O PECADO PROVÉM DO LIVRE-ARBÍTRIO



O PECADO PROVÉM DO LIVRE-ARBÍTRIO

  Por José Reinaldo F. Martins Filho

O Problema do mal

Para iniciar as discussões sobre o livre-arbítrio faz-se necessário, em primeiro lugar, discutir qual o problema que o mal pode trazer para o ser humano, mas para que isso seja possível precisa-se descobrir a priori o que vem a ser o mal e quais são as suas possíveis formas de manifestação. Após ter uma maior clareza a respeito desta elaboração se poderá dar continuação à tentativa de se chegar à origem e ao maior esclarecimento sobre este tema.

Se o mal existe provavelmente é porque é oriundo de uma fonte ou um autor, sendo assim, houve um questionamento que tentando atribuir uma origem para o mal propôs que ele poderia derivar de Deus. Diante disto Agostinho se mantém de forma irreverente negando qualquer possibilidade de o mal provir de Deus, unicamente pelo fato de Deus ser imensamente bondoso para com a humanidade, e por isso, incapaz de lançar mão de qualquer maldade sobre ela. Entretanto, Deus também é imensamente justo e por isso não fica inerte diante de uma situação errada cometida pelo homem.

Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus é bom – e não o é permitido pensar de outro modo -, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se proclamamos que ele é justo – e negá-lo seria blasfêmia -, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. (AGOSTINHO, 2004, p.25)

Ou seja, Deus é incapaz de fazer o mal, mas o homem deve ser corrigido por suas ações que desrespeitam a Deus e ao seu próximo. É impossível que alguém venha a pecar sem que antes saiba o que é o pecado, ou ainda sem que antes tenha aprendido a fazê-lo. A instrução vem, ao mesmo tempo em que colaborar para o bom êxito da vida do ser humano, proporcionar as condições necessárias para que ele tenha a liberdade de escolher suas ações e, com isso, dar a ele a possibilidade de conhecer e praticar o mal.

Diante disto Agostinho dizia que a instrução sempre é um bem e nunca um mal, o que acontece é que as pessoas se afastam da verdade e da retidão e por isso dão margem à maldade. Jamais poderá fazer com que o mal se torne objeto de instrução.

Já que é colocada a impossibilidade de que o mal possa provir de Deus, e que a instrução jamais poderia ensinar o mal, faz-se necessário descobrir qual é o motivo que nos leva a agir mal. Para que se possa alcançar a profundidade da resposta que este questionamento almeja teremos que continuar por todo o livro "O Livre-arbítrio", isso pelo fato de Agostinho não trabalhar com uma resposta concisa, mas sim com um processo evolutivo no qual o interlocutor vai assimilando a idéia que vem ser defendida.

Uma coisa é certa. Os pontos fundamentais de nossa fé são o primeiro passo para alcançar uma vida coerente e livre de tantas outras formas de visão do mundo e do mal que mais atrapalham a fé do que ajudam em seu crescimento. Como diz Agostinho:

Tem coragem e conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar oculta a razão de por que isso ser assim e não de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autêntico da piedade. E ninguém terá de Deus um alto conceito, se não crer que ele é todo-poderoso e que não possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudança. (Ibidem, p 29)

Assim, pode-se chegar à conclusão de que o mal não emana de Deus e Ele é a única forma de conhecer, mesmo que seja conhecer o que é o próprio mal, parte incontestavelmente inserida no ser humano.

Essência do Pecado – Submissão da Razão às Paixões

Dando continuidade na questão que aborda a origem do mal caímos na necessidade de alcançar uma origem para ele partindo do conceito que se possa ter do que vem a ser considerado como pecado.

