição seguida pelos demais, o autor foi hostilizado pelos rivais, que não aceitavam que uma cantiga fosse destinada a outrem senão às altas damas da sociedade.

Esse fato remete à questão do lugar de cada um na sociedade portuguesa, e logo nas cantigas: aos fidalgos, o prestígio. Já aos desprovidos de qualquer indício de beleza, fidalguia e status de nobreza hereditária, o anonimato. Assim sendo, ao observar a cantiga de escárnio "Dona fea" percebemos como essa concepção aplica-se: o trovador "louva" a uma mulher ali chamada de "Dona fea" que outrora se queixara de jamais ter sido louvada em seu cantar. Ao longo da cantiga este passa a revelar informações sobre o tipo físico da mulher a quem canta: feia e velha. Além disso, acrescenta uma característica psicológica: louca. A partir dessa informação podemos questionar: a seu ver, seria ela louca por pedir a ele que lhe fizera um canto mesmo sabendo que não estava inclusa nos padrões de cantigas de amor ou a razão da loucura seria de ordem desconhecida? A razão dessa loucura é perceptível quando, partindo para uma leitura mais atenta da cantiga, percebe-se que o trovador afirma jamais ter feito uma cantiga à senhora em questão. Logo concebe-se que a loucura dela seja apenas um adjetivo depreciativo criado pelo autor para justificar o fato de uma mulher feia e velha - e supostamente pobre - pedir a ele que a louve.

Relativo a isso, ressalta-se que a exposição das características físicas, bem como a psicológica, são ferramentas utilizadas com o intuito de satirizar, depreciar e até mesmo intimidar. Essas intenções são facilmente percebidas na cantiga "Dona Fea", quando lança-se um olhar categórico sobre ela.

Outra cantiga que nos traz a questão da exposição da figura feminina é "Cantiga", de Martin Soares. Nela, o autor destina uma "mensagem" ao senhor Pero Rodriguez, esposo da "senhora" em questão. Nessa mensagem, afirma que sua esposa vos quer bem, e que lhe diz com propriedade, pois enquanto mantinha relações sexuais com ela, a mesma o confirmou. Essa cantiga põe em evidência outro tipo de mulher massacrada pelas cantigas de escário e maldizer: as que fugiam dos ditames sociais e religiosos. Desse modo, versos como o quarto, em que o autor, através de uma expressão de baixo calão expõe a traição da mulher do outro consigo mesmo, deixam claro que ele, ainda como elemento integrado ao alto círculo social, não muito diferente dos demais, também segue preceitos e, através da cantiga que compõe, repudia comportamentos vistos pela sociedade como atípicos ou despadronizados.

Portanto, concebemos a cantiga como uma importante manifestação cultural galego-portuguesa, que servia para exaltar ou depreciar pessoas, agindo como um importante instrumento coibitivo a serviço dos valores socialmente impostos.

BIBLIOGRAFIA

 AMARAL, Emília et al.Novas Palavras. São Paulo: FTD, 1997

BARROS, J. D. Uma cadeia de cantigas de escárnio: Uma análise sobre a poesia satírica ibérica do século XIII e suas tensões sociais. Londrina: Revista Terra Roxa e outras terras: 2005. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol6/vol6_2.pdf Acesso em 04/03

D'HEUR, Jean-Marie. L'art de trouver du Chansonnier Colocci-Brancuti. Edition et analyse. In: Arquivos do Centro Cultural Português. Paris, 1975. apud MONGELLI. Lênia et al. A literatura Portuguesa em perspectiva. São Paulo: Atlas, 1992.

LAGARES, Xoan. C. . Elementos para uma nova antologia da poesia profana medieval galego-portuguesa. In: A Filologia de ontem, de hoje e de amanha, Sao Paulo: SP/CiFEFiL, 2005. p. 63-71

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1981.

MONGELLI. Lênia et al. A literatura Portuguesa em perspectiva. São Paulo: Atlas, 1992.


Autor: Wellington Freire Machado


Artigos Relacionados


Dor!

O Salmo 23 Explicitado

Minha Mãe Como Te Amo

Tudo Qua Há De Bom Nessa Vida...

Nossa Literatura

Pra Lhe Ter...

Levanta-te