Beatriz, a siamesa



Ainda estava com o revólver nas mãos. Um calibre quarenta e cinco que herdara de seu pai. Destinado a criar desgraças. A única coisa que se esperava dela era tirar a vida dos outros. Com sorte escapava-se.
As mãos tremiam. Não era isso que queria quando abriu os olhos para o mundo e deu seu primeiro grito, chorando. Nem seus pais, nem ninguém desejava isso. Em instan-tes sua vida inteira passava diante dos olhos, rapidamente como as janelas do metrô. Tentava acompanhar, mas estava ficando cada vez mais rápido! Estava refletindo em como chegou a esta situação.
Romão Lacerda era um bom homem. Muito bem educado, estudou em escola de padres. Sua santa mãe fez de tudo para que isso fosse, mas seu pai o queria político. Deso-bediente, quis tirar fotos, registrar momentos.
E a cada dia ficava melhor nisso. Em sua escola ajudou a criar um jornal, no qual dava os primeiros passos. Os padrinhos deram-lhe a primeira máquina, depois foi juntando sua mesada até que pudesse comprar uma melhor. Quando terminou os estudos, com o currículo cheio de cursos de fotografia, já era bastante conhecido pelos seus trabalhos e não demorou a ser contratado por um jornal da cidade. Mas ele queria mais.
Quis o destino que ele fosse à cidade grande e lá tentar um emprego em um jornal famoso, de circulação nacional. Isso sim era um grande emprego! Persistente e audaz, ele conseguiu. Cobria toda e qualquer espécie de notícia. Certa vez foi a um lugarejo para os lados do Espírito Santo. Não que não tivesse bons fotógrafos por lá, mas o chefe confiava demasiadamente em Romão. Foi lá que Beatriz conheceu-o.
Ela era uma mulher lindíssima, tinha os cabelos loiros, os olhos, um tanto amendo-ados, eram verde-claro, quase azuis, chamando a atenção de qualquer um. Romão fotogra-fava uma festa tradicional e enquanto procurava um bom ângulo para uma foto, achou aqueles olhos. Não pensou em mais nada. Marcou a barraca em que a moça trabalhava e voltou ao ofício. Não podia deixar na mão seu melhor amigo, o repórter Oscar Lemgruber, com quem dividia um apartamento no Rio. Esperou o fim dos trabalhos e foi para a tal barraca.
– Aonde vai Romão?
– Depois te digo. Me aguarde na pousada, não tenho hora para voltar...
Rapidamente estava lá, se deleitando com os olhares de Beatriz. Aguardou que ela terminasse de atender um cliente e se aproximou.
– O que vai querer moço? – perguntou ela com um olhar lânguido.
– Um pastel e dez minutos de sua atenção... – disse ele em tom galante.
– Desculpe, mas nem lhe conheço...
– Muito prazer! Meu nome é Romão! – disse ele estendendo a mão a ela.
– Espere um pouco aqui... – disse ela sorrindo, indo na direção de uma senhora, que ele deduziu ser sua mãe. Umas poucas palavras e a senhora deu uma olhadela por ci-ma do ombro direito de Beatriz, que tirou o avental delicadamente, pondo-o sobre uma mesa e saiu pelo canto da barraca.
Romão aguardava ansioso que aquela mulher novamente surgisse, no meio daquela gente, como um sol que se levanta no horizonte iluminando a todos, quer concordassem ou não. Beatriz finalmente apareceu. Caminharam até uma praça, sentaram-se e Romão disse tudo quanto é coisa para poder observar aqueles olhos mais de perto. Beijaram-se. Sentiu o calor de seu rosto ao seu e o hálito agradável. As mãos dela estavam trêmulas, mesmo sem haver frio. Os lábios úmidos não se desgrudaram por um longo tempo.
Depois disso, encontraram-se por mais alguns dias, despedindo-se entre lágrimas que vertiam abundantemente. Romão prometeu voltar e enquanto isso não acontecesse, combinaram que se corresponderiam.
As cartas apaixonadas iam de um lado a outro. Romão não agüentava tanta saudade e pediu-a em casamento. Não tradicionalmente, queria que pelo menos ela fosse morar com ele. Esclareceu, entretanto, que morava com um amigo, mas que quando a situação melhorasse mudariam para um lugar só seu.
A resposta demorou uma eternidade. Não foi como as demais, que chegavam de semana em semana, o que deixou Romão extremamente nervoso. Até que um envelope surge por baixo da porta.
“Meu querido Romão,
Desculpe se esta demorou a chegar, mas casar não é uma coisa comum como tro-car de roupa e tive que pensar muito antes de te responder. Estou apaixonada por você, e não penso em outra coisa se não estar contigo. É claro que vou! Esclareço, porém, que houve algo que ainda não havia te contado. Tenho uma irmã, gêmea, que mora aí, no Rio de Janeiro. A Bianca é a única coisa que restou de minha família, além de minha tia, que já conhece. Perdoe-me se não falei disso antes, mas é que há muito perdi o contato com ela, não nos damos muito bem. Chegarei em breve! Beijos apaixonados!” Beatriz Araújo
Essa foi a melhor notícia de todos os tempos! Logo teria nos braços novamente a mulher de sua vida. Não se continha de tanta felicidade. Aguardou mais alguns dias, até que toca o telefone. Até que enfim! Era a moça que avisava estar na rodoviária. Sem de-mora foi buscá-la. Muitos diriam que foram precipitados, mas o que é a precipitação para um casal apaixonado?
