A Chuva



A chuva que caía logo nas primeiras horas da manhã anunciava que aquele sábado estaria mais propício a curtir a preguiça debaixo dos lençóis do que  propriamente sair por aí fazendo compras, passeando com as crianças ou visitando amigos e parentes. Os pingos da chuva fina e constante executavam a trilha sonora daquela manhã não muito típica para um dia de verão e bastante diferente dos habituais dias ensolarados, característicos da estação.

Abri os olhos e percebi, ainda sonolento o novo dia, apesar da pouca claridade do quarto simples, porém, aconchegante. Espreguiçando-me, deitado em minha cama de casal, estiquei meu braço direito para abrir a cortina, segurando o tecido com as pontas dos dedos polegar e indicador, empurrando-o levemente para a direita até deslocar-se através do trilho. A janela do quarto ficava pouco acima da cabeceira da cama, possibilitando contemplar  a rua sem me levantar. Posicionar-me de joelhos sobre o colchão, seria o bastante. Assim o fiz. Envolto em um lençol e ajoelhado sobre o colchão semi-ortopédico, pus-me a contemplar a manhã. O tempo estava chuvoso e, embora intermitente, não se tratava de nenhuma tempestade repleta de ventos fortes, relâmpagos ou trovões. Apenas chovia. Uma contínua e fina chuva, numa manhã de sábado. Com meu tórax à altura do peitoril da janela, devagar, sem fazer muito barulho, abri a veneziana meio embaçada pelo contato da umidade do vidro, com o vapor quente de minha respiração. Pude então contemplar a rua vazia e tranqüila, banhando-se com as águas da chuva e refrescando-se do calor dos últimos dias.

Fitei a rua por alguns instantes observando um pequeno corredor de água  que descia junto ao meio-fio. Ainda de joelhos na cama virei meu rosto, olhando à minha direita e percebi que Jasmim ainda dormia, deitada de bruços, deixando a mostra seu dorso nu.

O calor das noites anteriores induziu Jasmim a deitar vestida apenas com a parte de baixo do lingerie, presente do último natal. Entretanto, Jasmim cobria-se da cintura para baixo com um edredom estampado,  já meio surrado pelo tempo e, diga-se de passagem, por ter nos aquecido em algumas  raras noites de frio, ou de temperatura mais amena, não muito corriqueiras na cidade.

Adormecida, Jasmim parecia não ter percebido que o dia já havia amanhecido. Olhando para ela e contemplando seu corpo, pensei que seria oportuno acariciá-lo levemente, despertando-a com meu toque, para então nos amarmos ao frescor da manhã.

Todavia, barulhos pela casa noticiavam que as crianças já teriam  acordado, o que me fez  lembrar, naquele instante, de uma revelação feita por Jasmim, de que ela não gostava de fazer amor durante o dia, mesmo sendo pela manhã, nas primeiras horas. Mulher de personalidade forte, ativa, mãe dedicada, esposa carinhosa, vaidosa e jovial, com um  corpo bem cuidado, pele boa e um rosto sublime, era capaz de revelar toda sua personalidade, modo de ser e de estar, apenas em uma expressão facial. Sempre que  se produzia para uma festa ou reunião de amigos, seu charme e simpatia despertavam comentários e arrancavam elogios das pessoas, me deixando orgulhoso e envaidecido.

Voltando os olhos para a janela, enquanto Jasmim dormia, continuei a observar a chuva que caía lá fora. De repente, no compasso dos pingos da chuva, comecei a viajar em meus pensamentos, iniciando um tour pelo meu subconsciente, coisa que há muito tempo eu não fazia. O corre-corre dos dias, das semanas, dos meses e dos anos, no moto-contínuo da vida, não permitia o tempo necessário para uma viagem tão instigante.

O trabalho, muitas das vezes estressante, as contas para pagar, os projetos de vida, e por que não dizer, a vida dos outros, sempre nos remete para fora da gente, para fora de nossa própria vida, nos fazendo viver intensamente uma vida fora do nosso íntimo.