O mal não é somente mal pelo fato da sociedade atribuí-lo como tal, mas por sua própria essência e intenção, sem qualquer condição ulterior. Assim, se pode notar a falta de fundamentos para a origem do mal. O adultério, o assassínio e os demais casos considerados como maus não se fundamentam no simples fato de serem tidos pela sociedade, mas sim, por serem demonstração da entrega do ser humano a suas vontades. Por isso, afirma Agostinho a respeito da paixão interior:

Talvez seja na paixão que esteja a malícia do adultério. Pois ao procurares o mal num ato exterior visível, caíste em impasse. Para te fazer compreender que a paixão é bem aquilo que é mal no adultério, considera um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intento e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado. (Ibidem, p.32)

Contudo existem também casos em que os indivíduos cometem o pecado sem qualquer paixão existente, e também aqui entram os homicídios cometidos em autodefesa e os admitidos pela lei civil. Estes afirmam em si sua própria defesa e seguridade fazendo com que suas conseqüências sejam remediadas pelo direito em sua autonomia.

Graças a isso podem existir vários casos em que o mal é assegurado pela lei, e por isso Agostinho elabora duas espécies de lei. A uma denomina Lei civil e à outra Lei divina. Sabiamente afirma Agostinho, elogiando uma ação conjunta entre tais leis exercidas pelo homem que quer buscar o caminho do bem:

Louvo e aprovo esta intenção que propõem, ainda que apenas esboçada e imperfeita. É ela, entretanto, promissora em vista de reger a sociedade civil. Parece tolerar e deixar impunes muitas ações que, não obstante, serão punidas pela providência divina, com razão. Isso é verdade, mas se a lei humana não faz tudo, não será por isso motivo de reprovação pelo que faz. (Ibidem, p. 38-39)

Caso não seja possível fazer uma união entre tais leis de forma que o indivíduo possa ser regido por ambas, a solução é saber distingui-las sabiamente para não entrar em complicações maiores. Cada uma tem o seu campo de ação, e quando não for possível optar por uma, tendo em vista a impossibilidade de influenciar à outra, cabe à consciência determinar qual é o melhor caminho a se seguir.

Eis duas leis que parecem estar em contradição entre si. Uma delas confere ao povo o poder de eleger os seus magistrados; a outra recusa-lhe essa prerrogativa. E a segunda lei mostra-se expressa em tais moldes que as duas não podem de modo algum coexistir juntas, na mesma cidade. (Ibidem, p. 40)

Por isso cabe à pessoa humana a distinção as duas formas de lei e a sabedoria para usá-las. Muito embora a lei eterna seja a mais confiável por seu caráter imutável, que garante mais credibilidade e confiança da parte de quem se empenha em segui-la.

A Causa do Pecado – O Abuso da Vontade Livre

Segundo Agostinho o ser humano é superior aos demais animais, isso poderia se definir unicamente pelo fato de ser o único animal que é considerado portador da razão e por isso tem a capacidade de escolher suas atitudes. Enquanto os outros animais, desde os mais dóceis até os mais selvagens, não tem a capacidade de raciocinar em suas atitudes, agindo unicamente por instinto ou por condicionamento, o homem pode escolher e tem a liberdade para isso.

Mesmo tendo em vista que para Agostinho a liberdade somente existiu no início do mundo quando os únicos habitantes do planeta eram Adão e Eva. Uma vez que eles desobedeceram a Deus e tomaram parte do conhecimento do bem e do mal deixaram de possuir a liberdade e ficaram unicamente com o livre-arbítrio, que é a possibilidade de escolha entre o bem e o mal.

A razão, portanto, é fator determinante na vida do ser humano tornando-o único entre os animais e atribuindo a ele maior responsabilidade diante de suas atitudes. Isso acarreta a grande responsabilidade que é confiada no livre-arbítrio e da qual nenhum homem pode escapar.

Ninguém vive apenas por viver, mas sim, cada indivíduo tem a necessidade de conhecer o porquê de sua existência. Para isso deve se comprometer por trilhar um caminho de integridade e maturidade, fazendo de sua existência uma forma de experimentar o conhecimento como ferramenta fundamental para alcançar uma vida condigna com os preceitos morais.

Pela lei eterna o homem ocupa o mais alto grau da escala dos seres criados por Deus e por isso deve se reconhecer como tal. Contudo os crimes cometidos contra os homens, e muitas vezes contra a própria pessoa que o comete, são formas degradantes de expressão do ser humano, que lhe fazem fugir de seu papel inicial, de ser voltado para o bem.

