Nas conchas da Poética



Nas Conchas da Poética

Por José Reinaldo F. Martins Filho

 

Tendo como referência A Poética do Espaço, de Gastón Bachelard, inaugura-se o presente discurso, com a proposta de refletir acerca do papel resguardado à figura da concha no que se refere a um pensamento acerca do espaço poético. Para tal, trago a proposta de que mergulhemos no reino dos seres aquáticos, para, ali, adentrarmos o interior da concha, único modo capaz de desvendar todos os seus possíveis mistérios. Com esse propósito, ultrapassamos os ditames de um mundo sensível, invadindo os silenciosos recantos da imaginação. Trata-se do universo onírico, lócus de todos os devaneios e garantia de sua possibilidade. Somente nesses horizontes, torna-se possível invadir o interior da concha; desvelar os seus mais preciosos segredos. De fato, não se trata de um discurso acerca das conchas, vistas sob a ótica de uma poética, mas de outro modo intenso, refere-se a um estar nas conchas, único local donde se poderia partir o discurso. Desse modo, não se torna o nosso título impróprio ou inconcebível, mas um verdadeiro convite; uma alusão à realidade à qual nos propomos: estar no interior da concha.

No decorrer de sua análise, Bachelard conclui que somente a linguagem poética seria capaz de abranger em si a profundidade de significados aos quais a realidade do espaço nos remete. “Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta.” (Bachelard, 1988, 95) Sua impressão nos remete a imagens outras; realidades que ultrapassam os níveis de nossa consciência, projetando-nos rumo a um além de nós. A isso, pode-se lembrar que “a imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber. É a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem jovem.” (Ibidem. p. 97) Como ontologia direta, a imagem já representa sua própria linguagem, ou como n’outrora bem aludiu Merleau-Ponty, trata-se de uma “linguagem silenciosa”, sempre comunicando a cada indivíduo de modo distinto. Diante do belo, as relações são as mais diversas. Na poética, tornam-se unidos os diferentes constitutivos do ser humano. Alma e espírito fundem-se mutuamente; unem-se um ao outro, transcendente e imortal. São, pois, forças que não passam pelos circuitos do saber. Na poética, alma e espírito coexistem unidos, num estatuto de constante prontidão e tranqüilidade.

Na poesia, expressa nas mais diferentes obras de arte, nos apropriamos daquilo que nos atrai. Por isso, “de qualquer maneira, todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito.” (Ibidem. p. 101) Ora, nisso se estabelece a união entre poética e espaço. Toda nossa análise acerca do espaço, parte do conjunto de sentidos que ele nos propõe. Para tal, como gênese de seu discurso, Bachelard apresenta o problema da poética da casa. Na casa estabelece-se nossa primeira relação com o espaço. Trata-se, pois, da figura que melhor representa a carga semântica que o espaço nos garante. Todos se recordam do lar donde vieram. Em larga medida, todos possuem lembranças, sejam elas boas ou más, da casa onde nasceram, cresceram, ou, de todo modo, construíram sua história. A casa é símbolo de aconchego, de tranqüilidade e segurança. É sinal de nossa posse; no contexto da casa nos apropriamos de nossa história. Diante disso, as figuras imaginárias podem nos oferecer uma vasta fonte de interpretação. Aqui instala-se a figura da concha. Noutras palavras, trata-se da “concha-casa”, espaço do onírico e porta de entrada para várias questões de nossa existência. Enquanto o ninho se refere à imagem de uma casa que dá os fundamentos de uma vida de autonomia, lançando os seus rumo às novas possibilidades, sinal de força e vigor, a concha, ao contrário de nos remeter ao exterior de si, à atitude de sair, projeta-nos rumo à interioridade. Trata-se da concha-casa, lugar de segurança e garantia de sobrevivência para os seres que nela habitam. Por mais que nos apareça a concha, figura corriqueira de nosso cotidiano, a imagem para a qual nos remete é de outro modo rica. Como afirma Bachelard, “por mais que eu toque as coisas, sempre medito sobre os elementos.” (Ibidem. p. 109)

