História Da Factoring



1.1. Do factoring antigo aos dias de hoje

Determinar as origens históricas de qualquer instituto jurídico é um pressuposto fundamental para que se realize uma analise aprofundada do seu conteúdo.

Mesmo afirmando que alguns autores parecem exagerar na busca pelos antecedentes históricos dos mais diversos institutos jurídicos, Newton de Lucca nos traz palavras importantes para demonstrar a relevância dessa pesquisa:

A afirmação está longe de pretender menoscabar a importância da perquirição histórica, extremamente útil no campo da Ciência Jurídica, onde se torna possível à compreensão da necessidade social determinante do aparecimento de um dado instituto jurídico.

Mas do que isso ainda, o conhecimento histórico nos permite, muito amiúde, tirar conclusões extremamente importantes para as soluções e para as projeções do futuro, que nada mais são do que desdobramentos do passado histórico.[1]

Com o factoring não poderia ser diferente, e dessa forma antes de se iniciar qualquer investigação relativa a questões atuais, ou ate mesmo delimitar conceitos básicos da atividade, é de fundamental importância se traçar um perfil histórico da atividade.

Apesar de ser uma atividade desconhecida por muitos, até mesmo no meio acadêmico, o fomento mercantil possui uma evolução histórica que nos remete a tempos bastante longínquos.

Os autores divergem ao tentar estabelecer um marco inicial para a atividade. Alguns como Luiz Lemos Leite, precursor da atividade em nosso país, chegam a localizar o início do factoring no Código de Hamurabi, por entender que é justamente neste Código que se encontram, nos dizeres de Lemos, “as origens históricas dos bancos e outras atividades comerciais relacionadas com crédito, dentre as quais, localizam o factoring”.[2] O referido Autor menciona ainda, como povos que se utilizavam das “fórmulas de gestão comercial”[3] contidas no Código de Hamurabi, os caldeus, babilônicos, fenícios, etruscos, gregos e romanos.

Não nos parece absurdo buscar a origem do factoring no Código de Hamurabi, no entanto, é importante que se tenha a exata noção de que o que se encontra ali são apenas alguns elementos das primeiras “fórmulas de gestão comercial” como define o próprio Luiz Lemos Leite. É obvio que com o passar dos tempos esses elementos foram sofrendo uma série de mutações, até o ponto em que assumiram as características inerentes aos elementos do factoring no seu arranjo moderno.

É justamente nessa linha de raciocínio que Newton de Lucca, se apoiando nas lições de Ascarelli, faz um comentário interessante a esse respeito:

De certo modo, não parece desarrazoado imaginar que tenha existido em relação a faturização algo semelhante ao que aconteceu com numerosos institutos jurídicos, nos quais elementos motivados por novas necessidades acrescentar-se iam aos que faziam parte da estrutura originária, fenômeno esse tão magistralmente identificado por Ascarelli e ao qual o grande jurista denominou de ‘inércia jurídica’.[4]

Há, no entanto, quem critique aqueles autores que enxergam uma origem tão distante para a faturização. A Revista de Direito Mercantil – 124 por exemplo caminha nessa direção ao afirmar que:

Ao se colocar em perspectiva histórica um instituto qualquer do direito civil ou comercial existe a tendência de se buscar sua origem na antiguidade remota, preferentemente no Direito Romano clássico. Imbuídos dessa visão menos prudente, alguns autores sugerem que o factoring teria nascido na Roma Antiga, com a prática dos comerciantes de entregarem mercadorias para a venda em consignação. Outros vão ainda mais longe, e recuam até o Direito Babilônico para localizar a origem do instituto.[5]

Na sua obra “Contratos Mercantis”, Bulgarelli também não se mostra entusiasmado com uma perspectiva histórica tão ampla para a faturização, e demonstra isto ao afirmar que:

Não obstante haja quem (como sempre sói ocorrer na maioria dos institutos jurídicos, principalmente no direito comercial) tenha visto a origem do factoring nas épocas mais remotas da humanidade, na verdade ele só surgiu na Inglaterra, no século XVIII, e na Europa somente em 1960.[6]

Contudo, se a doutrina não encontra consenso na tentativa de estabelecer um marco para a atividade, é uníssona ao associar à origem da faturização a figura dos factors.

