Mentiras E Mortes



Dormir em  poltrona de avião é sempre complicado. Ainda mais para quem viaja de classe  executiva. A pessoa senta numa cadeira pouco confortável, com um desconhecido  ao lado que provavelmente irá encher a cara de uísque antes que o avião esteja  estabilizado em altitude de cruzeiro, que não obstante, se não puxar uma  conversa chata sobre as chagas de sua cunhada vai pedir uma consulta  profissional, seja qual foi sua profissão.

Henry  Gascoin sabia pouco sobre isso. Primeiro porque antes de se tornar a pessoa que  é hoje, jamais havia estado sequer perto de um aeroporto, ao menos s não fosse  para roubar os recém chegados.

Dessa vez  era diferente. Ao seu lado esquerdo havia o corredor da aeronave, amplo,  silencioso, escuro e frio, iluminado senão, por somente uma luz mortiça  sobrevivente dos spots amarelos no  teto. Do outro lado, distante consideravelmente, uma morena de cabelos curtos,  olhos castanho-esverdeados, corpo escultural e, à superfície cheirando a  Christian Dior, e mais profundamente à Victoria’s Secrets.

Em frente  ele não sabia o que havia, devia ser uma dessas senhoras gordas de fala  empolada e pouco amistosa. A moça ao lado dele, como se não bastasse ser linda,  emitia gemidos de sono tão gostosos quantos os de prazer, isso ele bem sabia por  que era sua namorada, Liv Marie Duncan. Uma canadense metida a francesinha que  havia conhecido há pouco mais de dois anos.

Gascoin  jamais dormia em viagens de avião, ainda gostava de sentir e sensação da  aeronave decolando, navegando e pousando, como se fosse sua primeira vez.  Olhava Liv dormindo e sorria. A comissária de bordo vinha trazer-lhe outro  drink.

__Senhor  Gascoin, como o senhor gosta: maior de idade, duas pedras de gelo e num copo  baixo... – ela dizia e sorria maliciosamente, ele correspondia de forma  cordial. A comissária sabia que era extremamente proibido beber pouco ante da  aterrissagem, mas Gascoin tinha um sorriso tão amistoso...

Enquanto  olhava o rebolado azul-British Airways da saia da moça a senhora que estava à  frente, que também não dormira, comentou com o marido sonoléptico ao lado.

__ Que  ultraje! A namorada dormindo e ele cortejando a aeromoça! – tentando ser  discreta.

Poucas  pessoas no mundo ainda usavam o termo “ultraje” e alguns deles estavam  concentrados na Inglaterra. Era para lá que eles iam. O enorme 747 verteu o  flanco direito para baixo dando uma guinada para leste evidenciando os  primeiros sinais da alvorada que irrompiam do oriente. Quando estabilizou  novamente estava mirado perfeitamente, vários quilômetros acima e aquém, da  pista 35-18 do aeroporto de Heathrow, Inglaterra.

Cuidadosamente  ele passou por cima dos seios de Liv e levantou a proteção da janela. Sorriu e  suspirou. Estaria ainda melhor se não sentisse aquela dor lancinante no joelho  direito, jamais diria a Liv o motivo da dor, não o verdadeiro.

Se Gascoin  não fosse cidadão francês sem dúvida seria britânico. A visão do tempo fechado,  da bruma na janela e das gotas de chuva era maravilhosa. Imaginava como seria  bom estar do lado de fora naquele momento sentindo o frio subir pelas costas e  atingir a base do crânio como uma navalha.

Liv reagiu.  Tremeu os olhos, abriu a boca como um bebê e levou os dedos ao rosto. Balbuciou  alguma coisa em francês e enfiou a cara no ombro dele. A sensação era boa  demais.

Voltar a  Londres depois da estada entre os diamantes de sangue da África da Sul...

Gascoin é um  mercenário. No verdadeiro sentido da palavra. Algumas pessoas pagam para que  ele faça coisas que ninguém mais faz: transportar documentos importantes que  não podem ser enviado pelos meios simples de hoje, se apoderar de tecnologias  secretas, informações como nomes de agentes e oficiais do mundo da espionagem e  contra-espionagem, pôr a exposto coisas que deveriam ficas escondidas e em  casos mais raros, executar pessoas.

A vida dele  jamais foi uma história de mocinho, sempre o bandido. Depois de tomar um tiro  há quase dez anos, ficar um mês em coma numa UTI de hospital público em São  Paulo, entrar para um grupo paramilitar de segurança e caça, ele resolveu  seguir carreira solo e começou nessa coisa de mercenário.