Nesse sentido, voltar-se para a concha, significa voltar-se para a interioridade à qual ela nos remete. É o interior da casa, lócus de segurança e garantia de proteção. Ao contrário de nossas casas, construídas sobre moldes arquitetônicos e funcionais, a concha é produto da natureza. “Aqui, a natureza imagina, e a natureza é sábia” (Ibidem. p. 178) Olhar para uma cocha em sua singularidade é o mesmo que fugir da totalidade dos seres, que por sua vastidão passa despercebida por nossa apreensão. Na maioria das vezes, vemo-los todos indistintamente. Entretanto, segundo Bachelard, é a formação que nos aparece misteriosa. Preocupamo-nos em demasia com o deslanchar da natureza e nos omitimos diante do problema de sua gênese. As potestades nos causam mais espanto que os sutis ornamentos dos quais são compostas. Voltamo-nos para fora e nos fazemos esquivos ao trato com o interior. Contudo, afirma Bachelard, “a vida começa menos se lançando para a frente do que voltando-se sobre si mesma.” (Ibidem. p. 178) Ao contrário de nós, que antes construímos nossa casa para viver nela, o molusco se preocupa em viver, para construir sua casa. A casa é sua segurança; é garantia de sua sobrevivência. Voltar-se para a concha, como fenômeno da casa, é o mesmo que nos remetermos à realidade da formação. No encontro com a cocha nos encontramos com o “mistério da vida formadora.” (Ibidem. p. 179) Voltando-nos para a concha em sua sutileza, deparamo-nos com a grandeza que ali se encerra. Mesmo na pequenez da concha, “a casa se revela tão bela, tão imensamente bela que haveria sacrilégio em sonhar habitá-la.” (Ibidem. p. 179)

Uma intensa meditação sobre a concha, não se permite seguir as seduções das belezas exteriores, que, em geral, incomodam a meditação da intimidade. Voltando-se para o íntimo, percebe-se na concha-casa um verdadeiro tesouro potencial de devaneios. Vazia, a concha se torna o refúgio de todos os devaneios. Inabitada, a casa sugere mundos de imaginação. Todo imaginar, por sua vez, parte do contato com o fenômeno. Trata-se da admiração! Segundo Bachelard, “a melhor marca da admiração é o exagero.” (Ibidem. p. 179) Ora, o habitante da concha espanta. Contrapondo-se à constituição de sua casa, rígida, segura, sólida, o molusco, por sua vez, ordena-se na fragilidade de uma existência perene; é um ser vulnerável, dependente da casa como fonte de sua segurança. Aceitando pequenos espantos como esses – um ser frágil habitando o interior de uma concha-castelo – autorizamos nos espantar em outros níveis, agora mais intensos. Nisso, a arte da pintura nos exerce precioso auxílio. O devaneio alcança sua fertilidade. Ora, o que, porventura, poderia sair do interior de uma concha? – poderíamos nos perguntar. Ao que responderiam: Afrodite, por exemplo! Animais alados, homens, exércitos, gigantes. Todas essas criaturas podem partir do interior de uma concha. Reduzindo-se à interioridade de uma concha, voltamo-nos para o interior de uma casa onírica, onde todas as possibilidades coexistem unidas; prontas para serem liberadas ao sabor de nossa imaginação. Nisso, torna-se a concha o lócus donde brota a realidade, sendo que essa, por sua vez, nasce do irreal. Não se sabe o que pode sair do interior da casa. Como resguardo de toda a força vital de seu habitante, a concha se torna, simultaneamente, a garantia e a gênese de sua existência.

Diante disso, dois verbos parecem ser fundamentais, a saber: entrar e sair. A princípio, apresentamos a proposta de um adentrar ou entrar no interior da concha, para dali proferirmos o discurso. Contudo, ao longo da reflexão, parecem ter surgidos elementos que possibilitam surgirem da concha os mais variados seres. A isso corresponde o mundo onírico, donde brotam todos os possíveis devaneios de nossa imaginação. Sair ou entrar não passam de dois verbos cristalizados no espaço. Somente as imagens que trazemos, são capazes de garantir-lhes a mobilidade e dinâmica. Na concha, o molusco pode tanto sair quanto entrar, na medida de suas necessidades. Não significa, pois, uma prisão donde não se possa sair. Trata-se de um ser libertado, mas que possui na casa sua referência de proteção. Também nós, como o molusco, somos projetados para dentro e para fora de nossa casa. “O complexo de medo e de curiosidade que acompanha toda primeira ação sobre o mundo”, torna-se, ao mesmo tempo, nosso propulsor e nosso resguardante em nossa relação com o próprio mundo. Muitas vezes, “queríamos ver e temos medo de ver.” (Ibidem. p. 181) Por isso, a concha se apresenta como figura tão próxima de nós. Segundo Bachelard, é na análise do insignificante que podemos conhecer o imenso. Na análise das sutilezas, postas sob o foco da lente de aumento da imaginação, encontramos a possibilidade do conhecimento do incomensurável. As imagens, aqui, sempre se animam na dinâmica do escondido e do manifesto.