Os três viviam tranquilamente. Respeitavam o espaço de cada um. Certo dia, Bea-triz aceitou o conselho do marido para encontrar-se com a irmã, e mesmo com a insistên-cia dele para que a acompanhasse ela seguiu sozinha. Tratava-se de uma reconciliação.
Apesar de contrariado, entendeu. Ficou em casa conversando com o amigo sobre o assunto. Dizia que aprendeu desde cedo o significado de família e não aceitava isso, de pais ou irmãos ficarem sem se falar. Esqueceram-se do tempo, enquanto bebiam uma cer-veja. A certa altura bateram na porta e Oscar foi atender. Ao abrí-la o homem ficou boquiaberto, sem palavras. Romão percebeu sua dificuldade e se aproximou.
– Aqui que mora a Beatriz? – disse a mulher. A semelhança era incrível. Embora Beatriz fosse recatada e comportada nos modos ao passo que Bianca era ligeiramente vulgar, era espantoso como se pareciam. Haviam se desencontrado, como sempre.
Bastaram duas ou três visitas para que Oscar se enamorasse dela. Agora Romão e ele eram concunhados! Como o destino nos prega peças.
Beatriz conseguiu emprego em uma ótica e estudava enfermagem à noite. Chegava tarde em casa, mas era suficiente para os dois estarem juntos. Aos finais de semana saíam para passeios agradáveis, mas como difícil reunir as duas irmãs! Haviam brigado novamente.
O jeito safado de Bia enlouquecia Oscar. Faziam amor onde podiam e não podiam. Foi quando ela pediu para que a tomasse na cama de Romão e Beatriz.
– Não podemos fazer isso! – disse Oscar sorrindo.
– Qual é o problema? Eles nunca vão saber... – disse ela ao ouvido dele, mordis-cando-lhe a orelha.
Não resistiram. Aproveitaram enquanto os dois trabalhavam e seguiram para o a-partamento. Paravam em cada patamar beijando-se calorosamente. Mal podiam esperar para chegarem! Abriram a porta num tropel, com gargalhadas e palavras sensuais. Bia arrancava ferozmente as roupas de seu amado, deixando-se despir também por ele, no ca-minho do quarto.
Romão estava ainda a caminho do jornal quando se lembrou de sua pasta. Como pôde ser tão desatento! Com ela, sua câmera e algumas fotos que revelava em casa. Ele não era nada sem sua pasta. Saltou do ônibus apressado, atravessou a rua para tomar outro. Foi pensando na mulher e nos planos que tinha. Hoje faria um belo jantar para os dois. A moça não iria para o curso somente para terem um tempo a mais. Um jantar romântico, inesquecível...
Chegou finalmente ao prédio. O zelador não estava na entrada, provavelmente fa-zia algum conserto na bomba da cisterna. Ela sempre dava defeito. Subiu as escadas de dois em dois degraus. Pegou o chaveiro no bolso e pôs a mão na maçaneta. A porta estava aberta. Franziu a testa e entrou vagarosamente. Não foi ele quem a esqueceu deste jeito.
Enquanto caminhava ouvia os gemidos libidinosos e risadas que vinham do fundo do apartamento. Passou por cima das roupas que estavam espalhadas encontrando enfim sua pasta no mesmo lugar em que a punha todos os dias antes de ir trabalhar. Por que a esquecera?
Sobre ela estava uma calcinha, que lhe chamou a atenção. Aproximou-se e pegou-a. Conhecia esta. Ele mesmo a deu para Beatriz. Seu rosto corou. Jogou a calcinha sobre o sofá e continuou caminhando lentamente, como um gato, na direção do quarto. A porta estava entreaberta e pode ver Bianca e Oscar nus, abraçados, epiléticos, beijando-se forte-mente. Ele chamava-a pelo seu nome e ela arranhava suas costas suadas. Viraram-se. Ela tinha a mesma marca de nascença que Beatriz. Num ato falho, chamou-o de Romão. As-sustado, ele afastou-a de si e sentou na cama.
– Como assim Romão? – perguntou. Aquele que espreitava sentiu um frio na barri-ga. Bianca tentou segurar o riso, sem sucesso. Disparou a gargalhar, com lágrimas nos olhos. Talvez fosse uma reação nervosa...
– Não existe Bianca alguma! Meu nome é Beatriz... – disse ela rindo mais e mais. Oscar estava mais estupefato ainda. – Eu apenas saía e trocava de roupa. Simples, não? Não foi um ótimo truque?
A notícia para Romão foi como uma bomba. Sentou-se à beira da porta e chorou copiosamente. Como pode ser tão idiota?
Os dois tornaram a beijar-se. Romão levantou e foi até a estante da sala. Abriu uma gaveta e pegou um revólver que estava coberto por um lenço. Olhou o tambor, estava cheio. Ficou parado uns segundos, mas foi na direção do quarto novamente. Deu um gran-de chute na porta e os dois saltaram da cama assustados.
– Calma, eu posso explicar tudo!... – disse Oscar com as mãos para cima.
– Terá tempo suficiente para explicar-se com o imundo! – esbravejou ele disparan-do um tiro em seu peito. Beatriz deu um grito agudo, temendo ser a próxima. Romão ficou um tempo segurando a arma com as mãos trêmulas, pensativo. Abaixou perto do morto e com o lenço que cobria arma abriu sua mão, colocando a arma dentro. A mulher assistia a tudo, chorando.
Ele então se aproximou dela, limpou suas lágrimas com o lenço, e a abraçou.
– Agora você é inteiramente minha. Beatriz e Bianca, a comportada e a indecente, como irmãs siamesas. Mas nem ele, nem seus pais, nem ninguém jamais desejou isso...
Autor: George dos Santos Pacheco


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