Essas coisas  não começam da noite para o dia e a menos que a pessoa não queira ser presa  logo em sua primeira missão, deve ser iniciada por intermédio de outra pessoa  do ramo.

Assim foi  com Gascoin. Primeiro ele foi treinado para ser um sobrevivente de primeira, do  nível dos soldados das forças especiais inglesas, que ao contrário dos  americanos, são deixados nas piores selvas do mundo com pouco mais que a roupa  do corpo e não com toneladas de equipamentos e um instrutor portando um GPS,  faca, isqueiro, cantil, remédios e um monte de coisas que o exército vai mesmo  dar-lhes se forem à guerra.

Depois foi  instruído em como agir em situações de emergência nas mais variadas  localidades. Para isso Olivier, ser mentor, um ex-comandante de tropa de  assalto da Legião francesa na Argélia, ensinou-lhe desde a língua árabe até as  regras de itinerários dos trens em Istambul, dentre outras coisas.

A mocinha  dormindo a seu lado, claro, nada sabia dessas habilidades, estranhava algumas  atitudes do namorado como ele saber o quanto poderia correr antes de começar e  ficar sem fôlego pelas ruas de Jacarta, considerando a temperatura local e a  altitude.

Ou coisas  como porque um desportista do ramo de carros e motos tinha de saber falar seis  línguas e dois tipos de luta, saber pilotar tanto um carro russo dos anos  setenta quanto um avião de combate.

Conhecer  vinhos dos mais caros mesmo sendo um admirador de uísques e saber da política  atual de um determinado país numa festa em Mônaco. E o mais estranho na opinião  dela, a obsessão de Gascoin por frio, quase tão grande quanto sua aversão ao  calor.

__Gas, já  estamos chegando?

__Sim, Liv.  Acorda, devemos estar em Heatrow em seis minutos.

Ela mal  considerou o exagero.

A aeromoça  sorridente passou novamente verificando os acentos, bandejas, celulares e  laptops e depois foi sentar-se em sua poltrona.

A senhora em  frente conversou mais alguma coisa com o marido que não respondeu  porque pensava que ele poderia estar sentado ao  lado de uma linda e simpática jovem e tomando uísque antes de pousar, ao invés  de estar ao lado da bruxa velha que espirrou mais um pouco do perfume que  trazia na bolsa, era a décima quinta vez que fazia aquilo desde Paris.

Liv sentiu o  cinto firmar no ventre, mas não quis abrir os olhos, coçou o rosto novamente e  pensou em acordar de vez depois que todos deixassem a aeronave.

__ Liv  acorda. Não quero ter que ficar de puxando pelo aeroporto para pegar as malas.

__ São duas  malinhas leves! – reclamou – além do que falta muito pra chegar.

A voz  eletrônica sobre suas cabeças então avisou.

__ Senhores  passageiros, aqui fala seu comandante, queremos informar que dentro de cinco  minutos estaremos pousando no aeroporto de Heatrow, Inglaterra. O tempo lá fora  está fechado, a temperatura no solo é de oito graus, há uma chuva leve e são  exatamente sete horas e dezesseis minutos da manhã. Gostaríamos de agradecer,  em nome de toda tripulação, e desejar-lhes uma feliz estadia em terras de Sua  Majestade.

Agora ela  abriu os olhos.

__ Como é  que você faz essas coisas, Gascoin?

__ Passamos  pela Estrada para Foster segundos depois de virar à esquerda...

__ Não  precisa explicar, GPS humano...

Puxando a  namorada pela mão Gascoin foi até a esteira onde pegam as malas e logo os  primeiros homens aproximaram-se para tentar uma confirmação: era mesmo o dono  da Gas-Competition?

Tapinhas nas costas, autógrafos, sugestões para a próxima temporada de  corridas quando um funcionário da British chega afoito.

__ Senhorita Duncan! Nós pedimos desculpas pela mistura, não era para  as malas de vocês virem para esta esteira. Por favor, me acompanhem para a sala  de descanso, alguém leva suas bagagens e o senhor Gascoin pode tomar um uísque  enquanto espera pelo carro.

__ Bom dia, Michael. Não esquenta a cabeça, a gente pega as malas aqui  mesmo, o carro já deve estar lá fora.

__ Na verdade ainda não está senhorita Liv. O motorista ligou avisando  que, devido ao um pequeno acidente na estrada, iria se atrasar. – disse o  prestativo funcionário seguido pelo casal.

