O mal de Sepúlveda
Levantava todos os dias às cinco da manhã. Ordenhava algumas cabras, depois soltava todo o rebanho para pastar, recolhendo-os à tardinha. Com o leite, sua dedicada espo-sa fabricava queijos que eram vendidos na cidade. À noite costumava ir à venda tomar uma pinga, jogar sinuca e conversa fora, enquanto Margarete ficava em casa rezando. O assunto da vez era o aparecimento de uma onça na região. Dezenas de animais estavam aparecendo mortos nos sítios, com os corpos dilacerados. Não sobrava quase nada.
– Bota mais uma Chico! – disse ele, segurando o taco em uma das mãos.
– Então compadre, devemos formar um grupo para caçar essa onça. Senão, dentro de pouco, nós mesmos correremos perigo... – disse Sebastião dando uma golada na cachaça, deixando escorrer pelo canto da boca, que ele eventualmente limpava com a manga da camisa.
– De acordo compadre! – disse o Dr. Nunes, o único fazendeiro presente. Falava como se também fosse integrar o grupo. Não iria. Com certeza seria um empregado seu...
– Devemos ter cuidado senhores... Afinal, ninguém viu ainda a tal onça... – disse Zaqueu, o mais moço, que era filho de Sebastião.
– Não entendo o porquê dessa sua insegurança... O compadre Moura viu a onça devorando uma de suas cabras, não foi Moura? – disse o pai de Zaqueu.
– Na verdade... não tenho certeza se era uma onça... – disse Moura abaixando a cabeça. – Apesar de a noite estar clara pela lua cheia, o bicho estava longe e eu não pude ver mais que seus olhos vermelhos. Mas era grande, do tamanho de uma onça ou maior.
– Você disse Lua Cheia? – perguntou Dr. Nunes.
– Sim doutor... – respondeu Moura.
– Temo estarmos lidando com uma criatura do mal... – disse ele limpando o suor da testa.
– Não entendo o que quer dizer com isto... – disse Moura. Os outros, escutavam atentos. Ele não era de falar bobagens.
– Isso que o compadre Moura viu, realmente não era uma onça. Era um lobisomem...
– Mas isso não é possível! Nunca tivemos isso por aqui... – reclamou Sepúlveda. Fez movimento como se fosse sair, mas pareceu desistir no caminho.
– Também nunca tivemos onças... – disse Zaqueu, que também não parecia acredi-tar no que ouvia... O assunto era fantasioso demais, mas não havia explicação coerente para os animais mortos.
– Isso não existe gente! Vocês estão malucos? – disse Chico, o dono da venda. Até agora tinha ficado quieto, mas o teor das últimas palavras o incomodou. Como podem achar possível uma coisa dessas? – pensava ele.
– O fato é que se não fizermos nada, um dia pode ser um de nós que amanhecerá morto pela criatura, seja ela onça ou lobisomen... – disse Dr. Nunes seriamente. Era o único que parecia acreditar plenamente na existência das tais criaturas.
– Para mim chega! Vocês estão todos bêbados, a começar pelo doutorzinho! – disse Sepúlveda, ao sair do bar, cambaleante.
– Me respeite Sepúlveda! Volte aqui seu borra botas! – disse ele levantando-se. Cuspia ao falar, e seu rosto havia corado.
– Acalme-se homem... – disse Chico.
– Façamos o seguinte, senhores: Iremos todos para casa hoje, e pensaremos no assunto. Amanhã nos reuniremos mais uma vez e decidiremos o que fazer... – disse Dr. Nu-nes com uma autoridade que nenhum outro tinha.
Os homens saíram um a um da venda, calados e preocupados. Suas casas ficavam a léguas dali e a noite ia alta. Por mais que não acreditassem na história, os sons dos animais noturnos e o vento que sibilava nas árvores assustavam. Mas eles fingiam não se abater...
– Então pai... Acredita nessa história? – perguntou Zaqueu enquanto caminhavam pela estrada empoeirada.
– Olha filho, seu avô contava essas histórias desde que eu era moleque. Mas eu só vou acreditar no dia em que eu vir um... – disse ele saindo da estrada e pegando uma pe-quena trilha que dava em sua casa.