Ora, na quietude da concha, o ser prepara sua saída. “O ser que se esconde, o ser que entra na concha, prepara uma saída.” (Ibidem. p. 182) Diante disso, encontramos um ensinamento grandioso. A figura da casa é a que melhor pode ilustrar o processo de construção de nossa condição de seres projetados para o mundo. Para nos compormos, nos recolhemos no interior da concha-casa. Diante de um perigo, nos abrigamos no regaço de sua proteção. Contudo, não se trata de um vão refugiar-se, desprovido da capacidade de sair. Uma vez protegidos, resguardados e sanados, estamos propensos ao lançar-se rumo à exterioridade. A figura do recolher-se na concha torna-se semelhante à do ninho, que num primeiro momento se ocupa com o cuidar e proteger dos filhotes, dando-lhes a posterior garantia para sua independência. Diante disso, segundo Bachelard, “ninhos e conchas não podem unir-se tão fortemente a não ser por seu onirismo. Todo um ramo de ‘casas oníricas’ encontra aqui duas raízes distantes, duas raízes que se entremeiam como tudo aquilo que está distante num devaneio humano.” (Ibidem. p. 187) Como nas conchas, os devaneios são a possibilidade de nos remetermos ao nosso interior. Em certa medida, nosso próprio interior é a nossa primeira casa. Lembrando a simbologia dos antigos, percebemos que a concha sempre fora utilizada como referência ao invólucro de nosso corpo. Como nosso corpo é o responsável por resguardar a alma e o espírito, a concha se ocupa da segurança do molusco. O interessante em notar é que, ao contrário de nossa casa, a concha do caracol é um tipo de casa que se adéqua ao seu morador. Não é o habitante que deve se adequar à casa. A concha-casa cresce na mesma medida que seu hóspede. Na medida em que crescem nossas experiências oníricas, cresce também o espaço de nossa casa interior. Tal crescimento chega ao ponto de encontrarmos, dentro da concha, um vasto mundo interior, distinto daquele que o espera do lado de fora. Nessa interioridade, somos formados e projetados para o mundo.

Como percebemos, “os caracóis constroem uma pequena casa que carregam consigo. Assim, o caracol está sempre em casa seja qual for a terra para onde viaje.” Também nós temos a necessidade de estar sempre em casa, mesmo que em terras estrangeiras. Tomar posse de nossa interioridade significa estar sempre em casa. O caracol sempre tem sua casa consigo; sempre encontra um meio para nela se retrair. A figura da concha como referência ao voltar-se para dentro, atua em nós como alusão à nossa própria interioridade. Veja que exemplo pode brotar de tão singela criatura! Nisso plenamente concordamos com Bachelard, quando diz que “os menores interesses preparam os grandes.” (Ibidem. p. 188) De fato, no trato com as conchas, descobrimos realidades para as quais muitas vezes não nos damos conta. Em todo caso, o relacionar-se com a concha-casa, desperta em nós a atenção para potencialidades muitas vezes adormecidas. Certamente, a impressão causada em Sócrates quando encontra no pórtico do templo de Delfos, a inscrição “conhece-te a ti mesmo”, deveria ser a mesma para nós, quando aludidos pelo caramujo: “Volta-te para tua casa!” Em termos genéricos, trata-se da mesma alusão. Na vida prática, “o caracol se retrai dissimuladamente em seu quiosque como uma menina contrariada vai chorar no seu quarto.” (Ibidem. p. 188) A certeza de segurança e proteção encontrada na figura da casa é a mesma para nós e para eles, os caracóis. A diferença talvez consista no fato de que nós, mesmo que dotados de racionalidade, nos fazemos, na maior parte das vezes, esquivos a tal compreensão. Não nos damos conta do que representa para nós a figura da casa, a concha-casa.