__ Esqueça o uísque, Michael. Quero somente um cigarro e um sofá  confortável. As poltronas daquele avião são ótimas, mas não por tantas horas...

__ Não diga isso a mim, senhor Gascoin. Semana passada fiz quatro  viagens numa única semana para a Rússia! Imagine o estado em que fiquei:  deplorável!

Depois de algum tempo aguardando na sala VIP da empresa o carro chegou.

__ Basta assinar aqui, senhor Gascoin. Bom dia, senhorita Duncan.

__ Então está tudo certo?

__ Como o senhor pediu: BMW 760i... – aproximou-se para falar mais  baixo -... E aquele pequeno item que o senhor solicitou está no local de  costume.

Gascoin sorriu, pôs as malas no banco de trás e deixou o aeroporto em  direção a City, o centro comercial de Londres.

__ Hum! Amor olha só esse tempo. Que delicia! Acho que estou ficando  cada dia mais parecida com você, Gas. Antes eu adorava sol e calor e agora só  quero chuva e tempo fechado, como você. Acho que será uma boa idéia essa  compra.

__ E eu tenho certeza, Liv. Garanto que vamos adorar a propriedade.

__ Mas vê se não fica me contradizendo. Se eu achar algum defeito vou  dizer na hora. Aí você começa a falar que não é defeito, que basta fazer uns  ajustes e tudo fica bom.

__ E não foi exatamente assim em Sendai?

__ Mas lá é diferente, os japoneses sempre fazem as coisas com  perfeição. E aquela vista da encosta da colina coberta de neve com o mar lá  embaixo é demais!

__ Pois eu garanto que essa será melhor ainda! Já te disse que vi as  fotos aéreas?

__ Umas trinta vezes desde que decolamos... – parou pra bocejar -... E  eu ainda to com sono.

Chegando a city Gascoin manobrou o grande carro preto até o  estacionamento da Brixton Towers Property, a maior agência de imóveis do Reino  Unido. O dono, um descendente de imigrantes afro-caribenhos John Hunter, alto,  forte, de pouco mais de sessenta anos foi primeiro negro a ser admitido no  London Golf Club, onde era ranking 19 dos mais de cento e cinqüenta sócios,  Gascoin era ranking 130, Liv fora inscrita há um ano e era 86.

O casal fora conduzido até a sala particular de Sir Hunter para  esperá-lo. Ficaram observando a vasta visão da city com a prefeitura abaixo da  torre, pouco mais alta.

Logo Sir Hunter chegou e depois dos efusivos cumprimentos – ele adorava  Liv como a uma filha – foram tratar de negócios.

__Muito bem Henri. Senão sejamos esta sua bela propriedade: sobrado de  três andares com terraço, erguida em 1937 e reformada em 2004. Localizada em  Chelsea, Mayfair street, ala norte com vista para o Hyde Park e sul com vista  para o Tâmisa.

Ele pensou um pouco e suspirou.

__ Deve ser a única casa da região com mais de cinco metros de fachada  – continuou – conta ainda com seis vagas de garagem e um interior vitoriano  decorado por...

Liv levantou o dedo.

__ Ah, mas é claro! E como poderia ser diferente!

Seguiu revendo as características da casa, ainda era o único tipo de  venda que ele mesmo dava atenção.

__ Honestamente, meu amigo. Por que quer vender uma propriedade como  essa e se mudar de Chelsea para – olhou o mapa por baixo dos óculos bifocais –  para onde mesmo? Inverness, Escócia! Tem certeza que quer fazer isso?

__ Imagine, sir Hunter. Eu vou ter que usar toneladas de roupa para  enfrentar a temperatura daquele lugar! – reclamou Liv.

__ Henri, entendo que goste de lugares frios, isso é bem notório. Mas se  Londres não é fria o suficiente para você, é melhor que more no Alaska! Vai  fazer a menina ficar doente todos os dias.

Depois de muita luta Gascoin conseguiu que o homem botasse preço na  casa. Sir Hunter pediu licença e deixou o casal a sós para que resolvessem se  aceitavam ou não.

__ Mas você é a coisa mais teimosa que já vi Liv. Havia concordado na  compra da propriedade e agora fica dizendo que vai ficar passando frio! Por que  não disse isso antes?

__ Porque antes estávamos na África! Se tivesse dito que o Camboja é  mais frio eu teria concordado em comprar uma choupana em Taipei... – e começou  a rir.