Caminharam em silêncio até que ouviram um animal rosnando. Pelo som, grave e alto, parecia grande. Pararam de caminhar, mas continuavam a ouvir o rosnado. Ambos sentiram um arrepio percorrer a espinha. A morte parecia iminente. Ousaram dar mais passos, mas a criatura rosnava mais. Não tiveram coragem de olhar para trás.
Decidiram correr. As passadas do bicho batiam pesadas ao chão, e Sebastião foi ficando cada vez mais para trás. A criatura de quase dois metros, pelos marrons e olhos vermelhos, que estava ofegante e babando, alcançou o homem, dando-lhe um violento golpe, derrubando-o ao chão. Sebastião lançou um olhar suplicante para o filho que não pode fazer nada.
O lobisomem lançou-se sobre o homem e mordeu diretamente no pescoço, enquanto ele gritava desesperadamente. Seu sangue quente jorrava e a criatura parecia se divertir com seu corpo, arrancando-lhe pedaços de carne, uivando e rugindo.
– O Senhor é meu pastor, nada me faltará... – recitava o rapaz correndo e chorando.
Sepúlveda cambaleava de um lado a outro da rua. Sua roupa estava suja e rasgada, provavelmente devido a algum tombo. Não temia nada. Talvez não fosse coragem, apenas o efeito da bebida, que demorava a lhe fazer efeito, mas quando fazia, era devastador.
Abriu a porta de casa, que rangia sombriamente, quebrando o silêncio que insistia em permanecer ali. Ouviam-se apenas os grilos, os sapos e as folhagens que batiam uma à outra com o vento. Descalçou-se e entrou lentamente, temendo acordar a mulher, que estava no quartinho. Uma semana por mês ela dormia separada do marido. Coisas de mulher...
Chegando a seu quarto conferiu as janelas. Pelo caminho vinha pensando na história do Dr. Nunes. Era melhor se precaver. Fechou a porta e trancou-a, pegando uma espingarda que havia atrás dela. Colocou-a ao seu lado na cama e dormiu.
No dia seguinte, a notícia sobre a morte de Sebastião espalhou-se como rastilho de pólvora. Não que ele fosse muito querido. Aliás, ele era muito conhecido pela ignorância com que tratava seus empregados. O que chamou a atenção do povo foi a brutalidade de sua morte.
Sepúlveda chegou da venda com o pão debaixo do braço e com os olhos arregalados.
– Que cara é essa, bem? – perguntou Margarete, que o aguardava no quintal. Tinha por volta de um metro e sessenta, pele pálida e olhos lânguidos.
– O compadre Sebastião morreu! – disse ele com a voz baixa. Nem ele mesmo conseguia acreditar no que dizia.
– Ara! Mas morreu de quê? – perguntou ela tomando o pão de suas mãos.
– Ah mulher! Um bicho atacou a ele o filho no caminho de casa ontem à noite. O Zaqueu disse que foi lobisomem...
– Mas que absurdo! – disse ela levando as mãos ao rosto. – Não acho que isso exista...
– Ah mulher! Mas agora a coisa é séria... – disse ele pegando um martelo e alguns pregos no armário. – O compadre Moura já havia visto a criatura, mas ninguém tinha morrido ainda. E eu mesmo não acreditava, mas depois dessa... – disse ele saindo de casa. Voltou minutos depois com algumas tábuas debaixo do braço.
– O que vai fazer? – perguntou Margarete, confusa.
– Você não me abra as portas nem as janelas desta casa por nada esta noite! – disse ele enquanto pregava as tábuas nas janelas. – Hoje vamos caçar a criatura!
Ficou quase o dia todo reforçando as portas e janelas e depois limpando a espingarda, que não podia falhar quando fosse necessária. O sol já estava no horizonte e Sepúlveda precisava estar pronto para a caçada. Aproximou-se da mulher, deu-lhe um beijo e a abraçou.
– Eu te amo! Se algo me acontecer, saiba que sempre te amei e para sempre te amarei! – disse ele com os olhos marejados.
– Eu também te amo querido! Não há de te acontecer nada! – disse ela com ar tristonho.
