Amo! Logo, não existo!



Amo! Logo, não existo!

 

Por José Reinaldo F. Martins Filho

 

 

A aparente incoerência lógica da premissa amo, logo, não existo, longe de se propor a corroborar a argumentação cartesiana segundo a qual a certeza da existência do mundo parte da segurança de um eu capaz de pensá-lo, quer apresentar a inversão de tal pressuposto, devolvendo à relação o seu verdadeiro papel. Ao afirmar na capacidade de amar, ou melhor, no próprio ato de estar amando, a possibilidade da não existência daquele que é o agente de tal atividade, pretende-se trazer para o núcleo da presente reflexão a figura do outro, como centro vital em toda relação de amor. O modo amoroso, diferindo-se de outros modos de relacionar-se, é o que garante, em maior escala, a visualização do real papel que o outro ocupa na estrutura do sujeito que se abre para tal relação.

Ao afirmar, de modo categórico, je pense, donc je suis, Descartes assegura a possibilidade do conhecimento baseando-a no pressuposto do eu-pensante, ou como denomina, sujeito – cogito. O sujeito pensa o mundo sempre e unicamente a partir de si mesmo, ou, na melhor das hipóteses, partindo de suas experiências subjetivas. Tal estrutura é uma das bases do pensamento moderno, iniciado no século XVI e mantido ainda nos tempos hodiernos sob a forma de sutis elaborações ideológicas. Erigindo a segurança do sujeito pensante, Descartes erige, de igual modo, a sociedade do Eu, onde a figura do outro torna-se, lenta e sorrateiramente, dispensada e exclusa. O eu é a segurança de tudo, a ponto de definir a existência de tudo, de si e do mundo. A relação torna-se prescindível. Pouco a pouco se constrói o império do indivíduo. O rosto do outro se esvai; resta-nos apenas a esperança.

Uma vez alterada a estrutura do raciocínio, de modo a recolocar o fundamento que a sustenta, torna-se instaurado o não existir do homem. Contrapondo-se ao que outrora fora a segurança do pensar - a individualização do eu que pensa -, está a capacidade de amar como única forma de resgatar aquele que a muito fora esquecido por nós, mesmo estando conosco em todos os momentos: o outro.

Quando penso, penso a partir de mim. Penso o mundo, as coisas, a mim mesmo, sempre e unicamente tomando por origem minha própria subjetividade. Na relação de amor tudo se dá de forma distinta. Mesmo sendo eu mesmo quem ama, sempre amo a... O objeto que se torna o depositário de meu amor é sempre exterior a mim. Portanto, a origem de tal relação se encontra no outro e não no eu próprio. O outro é aquele para quem dispenso o amor, nisso torna-se o protagonista de nossa relação. Assim, se amo, não existo, mas me desperto para a existência de outrem. O outro existe, somente por isso posso amá-lo. Tal pressuposto deve conduzir nossas relações; tornar-se um imperativo em nossa convivência.

Vivemos em um mundo onde a existência cartesiana de um eu que pensa a realidade impera sobre as relações dos indivíduos. A realidade do sujeito exclui o dado da convivência com o outro, como autêntico fundamento da vida. Somente quando um sujeito se funde com um outro numa relação de correspondência mútua, torna-se capaz de fazer a verdadeira experiência do viver.  Acima de tudo, somos seres de relação. Desde nosso nascimento até a nossa morte nos relacionamos com a figura do outro, expressa nas mais variadas formas (o mundo, os outros, Deus) - sendo que o ápice de todas essas relações e a relação maior para a qual tendemos é o amor.

Partindo dos primórdios de nossa constituição percebemos que tudo em nós aponta para a relação com o outro. Nosso corpo é projetado para a relação! Em primeiro lugar, é ele o que nos possibilita ser presença junto aos outros. É através do corpo que podemos con-viver nesse ou naquele lugar. Por conseguinte, nossos sentidos de nada valeriam senão para estar em contato com a realidade outra. Nossos olhos vêem a... Nossos ouvidos ouvem a... Nossa mão toca a... E assim por diante! Precisamos de alguém para vir à existência e desde então nunca cessará nossa inclusão de relacionamentos. No outro nos encontramos de tal forma que torna-se ele nossa possibilidade de recriação. O encontro com cada outro é a minha recriação do mundo. O outro está constantemente aí! Constantemente a esperar o meu amor! Acaso, poderia existir outra realidade cuja existência insistente seja tão óbvia e, ao mesmo tempo, para a qual nossos olhos estejam tão fechados? Creio que não! O outro está face a face conosco. Amá-lo é a condição de possibilidade para encontrá-lo. Acompanha-nos a todo tempo, como o horizonte de nossa existência: a terceira margem do rio. Se doa e se subtrai, como a margem que nunca nos deixa e sempre nos espera. Pode, acaso, existir realidade mais profunda? Por sua amplidão, profundidade e originariedade, não será o amor o sentido mais profundo de nossa relação com o outro?

