Um episódio surpreendente



254 - UM   EPISÓDIO   SURPREENDENTE

 

Como disse antes, eu e o meu amigo Gadda (aquele que caiu no canal da cidade e foi salvo pela Professora Palitinho) fazíamos muitas pequenas molecagens.

Todas as tardes nos encontrávamos na casa dele, que ficava perto da estação.

Tínhamos de oito para nove anos e nossa mente estava aberta para qualquer coisa nova.

Acontece que naqueles dias, o pai do Gadda tinha recebido um baú de lembranças muito estranhas e especiais ; para nós, pelo menos.

O homem era oficial do exército, tinha feito a campanha da Abissínia e o baú trazia uma porção de bugigangas, algumas conseguidas de presente, outras saqueadas e obtidas como presa de guerra, eu acho.

Antes de sair para trabalhar, recomendou-nos que não mexêssemos em nada; prometeu que algum dia nos mostraria as coisas e explicaria tudo.

Mas “algum dia” para nós era tão distante quanto o ano 2000 e não resistimos.

Abrimos o baú com a maior cuidado e fomos ganhando fôlego com o que encontrávamos lá dentro.

Havia de tudo: Zarabatanas com dardos envenenados, colares feitos de contas que pareciam sementinhas, arcos com flechas multicoloridas, cocares de penas, como os dos nossos índios daqui, e machadinhas toscas,  feitas de pedra, mas tão afiadas que podiam cortar papel.

Segundo o Gadda, os africanos cortavam a barba e o cabelo com essas machadinhas. Mas eu nunca acreditei que isso fosse possível.

De qualquer maneira, esse baú nos reservava surpresas a cada instante.

Aos poucos, a cama, a cômoda, o chão, ficaram coalhados de quinquilharias.

Saiu um capacete colonial, uma grande máscara de feiticeiro, um arcabuz enferrujado, as insígnias de oficial, uma folha de pergaminho com uma medalha de prata ganha na frente de batalha, um pente de balas dum-dum, duas cimitarras árabes, um narguilé, dois floretes e duas máscaras para esgrima.

Isso é o de que me lembro, mas havia mais, muito mais; enfim, era um achado digno das mil e uma noite.

Imagine-se dois garotos, com a fantasia voando a mil, e dispondo de todas essas coisas. Só faltava ainda um tapete voador.

E de repente, eis que, do fundo do baú, surge um tapete. Não duvidamos, nem por um segundo, que se tratasse mesmo de um tapete voador.

Infelizmente, não tínhamos a fórmula mágica, indispensável para faze-lo voar.

Com certeza, o pai do Gadda mantinha-a escondida e guardada a sete chaves e só a usaria em noites de lua cheia, para dar uma voltinha sobre a cidade....

Mas tanto eu quanto meu amigo tínhamos certeza que a fórmula estava no cofre do pai dele.

Mas por pouco, toda esta abundância de estimulantes novidades,  vindas do baú,  não acaba em tragédia.

Uma das últimas coisas que meu amigo tirou do baú foi uma pistola Beretta, do tipo que os oficiais italianos usavam na “guerra da África”.

Brincamos bastante, pega aqui, pega lá, o Gadda brincou, ameaçou, vou atirar, mãos ao alto, renda-se...pam, pam..... e de repente... BANG!  saiu um tiro! 

Fiquei surdo na hora.

Ele, branco como um lençol; eu, com as pernas que tremiam, cedendo, arriando para o chão. 

A mãe do Gadda trouxe um copo de água.

Foi a água mais gostosa e bendita que já tomei.

Nunca mais a água teve um gosto tão delicioso como aquela.

O tiro, dado a queima-roupa, pois estávamos a um metro de distância um do outro, atravessou as gavetas da cômoda ao nosso lado.

Furou e chamuscou camisas, malhas, cuecas do pai dele.

A segunda gaveta da cômoda ficou com um furo que podia estar no meu peito...

Mas foi algum tempo depois, uma meia hora imagino, quando entendemos bem o que tinha acontecido – e eu recuperei meus ouvidos – que o medo nos assaltou, pegando-nos de jeito.

Começamos a tremer, tremer, que não parávamos mais.

Ainda hoje, passados mais de setenta anos, ouço claramente aquele tiro.

E penso como a nossa vida depende apenas de um fio.

O dedinho instável de um garoto avoado poderia ter  mudado o meu  destino ou, quem sabe, liquidado de uma vez com ele.

Não foi a última vez que passei por um momento difícil; mas, como das outras vezes, aquela não era a hora para a minha vida terminar.

Às vezes penso que fui poupado, só para poder apresentar-me aqui e  aborrecer os meus leitores com  esta história estúpida.

E provavelmente algum, mais esquentado, desejaria que o tiro tivesse dado certo.

Nada aconteceu, na verdade. Nada que valha a pena registrar.

Apenas um susto, para ser lembrado a vida toda.

 


Autor: Romano Dazzi


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