Desta forma o que diferencia o homem sábio dos demais homens é a forma com que ele se submete à razão, fazendo-a sua guia e orientadora. Este sim tem todos os meios para praticar o bem consigo mesmo e com aqueles que o circundam. Assim como afirma Agostinho acerca da razão e sua submissão:

Julgas que a paixão seja mais poderosa do que a mente, à qual sabemos que por lei eterna foi-lhe dado o domínio sobre todas as paixões? Quanto a mim, não o creio de modo algum, pois, acaso o fosse, seria a negação daquela ordem muito perfeita de que o mais forte mande no menos forte. Por isso, é necessário, a meu entender, que a mente seja mais poderosa do que a paixão e pelo fato mesmo será totalmente justo e correto que a mente a domine. (Ibidem, p. 50)

Seria incondizente afirmar que algo possa forçar a razão a se submeter às paixões. Ou seja, a razão é superior às paixões e não pode ser igualada a elas sob nenhuma hipótese. Assim Agostinho afirma que a mente é superior à paixão pelo fato de ser dotada de completo domínio sobre elas.

Contudo seria impossível dizer que o ser supremo constrange a mente a ser escrava das paixões, ao que poderia ser pensado se analisado de forma errônea. Por isso, o único responsável por esta submissão ou inclinação somente poderia ser o livre-arbítrio.

Logo, só me resta concluir: se, de um lado, tudo o que é igual ou superior à mente que exerce seu natural senhorio e acha-se dotada de virtude não pode fazer dela escrava da paixão, por causa da justiça, por outro lado, tudo o que lhe é inferior tampouco o pode, por causa dessa mesma inferioridade, como demonstram as constatações precedentes. Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre-arbítrio. (Ibidem, p. 52)

Pelo fato de portar em si muitos males, o pecado deve ser evitado, o que não é tão fácil ao ser humano devido sua inclinação para ele, o que é chamado de concupiscência. O pecado escraviza, o pecado aprisiona, o pecado faz com que o homem perca sua integridade de ser voltado para o bem. Cabe ao livre-arbítrio discernir o que é correto ou não de ser feito.

A Atuação da Boa Vontade Prova que o Pecado vem do Livre-Arbítrio

Em sua tentativa de encontrar a origem do mal, tendo em vista o pecado, Agostinho reconhece em primeiro lugar a necessidade do uso da razão como forma de compreensão da fé. Seria impossível chegar a conclusões precisas sem o uso da razão. Além disso, faz-se também preciso reconhecer a limitação do ser humano diante da grandiosidade dos mistérios que o envolve.

Fazendo alusão a Platão, e ao mesmo tempo a sua influência do orfismo, Agostinho chega a mencionar a possibilidade de possuir a sabedoria, mesmo que ela possa provir de alguma outra vida anterior a que vivemos. A sabedoria reside na alma e por isso não morre com o corpo, e segundo os Órficos, está presente no ato da transmigração da alma para outro corpo.

Em primeiro lugar Agostinho faz uma demonstração de que o ser humano é dotado de vontade seja ela boa ou má. Porém, fundamentalmente o homem possui a boa vontade. Ela que o move às boas obras. Aqui vale à pena ressaltar a conciliação entre a vontade e o desejo.

Ora, quem quer que seja que tenha esta boa vontade, possui certamente um tesouro bem mais preferível do que os reinos da terra e todos os prazeres do corpo. E ao contrário, a quem não a possui, falta-lhe, sem dúvida algo que ultrapassa em excelência todos os bens que escapam ao nosso poder. (Ibidem, p. 57)

A boa vontade se difere das demais formas de alegria que procuram os bens do corpo como maneira de conseguir a satisfação. Assim, vontade e desejo sempre terão uma potencialidade ambivalente podendo trazer em si um sentido, ao mesmo tempo, bom e ruim.

Sob o ponto de vista da psicanálise a vontade é derivada do desejo, e este pode assumir as mais variadas formas. Muitas vezes só conhecemos o lado negativo da palavra desejo, por isso faz-se necessário observar também seu lado positivo.