Por sua vez, a maior demonstração de amor é aquela capaz de doar-se sem medida. Amor é oblação. Por isso, toda relação baseada no pressuposto do amor tem o outro como centro e nunca o si mesmo. Na doação não existem os limites do eu. Tudo se concentra no outro. Não significa, porém, a anulação daquele que ama. O fato é que, na relação de amor, tem-se garantido como existente o outro e não o eu. Nisso retomamos o início de nosso caminho. A não existência conferida ao eu que ama, longe de causar-lhe o aniquilamento, propõe-lhe uma experiência única e originária: o “não-existir” em função de... Assim é constituído o que denominamos mundo. Existências distintas que se laçam e entrelaçam no compasso do tempo, construindo, juntas, a realidade que conhecemos.

A existência que nos envolve, nem sempre é compreendida em toda sua abrangência. Não somos capazes de abarcá-la em sua totalidade. Não! Vivemos numa realidade constituída de diferentes modos de existir. Não se trata, aqui, da realidade física do mundo, mas sim das estruturas psíquicas e relacionais que criamos de maneira individual e coletiva. A grande maioria das pessoas vive no patamar visível da existência, nível onde se encontram todos os objetos do mundo em sua materialidade. O ser humano, ao contrário dos objetos em geral, não se limita aos ditames da coisa mesma, da matéria, do corpo. Também não se limita ao mundo dos seres vivos, como é o caso do gato, do cachorro e das plantas que ornamentam o nosso jardim, por exemplo. Somos, eu e você, dotados de várias outras estruturas que, juntas, compõem todo o nosso ser. Não temos os mesmos gostos; não vivenciamos as mesmas experiências; não temos as mesmas relações diante dos mesmos acontecimentos. Por isso, nem sempre compartilhamos a mesma existência. De algum modo, “não-existimos” paralelamente a milhares de existências outras que não a nossa própria.

É fato que a cotidianidade do mundo consegue abarcar em si a grande maioria dos homens. Dão-lhes o mesmo rosto, ou melhor, subtraem-lhes o que lhes é próprio conferindo-lhes a impessoalidade na qual todos se misturam e, ao mesmo tempo, ninguém se identifica. Contudo, vários são aqueles que se mostram esquivos a tal imposição. São os que se reconhecem como “não-existentes” nessa realidade devastadora. Daí dizermos que a realidade que conhecemos é composta de diferentes universos de existência que coexistem paralelamente, atuando um sobre o outro, sem, no entanto, se confundirem entre si. Todos aqueles que, de algum modo, não se resignam à avassaladora e dominante massa social, optando pela construção de sua própria identidade e levando em consideração que a relacionabilidade é dado fundamental em nossa constituição, tornam-se membros de alguma modalidade de “não-existência” paralela. Eis o tema que vos apresento: vivemos, muitos de nós, envoltos numa “não-existência” paralela a tudo o que se apresenta como normalidade para o mundo. Mesmo antes de conhecer as proporções de tal confirmação, estamos nela. Isso é magnífico!

Por fim, uma vez defendida a idéia de que de algum modo podemos “não-existir” na realidade que nos envolve, resta-nos associar a possibilidade de amar – maior expressão de nossa relação com o outro – como sendo o canal para uma dessas realidades paralelas. Os escritores e poetas, os músicos e pintores, os românticos e apaixonados, todos esses, possuem algo em comum: sua sensibilidade para com o mundo que os circunda. Pela sensibilidade que lhes é inerente, criam seu próprio mundo paralelo, único lugar onde seriam capazes de sobreviver. São exemplos de seres que coexistem em um universo comum a si, mas distinto daquele onde se encontra a grande maioria das pessoas. Tal realidade se apresenta ilimitada em possibilidades. As palavras ou conceitos são incapazes de descrevê-la. Explicar de modo sistêmico o que tudo isso significa seria o mesmo que lhe usurpar a mágica do “não-existir-existindo”. É algo que não pode ser abarcado em sua totalidade.

É nessa existência, para muitos inexistente, que se encontram os verdadeiros pares; cruzam-se os semelhantes ideais e se entrelaçam as almas dos que se propõem ao mesmo caminhar. Aqui as diferenças tornam-se riquezas e as semelhanças idôneos tesouros. O eu encontra o papel do outro e no amor suas relações se estabelecem frutuosamente. O caminho que, a princípio, se detinha nos rígidos ditames da lógica formal, do racionalismo ou da razão pura, insere-se, pouco a pouco, nos serenos territórios do poetizar. Para o mundo, isso significa não existir! Somente nesses liames seriam possíveis tais abordagens. Somente no outro o eu encontraria sua razão de ser. Somente no amor tal relação se estabeleceria. Por fim, só o poetizar é capaz de compreender: Amo! Logo, não existo!

 

 


Autor: José Reinaldo Felipe Martins Filho


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