O grupo encontrou-se na venda, como combinado, e saiu com armas em punho atrás da criatura. Inclusive Zaqueu, que havia perdido o pai recentemente, estava lá, prometendo vingança. Dr. Nunes realmente não havia ido. Mandou avisar que tinha um sério compromisso e que infelizmente não poderia ir. Mas seu mais valente capataz faria às ve-zes dele.
Caminharam mata adentro em meio ao silêncio, tendo somente a lua como farol. Preparavam uma armadilha para o monstro. Carregaram uma cabra que prenderam numa estaca fincada ao chão, ficando eles à espreita. Chico, o dono da venda, rasgou a perna do animal, crendo que o cheiro de sangue atrairia o lobisomem. Estava certo. Puderam perceber o movimento brusco dos arbustos por onde ele passava, a respiração ofegante e suas passadas que ficavam cada vez mais fortes e próximas. Finalmente ele saltou sobre a cabra, mordendo ferozmente seu pescoço. Mal podiam acreditar no que viam...
– Desgraçado! – gritou Zaqueu saindo da tocaia na direção do monstro, com a espingarda apontada para ele. A criatura deu um forte rugido e saltou para o meio da mata novamente.
– Não Zaqueu! – gritaram eles. A atitude do moço estava pondo tudo a perder. Já o tinham na mira das armas e agora começariam do zero novamente.
O monstro agitava as folhas ao redor do rapaz e toda a equipe se aproximou. Temiam pelo pior. A criatura parecia estar se preparando para o ataque.
– Volte aqui seu desgraçado! – disse ele disparando um tiro na direção da mata. Não ouviram mais som nenhum. Nem dos galhos quebrando, nem da criatura ofegante. De repente, os outros, que estavam a uma distância considerável de Zaqueu, avistaram o monstro que caminhava lentamente e silencioso.
– Não! – gritou Chico, mas era tarde. Zaqueu teve tempo apenas de virar-se e desferir-lhe um tiro, mas a criatura o devorou assim como fez com seu pai. Os homens atiraram nela e acreditaram ter acertado, tamanho o rugido do monstro, que fugiu para a mata.
– Minha casa fica para lá! – disse Sepúlveda preocupado. Começou a pensar em sua mulher, sozinha em casa. Ela poderia estar correndo perigo!
Correram atrás do bicho. Parecia que o terror de Abaruna estava prestes a acabar. Avistaram-no caído à sua frente, já no quintal da casa de Sepúlveda. O primeiro a se aproximar foi ele, que logo viu a janela do quarto de sua mulher, completamente destruída.
– Seu grande filho da mãe! – esbravejou ele. – O que fez com minha mulher? - disse ele apontando a arma em sua direção. A criatura estava ofegante e ferida, parecendo se arrastar para a casa. Seus olhos lacrimejavam e ele rugia baixinho, como um filhote na presença da mãe. – Volte para as trevas, monstro! – disse Sepúlveda atirando no lobisomem. Ele deu um grande grito e ficou encarando-o, com a respiração rápida e curta. Aquele olhar lhe era familiar...
A criatura foi perdendo tamanho. Seus pelos sumiam rapidamente. As feições femininas não demoraram a surgir e o corpo esguio de Margarete jazia moribundo em frente a seu marido, que não podia fazer mais nada. Tudo então começou a fazer sentido. As noites que ela preferia passar sozinha, eram exatamente as sete noites da lua cheia...
– Não! Margarete! – disse ele jogando a arma ao chão e abraçando o corpo nu da esposa, chorando copiosamente.
– Me perdoe... – disse ela, expirando em seus braços.
– O que estão esperando? – esbravejou ele com o rosto banhado em lágrimas. - Terminem logo com isso! – disse ele desesperado, abraçando ainda mais o corpo flácido da esposa. Sua vida agora não fazia mais sentido.
O capataz de Dr. Nunes tentou detê-lo, mas Chico e Moura o impediram, pois entenderam a súplica do amigo. Sepúlveda não queria que sua mulher ficasse conhecida como o monstro. Entregou então a sua vida, para que salvasse ao menos a reputação dela. Seus amigos, com as armas, o livraram do martírio e ele tomou o lugar de Margarete. Ficou conhecido como o terrível lobisomem de Abaruna, morto enquanto devorava a própria mulher.
Autor: George dos Santos Pacheco
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