Nuvens, sorvetes e plantação



252 - NUVENS, SORVETES E PLANTAÇÃO

 

É cedo ainda. A manhã apenas começou.

Mas o dia está escuro, triste, com nuvens ameaçadoras.

 

Quem sabe por que, quando no céu tem apenas poucos alguns cirros, eles fazem um contraponto ideal ao azul;  tornam-no mais alegre; e pode crer, não há branco mais branco que o deles, apesar do que apregoam os anúncios de sabão em pó. 

 

Até os cúmulos, são decorativos, agradáveis.

São como grandes sorvetes; daqueles antigos, cremosos, trabalhados à mão com uma  colher de pau, lentamente, com carinho, tão amontoados sobre a casquinha crocante,  que ameaçavam despencar a qualquer momento e convidavam, pediam, imploravam para serem atacados  imediatamente, sem dó, com uma gulodice desavergonhada, pena a perda total.

 

Sorvetes que se pareciam, indisfarçavelmente, com cúmulos nimbos no céu.

 

Mas quando as nuvens decidem se juntar, são camadas e mais camadas que escurecem tudo; você não reconhece mais seu tipo; são apenas nuvens ameaçadoras - que é justamente o ponto onde comecei a falar hoje. 

 

As nuvens desta manhã,  nada têm de parecido com aqueles sorvetes.

No limite, poderiam ser comparadas  com os malfadados picolés industrializados.

Aqueles tijolinhos de gelo, cada vez menores, mais duros e sem graça, indefinidos até nas cores, que declaram no papel um gosto que você nunca vai sentir na língua.

 

São feitos de  não-se-sabe-bem-o-quê – e eu pessoalmente prefiro não saber.

São achatados em prensas enormes, esfriados instantaneamente e embrulhados em papel pegajoso, engordurado.

 

Não admitem nenhum tipo de mordida gostosa; apenas uma respeitosa lambição, que deixa a língua dura e insensibilizada. 

 

Enfim, cada época tem o sorvete que merece.

Bem feito. Quis industrializar?  Agora agüenta.

 

Finda a longa digressão, a chuva começou a cair pesada e insistente.

As plantas regozijam-se e eu fico aborrecido,.

O que é bom para um, nem sempre  é bom para os outros.

Vou para o duro trabalho diário. Sou um agricultor de biblioteca .

 

Se fosse um agricultor de campo, estaria agora de papo para o ar, vendo despencar aquela massa de água  sobre o meu latifúndio.

A chuva amolece os torrões, solta os nós, expõe as raízes, enfim, colabora comigo, tornando  mais fácil a aração, o preparo e a semeadura da terra, que virão mais tarde, logo que o chão secar um pouco – mas não demais.    

 

Tem toda uma lógica, um tempo certo, um esforço coerente com o que será produzido, nesta atividade; ela parece ter-nos sido presenteada pelo criador e feita especialmente para que possamos dedicar-lhe com fé o esforço máximo dos nossos músculos. 

É um presente que não recebemos de graça.

É  o salário, a compensação que  recebemos no fim da semana.

Não é, certamente, um pacote deixado de graça, debaixo da árvore, no dia de Natal e que dispensa nosso trabalho e nosso comprometimento.

 

Lembro-me de quantas vezes recebi presentes valiosos, sem tê-los merecido. E eu ficava quietinho, aceitando-os como se eles fossem um meu direito, uma obrigação dos outros para comigo.

Agora chegou a minha vez de presentear alguém.

 

Mas na biblioteca não chove.   O chão batido é seco, selvagem, quase rochoso. Nada vai nascer, a não ser que eu lute, com picareta, com esforço, com paciência e suor, batendo, furando, quebrando, violentando a terra; mesmo com este esforço, talvez eu consiga apenas um resultado miserável -  apenas um riacho de palavras vazias.

Pobre presente, quando se recebeu tanto no passado...

Sofre-se muito mais com a mente que com o corpo.

 

Mas depois... depois, quando finalmente bate um golpe forte de vento, e as nuvens são empurradas para longe, como incômodos inquilinos que atrasaram o aluguel; e volta o azul, aquele azul que combina tanto com o verde da grama que parecem ter sido feitos um para o outro, aí tudo renasce, a partir da nossa própria esperança.

É como se redescobríssemos o mundo; e o estendemos na corda, agarrado  com dois prendedores, para secar, enquanto as suas lágrimas acabam de pingar na grama fofa, na plantação que é toda uma nova, grande promessa. 

 


Autor: Romano Dazzi


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