O Velho Moinho



        

O VELHO MOINHO

 

 

O velho moinho destaca-se na ampla planície sombria.

É uma construção sólida, antiga; quem a fez imprimiu nela a força de seus músculos, a determinação de seu   espírito, a rude precisão de seus cálculos.

Está de pé há quatro séculos e já viu passar de tudo sob as suas pás.  

Estas, são quatro enormes retângulos irregulares de pano, são como velas,  emoldurados por finos troncos de madeira resistente, talhados toscamente,  pregados e amarrados, para se tornarem uma única peça leve e flexível. .

Mas a semelhança com as velas de um grande navio, termina aqui.

Velas são feitas para recolherem o vento, retendo-o o mais tempo possível entre suas dobras, enquanto ele tenta desesperadamente livrar-se e correr novamente solto. Mantendo-o assim prisioneiro, forçam-no a levar o navio adiante, fazendo-o deslizar  mansamente no mar.

No moinho, tudo é diferente; os panos estirados, encarquilhados como peles de animais, pedem ao vento que apenas os acaricie, os beije e escorregue por eles.

Ajustam-se à sua direção, como um imenso cata vento – este é seu nome mais certo.

Sabem que não é lutando que se consegue ganhar.

O vento é cativado por esta caricia suave, sensual; apaixona-se e pede para ficar morando aí.

Mas logo o encantamento se desfaz, as pás vão girando e o vento escorrega para fora do pano, sai lamentando sua desilusão e se perde na planície, à eterna procura de um outro, improvável abrigo.

 

O povo de lá criou, com paciência a persistência, longas margens, que detiveram o mar e criaram novos campos.. 

Mas o mar é caprichoso e selvagem; e tenta o tempo todo, numa batalha repetida e sem fim, reconquistar o espaço que lhe roubaram.

Nos polders – que assim se chamam esses campos de milagre - os moinhos são imensos gigantes, que os protegem e garantem sua vida.

O giro de suas pás, incessante mesmo quando há apenas uma leve brisa de primavera, movimenta bombas primitivas, que devolvem ao mar o tempo todo as águas invasoras. Se parassem, a batalha estaria perdida; porque o mar, sempre à espreita, violaria as fronteiras e retomaria o que é seu.

Os velhos moinhos trabalham lentamente retirando água, amassando grãos e contando velhas histórias.

 

Quando morávamos lá, todas as noites ouvíamos uma história diferente. 

Como esta:

Era o ano de 1650; apareceu por aquelas bandas um grupo de soldados de ventura; eram homens fortes e briguentos e vagavam pela Europa à procura de um senhor ao qual servir.

Os Senhores os usavam para ampliar suas terras, fortalecer seus domínios, cobrar os impostos e manter a paz entre os camponeses vassalos.

No moinho morava Roxanne,

Era uma adolescente de longas tranças loiras, olhos grandes e azuis, que vivia branca de farinha, pois trabalhava, assim como a família inteira, na moenda. 

No acampamento dos aventureiros encontrava-se Gilles, um jovem francês proveniente de um obscuro vilarejo da Gasconha. Seu linguajar era engraçado, na constante mistura de termos da languedoc.

Viram-se, conheceram-se, amaram-se. Com a dedicação e a inconseqüência maravilhosa dos adolescentes – que já aos vinte anos ninguém conseguiria repetir.

Era a época preguiçosa do início de verão, quando as espigas ainda estão verdes nos caules e a terra está quente, no trabalho febril de amadurecê-las. O resto da natureza parece parar, à espera dos frutos, que logo virão, trazendo trabalho e prosperidade. Mas naquelas semanas, tudo girava devagar, como as pás dos moinhos.

Os namorados passavam horas – quando o capitão e o pai da moça permitiam – falando de suas vidas, ele das aventuras e ela dos sacos de farinha, única coisa que enchia a sua vida;

Quando ela parava, ele contava das guerras que combatera em terras estranhas; mostrava suas feridas, exagerando a gravidade, o número de inimigos, o clangor das batalhas.

E aí, ela desfilava, balançando sobre um fio misterioso, os seus sonhos, suas esperanças.

Ele lhe contava como no Midi as flores eram diferentes; eram milhares de rosas; abriam-se ao sol e à brisa cálida do Mediterrâneo e se pavoneavam, soberbas em sua beleza, enchendo o ar com o seu perfume e os olhos com suas formas opulentas. 

Aqui, no polder, as flores eram outras: modestas, recatadas, humildes, donas de uma beleza interior, que não mostravam, como se não quisessem aparecer; e assim era ela, Roxanne....

Os dois logo perdiam a voz, o pensamento; esqueciam quem eram e onde estavam. Loucamente apaixonados. 

Quando o tempo da colheita chegou, o pai de Roxanne deu trabalho ao rapaz, com a aprovação do capitão.

Ficava então ele o dia inteiro ao redor do moinho, de torso nu, a musculatura bem formada, um mítico deus mediterrâneo, brilhando de suor.

E o coração de Roxanne batia e batia; e se debatia, também, entre o desejo e a compostura.

Mas um dia, o capitão chamou.

O dono das terras aumentara os impostos. A ordem devia ser cumprida.

Saíram a campo, os aventureiros, todos em bando, cobrando de todos e, onde havia resistência, saqueando e ferindo – não raro matando.

Era esta, a vida, naqueles tempos.

O pai de Roxanne resistiu enquanto pôde; os aventureiros sitiaram o polder e exigiam pagamentos enormes, que ele nunca poderia fazer.

Ao chegarem as chuvas de outono, quando o vento sopra forte e o mar está mais zangado que nunca,  agitado e rebelde, o velho decidiu romper as margens. 

- “Nem nós, nem eles” – rugiu, tão furioso como o mar. 

A pás do moinho pararam, fazendo força para girar; mas uma grande pedra as bloqueava. 

Depois de dois dias, a margem estava encharcada e todos sabiam que não poderia resistir mais.

Roxanne ficou desesperada. Gilles não poderia deixar de juntar-se ao bando. Tinha um contrato, não era homem de falhar. E ela resolveu segui-lo. 

No meio do caminho para o acampamento, viram de repente   uma formidável parede de água, uma onda impressionante,  que vinha do mar, rolando, virando, explodindo, como um castigo inesperado e violento. 

Foram arrastados juntos, sem esperança, sem salvação. Mas estavam juntos. E nada mais conseguiria separá-los.

O tempo passou; a tempestade amainou as margens foram reconstruídas, sempre lentamente, centímetro por centímetro; o mar novamente  rechaçado.

A primavera voltou – ela sempre volta, e nós nos esquecemos disso. 

O polder reviveu. Mas o campo não estava verde.

Amanheceu branco, cândido, com milhares de tulipas, brancas como a neve, como as roupas e a face e os braços e as mãos, da desventurada Roxanne.

 

Esta noite o moinho descansa, girando lentamente muito lentamente, as suas velhas pás. Está cansado, está velho.

Mas tem sempre, toda noite,  uma nova história para contar.

 

 


Autor: Romano Dazzi


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