Segundo Fran Martins, “os factors, também chamados de agentes, nada mais eram do que comissários dos vendedores, recebendo dos mesmos mercadorias que se encarregavam de vender e cobrar o preço, sobre o qual tinham uma comissão”.[7]

Luiz Lemos Leite se aprofunda ainda mais na caracterização da importante figura do factor:

[...] via de regra, um comerciante próspero e conhecido de determinada região que se encarregava de promover o comércio local, de prestar informações creditícias sobre outros comerciantes, receber e armazenar mercadorias provenientes de outras praças e fazer a cobrança, pela qual recebia em pagamento uma remuneração. Era um autêntico consultor de negócios.[8]   

Essa delimitação das atividades exercidas pelos factors se restringe a sua característica mais remota, ainda na Grécia e na Roma antigas, e que persistiu ao longo da Idade Média, principalmente no mediterrâneo. Posteriormente, “... a instituição de factors ou agentes de venda e cobrança de mercadorias teve grande desenvolvimento nos países onde o comércio mais se expandia, tais como a Inglaterra, Holanda, Espanha e França”.[9]

Sendo assim, é possível afirmar que:

[...] a partir do século XVI com os descobrimentos marítimos e com todas as conseqüências importantes daí decorrentes, das quais não pode ficar sem referência especial a colonização britânica no Novo Mundo, que houve um grande incremento comercial ultramarino, principalmente das mercadorias inglesas que eram negociadas nas colônias britânicas.[10]

Com isso, houve uma notável ruptura nos paradigmas da noção de factoring, que deixava de ser apenas uma serie de elementos encontrados ainda no Código de Hamurab e que evoluiriam no sentido integrar os elementos que caracterizam o factoring moderno, e passava a se constituir como uma atividade realmente parecida com a praticada nos dias atuais.

Fato é que, apenas a partir desse momento, aqueles autores que criticam as origens mais remotas do factoring passam a considerar sua existência.  Tal afirmação pode ser ratificada valendo-se mais uma vez da lição de Newton de Lucca, ao se referir a Inglaterra do século XVIII como marco da atividade de fomento:

Nesse período, sim, poderemos vislumbrar, na atividade praticada pelos factors, semelhança com a faturização atual, já que aqueles que antecipavam valores relativos às mercadorias a serem vendidas assumiam o risco do negócio. Embora se tratasse de aquisição de mercadorias e não de crédito, não se pode deixar de reconhecer a similitude dos procedimentos, mormente se se leva em consideração o fator risco como inerente a ambas as situações.[11]

O trabalho dos factors, no entanto, não se limitava ao âmbito das negociações entre metrópoles e colônias,

Também em nível exclusivamente interno, pelo menos em Londres, numerosos factors desenvolveram a sua atividade voltados para o mercado interno de trigo, lã e produtos têxteis, com ênfase especial, ao que parece, para esses últimos.[12]

Com o passar dos tempos e por motivos que serão elencados mais adiante, o factoring foi perdendo terreno na Inglaterra, e encontrou nos Estados Unidos solo fértil para que se iniciasse uma etapa crucial no seu desenvolvimento. Tanto que é justamente nesse momento, em que o factoring sofre um notável declínio na Europa e migra para os Estados Unidos, que ocorre seu principal momento de evolução no sentido do modelo de factoring que se realiza nos dias de hoje.