Não obstante, segundo Bachelard, “da mesma forma que há casas que são ciladas, há conchas-armadilhas.” (Ibidem. p. 190) Refere-se, aqui, àquelas conchas ou ostras, que se fingem de imóveis, ou se passam por parte do ecossistema mineral, como uma pedra, por exemplo, com a finalidade de abocanhar suas presas. Diante disso, podemos refletir: que casas nos aparecem como armadilhas? Creio que somente uma possibilidade se faz eminente, ao que podemos responder: a casa dos outros. Invadir a casa de outrem sem ser convidado para tal significa expor-se ao perigo de ser por ele abocanhado! Muitas podem ser as situações, nas quais, torna-se mais fácil voltar-se para a casa do outro. Nisso, abdicamos de nossa interioridade e expomo-nos ao perigo. Cada molusco possui sua própria casa-concha. A segurança garantida para um pode representar o perigo eminente para outro. Por isso afirmar que nossas experiências oníricas sempre possuem o caráter singular. Ninguém é capaz, mesmo que por um instante, de habitar os recantos da imaginação alheia. O imperativo volta-te para tua casa, refere-se a cada qual individualmente.

Por fim, vale referir-se, de outro modo novo, à concha como fonte de devir: “o ser mole, viscoso, baboso, é, dessa forma, o ator da consistência dura de sua concha.” (Ibidem. p. 192) Nisso percebemos como as singelas formas de existência, uma vez unidas à possibilidade do devaneio, possibilitam reflexões de cunho tão profundo. Ora, para muitos, a figura da concha não é capaz de demonstrar nada. Para o artista ou o poeta, “o menor caracol segregando sua concha” é capaz de garantir sonhos infinitos. Em outras palavras, são as conchas-casa, a garantia de segurança para seus habitantes. Não se trata, porém, de uma segurança qualquer, mas, longe disso, é fruto de vasta engenhosidade. O predador não conhece o interior da concha. Em seu formato aspiral, guarda recantos inimagináveis para aquele que a ataca. Fugindo para o fundo de sua concha, o molusco ou caramujo, se encontra protegido contra todo e qualquer perigo que lhe venha ao encontro. Além da intimidade, anteriormente ilustrada, no interior da concha-casa, está a proteção exigida para viver num mundo de tantos contratempos. É o caramujo um monge errante; levando consigo sua casa, viaja pelo mundo, sempre com a possibilidade de recolher-se em seu claustro. “A caverna-concha é aqui uma cidade fortificada para o homem só, para o grande solitário que sabe defender-se e proteger-se por simples imagem. Não há necessidade de barreira de porta travada: os outros terão medo de entrar.” (Ibidem. p. 195)

Realizar uma Poética do Espaço consiste em dispor-se ao devaneio. Assim, a concha surge como forte colaboradora. “A concha confere ao devaneio uma intimidade completamente física.” (Ibidem. p. 194) Falando do recolhimento, da intimidade, da simplicidade com a qual os fenômenos se manifestam, queríamos demonstrar a intrínseca relação pela qual a imaginação a isso se liga. Em outras palavras, “desde que a vida se abriga, se protege, se cobre, se esconde, a imaginação simpatiza com o ser que habita o espaço protegido.” (Ibidem. p. 195) Para Bachelard, em seu esconderijo, um animal está seguro de seus segredos. Voltando-nos para as conchas, percebemos que “as coisas simples são, muitas vezes, complexas” (Ibidem. p. 184); e que em sua simplicidade, a natureza tem muito a nos comunicar. Ora, “resolvendo os pequenos problemas, aprendemos a resolver os grandes.” (Ibidem. p. 197) E estudando os devaneios, nos convencemos de que “não há nada de insignificante na psique humana.” (Ibidem. p. 197)

Bibliografia:

BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. Tradução de Remberto Francisco Kuhnen, Antônio da Costa Leal, Lídia do Valle Santos Leal. – São Paulo: Nova Cultural, 1988. – (Coleção Os Pensadores)


Autor: José Reinaldo Felipe Martins Filho


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