__ Resumindo Liv Marie...

__ Você faz o que achar melhor. É seu dinheiro, Gas, não vou ficar  dizendo como deve gastá-lo. Se quer comprar um pedaço de um refrigerador nos  confins da Escócia vendendo um palacete no centro do Londres, tudo bem.

__ Na verdade os valores não batem. A propriedade é bem mais cara que  isso.

Conversaram mais um pouco e resolveram que iriam acertar. Sir Hunter  retornou e mandou que alguém preparasse a papelada. Ele e o casal foram então  para o recinto de descanso da empresa para comemorar a nova compra com uísque.

O dono da imobiliária não podia estar mais satisfeito, ganharia nas  duas transações e sua comissão seria muito generosa. A casa de Gascoin seria  vendida por doze milhões de libras esterlinas, cerca de vinte e quatro milhões  de dólares, e a nova propriedade seria comprada por Gascoin pela quantia de  quarenta e sete milhões de libras, pouco mais de noventa e quatro milhões de  dólares.

Hunter não achava um bom negócio mesmo em se tratando de Gascoin,  conhecido no clube de golfe por ser um investidor cuidadoso. As poucas empresas  com que tinha sociedade eram sólidas, tradicionais e em expansão como a BMW e a  B.CORP.  de seu amigo Victor Vox.

De qualquer modo o homem parecia determinado a comprar a tal  propriedade. Apesar das inúmeras vezes em que pedira uma explicação, sir Hunter  não obteve uma que o convencesse, sequer com sua protegida temente ao frio.

Tudo estaria resolvido em cinco dias e enquanto isso Gascoin e Liv  ainda ficariam na casa em Chelsea.

Os acertos e assinatura dos contratos- dos quais Liv era a primeira  namorada de Gascoin a ser autorizada por ele para assinar co-proprietária- foi  feito ao final da tarde quando o casal já estava cansado de ler e ouvir coisas  complicadas o dia todo. Uma última comemoração discreta entre os altos  funcionários da Brixton, Liv e Gascoin fechou o que fora para todos, uma  agradável segunda-feira.

Gascoin agradeceu e dispensou o motorista oferecido pela empresa e  seguiu com a moça para um pub, em West End, a dez minutos de Picadily Circus.  Era uma das coisas que os dois adoravam fazer quando iam a Londres, tomar uma  cerveja juntos antes de ir para casa, como se fosse um happy hour entre amigos.

Pararam então no Paiol Vermelho, um antigo reduto punk hoje bem mais  tranqüilo decorado com posters de lendas do rock que haviam passado por ali: Jimy  Hendrix, Mick Jagger, o Sex Pistols, David Bowie e um freqüentador ainda  assíduo que gosta de ouvir os papos de Gascoin e Liv sobre o Brasil, Brian May.

__ Cara deve e demais viver num país como aquele... – comentava meio  viajandão - ...Sol, mulheres, bebidas na calçada até altas horas, festas...

__ Brian, você faz tudo isso aqui em Londres – comentava Liv –  Descontando a parte do sol, é claro.

Ele abriu os olhos mais do que o normal e fitou o horizonte distante  que teima em decorar a cabeça dele.

__ É verdade! – sorrindo abertamente – É por isso que vocês brasileiros  são ótimos!

Tudo bem que ele é francês e ela canadense, mas vai dizer isso ao  ex-guitarrista do Queen depois de muita cerveja guinnes e maconha, que ele  consumia em casa pra não dar bandeira.

__Livie e Gascoin! Vocês vão a minha casa amanhã que vamos dar uma  festa depois de uma entrevista para a MTV americana...

E o papo de bêbado seguiu até Gascoin ficar de saco cheio de ele babar  no decote dela. Foram embora as nove, cansados e a fim de banho e cama.

Liv foi direto dormir, Gascoin como de costume ficou na sala de estar  da biblioteca tomando um conhaque e fumado enquanto pensava na nova propriedade  que havia comprado, e em Johanesburgo, ou perto dali. Junto com todas essas  lembranças ainda tinha a dor lancinante na perna esquerda e a dor paralisante  no joelho direito. Não queria que sua linda namorada ficasse preocupada, então pouco  disse a ela sobre isso, preferindo mastigar analgésicos enquanto degustava sua  bebida.


Autor: Brunno Bueno


Artigos Relacionados


"amo Você."

SolidÃo...

Maior LiÇÃo De Vida

Faces

Longe De Ti

"amor E Vida"

TraÇos De Um Povo