Para Freud, o desejo pode ser definido como "algo irracional e impulsivo, que embebeda o ser humano com suas necessidades." [1]Também pode ser definido, segundo Lacan, como "algo que projeta para o futuro, não para o passado. Entretanto só é considerado como desejo aquilo que tem clareza do objetivo almejado. E além de tudo o desejo não é vontade inevitável ou instinto incontrolável, mas algo que está totalmente sob o controle da razão humana." [2]

Segundo Vico, filósofo italiano, "não pode existir uma ação volutiva prévia se não houver um desejo. Sem ele, a vontade perde seu vigor. Assim fica clara a ligação entre vontade e desejo, que uma vez compreendida ajuda na procura da influencia da vontade sob o livre-arbítrio." [3]

De fato, para Agostinho, a boa vontade é uma forma de seguir e buscar as coisas consideradas dignas. Ou seja, o ser humano possui uma possibilidade de alcançá-la. Deste modo, no livre-arbítrio é dada a opção de escolha ao sujeito de escolher entre a boa e a má vontade. Uma vez que se faça a escolha pela boa vontade automaticamente se implicará no exercício das virtudes cardeais como forma de continência e retidão. As virtudes existem para colaborar com a vivência no caminho correto.

Aceitamos, portanto, isto: é feliz o homem realmente amante de sua boa vontade e que despreza, por causa dela, tudo o que se estima como bem, cuja perda pode acontecer, ainda que permaneça a vontade de ser conservado. (Ibidem, p.60)

Também depende da boa vontade fazer com que o indivíduo leve uma vida feliz ou infeliz. A felicidade aqui é tida por Agostinho como uma recompensa por viver uma vida de constante seguimento do bem e busca pela boa vontade. Agostinho até faz alusão ao ponto de vista escatológico afirmando que praticar a boa vontade é viver o presente como sendo uma antecipação do que será o futuro além da morte.

De onde se segue esta conclusão: todo aquele que quer viver conforme a retidão e honestidade, se quiser pôr esse bem acima de todos os bens passageiros da vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que, para ele, o querer e o possuir serão um só e mesmo ato. (Ibidem, p. 61)

O motivo de nem todos conseguirem a felicidade tão desejada é a pré-disposição que a mesma implica no ser humano e à qual nem todos os homens estão dispostos a seguir e obedecer. Muitos gostariam de ser felizes, entretanto, não conseguem viver na retidão que lhes é cobrada. Assim a felicidade acaba sendo o resultado pelas boas obras praticadas e o merecimento da boa vontade.

A lei entra em contato com a boa vontade como uma forma de fazer exercer a continência diante dos desejos tendo em vista alcançar uma lei eterna. A falta da mesma continência se resultaria na conquista da lei temporal. Isso não é de fácil compreensão e muito menos de fácil seguimento aos homens que amam muitas coisas, aos que estabelecem extrema relação com os bens passageiros e, de forma mais visível, à grande diferença entre os homens, não possibilitando um conceito generalizado.

Assim o homem se torna o fator determinante entre os bens e a boa vontade. Contudo existem sempre aqueles que são apegados demasiadamente com os bens e não conseguem compreender a grandiosidade destes ensinamentos.

A Definição da essência do pecado, segundo Agostinho, acaba afirmando que ele procede do Livre-arbítrio. Afinal, se ele não existisse o homem teria a liberdade como forma direta. Sem o livre-arbítrio não haveria a possibilidade de pecar. Isso se se levar em conta a existência do pecado. Desta maneira o mal moral tem, de fato, a sua origem no livre-arbítrio. Diferente do restante desta afirmação.

O livre-arbítrio não é, então, uma forma de imposição do mal da parte de Deus para com os homens, mas sim, um bem que lhes é oferecido como opção para fugir do mal que já está impregnado em si pela própria condição humana de criatura. Isso será trabalhado por Agostinho na segunda parte da obra em questão.


[1] Cf. GAROZZO, Filippo. Sigmund Freud. 2ªed. São Paulo: Editora Três, Brasil, 2004. – (Os homens que mudaram a história)

[2] Cf. MORGAN, Clifford T. Introdução à psicologia. Trad. Auriphebo B. São Paulo: Mc Graw Hill, 1977.

[3] Cf. VICO, Giambattista. Seleção de textos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p.175 – (coleção os pensadores)


Autor: José Reinaldo Felipe Martins Filho


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