O primeiro fator importante a se considerar na evolução do factoring nos Estados Unidos esta relacionado ao ganho de relevância do papel do factor. Fran Martins explicita a situação de maneira elucidativa:   

Com o correr dos tempos, principalmente em virtude da disseminação do factoring nos Estados Unidos, passaram os factors a encarregar a terceiros, o recebimento, a guarda e venda das mercadorias, ficando eles apenas com o encargo do recebimento das vendas, antecipando, entretanto, aos vendedores o valor das mesmas, deduzida uma comissão que era a remuneração do factor.[13]

Em um ponto, no entanto, o factoring praticado nos Estados Unidos se manteve ligado ao que ia se extinguindo na Inglaterra. Ambos tinham na indústria têxtil seus principais nichos de operação.

A lição de Fran Martins é mais uma vez indispensável, no objetivo de detalhar a evolução do factoring nos Estados Unidos, e principalmente de explicar os fatores que fizeram dos Estados Unidos o grande motor do desenvolvimento da faturização:

Nos Estados Unidos, o factoring, por várias circunstâncias especiais (notadamente por não utilizar esse país o desconto bancário), teve grande expansão, mais ainda operando quase que exclusivamente na indústria têxtil (ainda hoje, cerca de 90% das operações de factoring nos Estados Unidos são relativas aos produtos têxteis, dado que na venda desses produtos é costume dar o vendedor ao comprador um prazo que vai até 120 dias para o pagamento das vendas – e com a faturização o vendedor recebe logo do factor o produto de suas vendas).[14]

Embora a questão do desconto bancário seja notadamente o aspecto mais importante na análise do deslocamento da atividade de factoring da Europa para os Estados Unidos é pertinente que se invoque mais uma vez os ensinamentos de Newton de Lucca:

Vale a pena assinalar que, embora a operação de desconto não se confunda com a faturização, conforme teremos a ocasião de mostrar mais adiante, ambas desempenham a mesma função, isto é, na sua configuração básica, tanto a operação de desconto quanto a faturização destinam-se a fornecer capital de giro ao pequeno e médio empresário.[15]

Justamente por essa similitude entre as operações, o desconto bancário supriu na Europa o vazio deixado pela ausência do factoring, na ocasião de seu deslocamento para os Estados Unidos.

De todo modo, os motivos que levaram o factoring a se desenvolver de maneira tão favorável nos Estados Unidos não se restringem à questão da não utilização do desconto bancário nesse país. 

Newton de Lucca cita alguns outros fatores:

Uma delas terá sido, provavelmente, o fato de que os bens produzidos pelos empresários industriais e destinados à clientela só poderiam ser absorvidos por esta, se os prazos de pagamento fossem razoavelmente dilatados. Mas o empresário de outro lado, não podia impulsionar a sua atividade produtiva, se não recebesse o aporte de recursos correspondente ao que havia produzido e vendido à clientela.[16]

Nesse momento já se observa uma das principais características do factoring atual, que é justamente fomentar a economia, fazendo com que, principalmente, as pequenas e médias empresas tenham capital de giro que lhes dêem fôlego, para movimentar as engrenagens da economia.

Na esteira deste fator de desenvolvimento, pode ser observado um outro motivo que levou ao robusto desenvolvimento do factoring nos Estados Unidos, que é justamente a “questão da insegurança quanto ao recebimento dos créditos em um país de grande dimensão territorial”.[17]

Dessa forma nota-se que, a partir das circunstâncias mencionadas anteriormente, e:

Mediante a adoção de leis sucessivas, em vários Estados americanos, o factoring passou a ser considerado como uma operação em que um comerciante, factor, adquiria os créditos de um outro comerciante, responsabilizando-se pela cobrança dos mesmos, sem direito de regresso contra o cedente, mediante o pagamento de uma certa comissão.[18] 

Com esse conceito, o factoring, além de se desenvolver nos Estados Unidos, acabou sendo reintroduzido na Europa em meados do século XX, se difundindo por diversos países no continente, o que comprova a importância dos demais fatores de desenvolvimento do factoring, pois mesmo na Europa, onde o desconto bancário sempre foi utilizado, o factoring conseguiu retomar seu desenvolvimento e afirmar-se como um importante mecanismo econômico.