Entretanto, inadvertidamente, mergulhei fundo em um momento de introspecção, e comecei a assistir um filme, com cenas rápidas e curtas de minha vida desde minha infância, intercalando imagens de coisas e pessoas que eu já havia conhecido e que há muito não via; parentes, amigos, pessoas diversas que num dado instante, trilharam o mesmo caminho que eu.

Situações vividas, algumas de maneira inusitada e hilária, outras, tristes, repletas de amarguras e decepções. Decisões tomadas, ora de maneira racional, ora emocional, reprisavam na minha mente incessantemente, mostrando-me erros e acertos. Para os erros, talvez aquele seria o momento de retroceder, recortar e colar uma nova imagem, uma nova atitude que mudaria o estado presente e iria interferir no futuro. Para os acertos, o momento de vangloriar-se, repetir várias vezes, em slow-motion, quadro a quadro revigorando o sentimento de vitória. Nas seqüências de imagens reproduzidas em minha mente, cenas deslumbrantes desfilavam no meu subconsciente como um trailer de filme de ação. Cenas curtas e rápidas, repletas de efeitos visuais e sonoros, transformando o trailer em algo mais interessante que o próprio filme, se visto por completo.

Imagens de homens e mulheres, amigos e amores, se revezavam e se rememoravam no labirinto de meu cérebro, dando ordens a meus neurônios, exibindo-se, como esta ou aquela passagem mais importante da minha vida, guardada em minha memória e rememorada naquele breve devaneio de lembranças.

O real, o pragmático, o momento presente, a vida que estava ali para ser vivida, repousava. Contudo, eu percebia inconscientemente todo o mundo girar à minha volta, formando-se um paralelo entre o real e o imaginário. As cenas que continuavam frenéticas em minha mente comandavam meus sentimentos, refletindo-se nas reações de meu corpo. Suor, risos, lágrimas e movimentos repentinos iam se misturando e se alternando em meio às lembranças.

As cenas cada vez mais rápidas e cada vez mais curtas, contudo, começaram a se dissipar. Episódios marcantes, no entanto, esvaíam lentamente, provocando em mim uma sensação de leveza poucas vezes sentida, até que de súbito, se apagaram, golpeadas, cortadas, sacadas e deletadas repentinamente, como que por um soco, um pontapé que a tudo destrói; um castelo de cartas que a um pequeno toque se desmorona, levando ao chão os sonhos, os anseios e as lembranças, fazendo brotar novamente o mundo real.

As imagens se esmaeceram de todo, alojando-se novamente em algum lugar de meu subconsciente, cedendo espaço para as sensações reais e fazendo voltar aos poucos o momento presente, a ponto de me permitir perceber que o soco, o pontapé, que a tudo destruiu, era apenas um toque,  um leve toque em meu ombro, um toque gentil e carinhoso dado por Jasmim, me trazendo da viagem irreal e cumprimentando-me com um bom dia, sem que para isso tivesse que me dizer uma só palavra. Foi só um olhar.

Jasmim havia acordado e com a sua mão esquerda, apoiou-se em meu ombro direito, acariciando-o lentamente e me deu um beijo. Também de joelhos sobre a cama, ofereceu-se emudecida para contemplar comigo a chuva que ainda caía. Por alguns minutos, juntos, em silêncio, observamos o cenário daquela manhã de sábado, para também juntos, cada qual na sua individualidade, quem sabe, iniciar nova viagem.

Porém, não foi o que aconteceu. A chuva, cada vez mais fina retrocedeu. Alguns pingos, ainda tilintaram nas esquadrias e pouco a pouco  emudeceram.

O asfalto molhado começava a secar e a rua, até então deserta, já apresentava os primeiros personagens da vida real, abrindo portas, janelas, assobiando, acendendo um cigarro, cumprimentando o vizinho, levando o cachorro para passear, indo para o trabalho porque era sábado; reconstruindo aos poucos o momento presente, o moto-contínuo.

O tempo foi se firmando e o sol apareceu. Parecia agora, anunciar muito calor para todo o dia.

Ao contrário do que esperava logo que acordei, o sábado não seria  um dia para curtir a preguiça. O sábado seria sim, mais um dia para se guardar na memória.

Autor: Orlando Rodrigues


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