1.2. A introdução do factoring no Brasil

Ao contrario do que ocorre com a evolução histórica do factoring em sentido global, não existem controvérsias doutrinárias a respeito do inicio da atividade em nosso país.

A Revista de Direito Mercantil – 124 apresenta uma perspectiva cronológica para a deflagração da atividade no Brasil:

Em nosso país o factoring foi objeto de um pioneiro artigo de Fábio Konder Comparato, publicado em 1972, no qual o autor propunha a expressão “faturização” para designar o novo instituto no Direito Brasileiro. Entretanto, foi somente na década de 80 que as operações de factoring de fato começaram a ser praticadas no Brasil. Refletindo a crescente difusão da sua prática, foi criada em 1982 a ANFAC – Associação Nacional de Factoring.[19]

No entanto, se hoje em dia as empresas de factoring são vítimas de freqüentes preconceitos gerados pela falta de informação a respeito da atividade, não é difícil imaginar que à época da criação da ANFAC – Associação Nacional de Factoring – poucas não foram as dificuldades para que se consolidasse o implemento da atividade no país. A esse respeito, nada melhor que trazer a baila às palavras do fundador da ANFAC, Luiz Lemos Leite:

A atividade dessas empresas estava ainda em fase pré-operacional, quando, em nome de uma política de contingenciamento de crédito, foi cerceada com a edição da atípica Circular n° 703, de 16-6-82, da diretoria do Banco Central. A Circular n° 703, procurando coibir a prática de operações financeiras definidas pela Lei n° 4.595, na verdade acabou suscitando dúvidas e controvérsias sobre a legitimidade das operações de factoring no Brasil, que tanto alento poderiam ter trazido às pequenas e médias empresas ao longo desses anos.[20] 

Mais absurdo ainda foi constatar que nesse período as Juntas Comercias do país, partindo de uma medida de iniciativa do Banco Central, foram proibidas de acolher pedidos de arquivamento dos atos constitutivos e outros das empresas de factoring.

O próprio Luiz Lemos Leite nos conta como se deu a superação do referido contingenciamento:

O contingenciamento, todavia, teve vida fugaz, esvaiu-se pelo desinteresse do próprio Governo em levá-lo adiante e a regulamentação prevista na Circular n° 703 não veio, em decorrência das várias e sucessivas alterações havidas na Diretoria do Banco Central, entre 82 e 88. O longo tempo decorrido e a falta de manifestação oficial sobre a matéria ensejaram a proliferação de incorretos conceitos sobre o factoring, transformando-o em tremendo engano no Brasil.    

De toda sorte, superando todos esses percalços, assim como nos demais países onde já se encontrava o instituto largamente utilizado:

A introdução do factoring no Brasil é preconizada como um meio de atender às pequenas e médias empresas, na obtenção de capital de giro, sem as dificuldades geralmente observadas no desconto bancário, muitas vezes de difícil acesso aos ‘pequenos comerciantes’.[21]

As palavras de Newton de Lucca complementam perfeitamente a passagem supramencionada:

[...] especialmente nos países pobres, como é o caso do Brasil , onde o crédito disponível não é suficiente para as necessidades existentes, a seletividade aumenta ainda mais, e a conseqüência óbvia é a de que  os recursos bancários são, a par do direcionamento determinado pelas autoridades monetárias, destinados fundamentalmente às empresas multinacionais e às estatais, pouco sobrando, na verdade, para a pequena e média empresa.[22]

Dessa forma, pode-se concluir que, a respeito da evolução histórica do factoring no Brasil, mais importante que situar cronologicamente sua introdução (ainda mais tendo em vista que não restam controvérsias a esse respeito) é solucionar questões relativas a sua regulamentação e a sua correta caracterização. Pontos estes que serão aboradados mais adiante.

Autor: Heider Fiuza de Oliveira Filho


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