O LIVRE-ARBÍTRIO, UM ELEMENTO POSITIVO



LOUVOR A DEUS PELA ORDEM UNIVERSAL, DA QUAL

O LIVRE-ARBÍTRIO É UM ELEMENTO

POSITIVO, AINDA QUE SUJEITO AO PECADO

Por José Reinaldo F. Martins Filho

Esta terceira parte corresponde ao terceiro livro da obra. Segundo muitos especialistas, traz em si as questões mais importantes tratadas por Agostinho ao longo de sua caminhada. Isso se deve pelo fato de fazer alusão às formas concretas de manifestação do livre-arbítrio na vida do ser humano.

Para iniciar, Agostinho mostra o livre-arbítrio como sendo a origem do movimento culpável da vontade no ato de se afastar de Deus. Como já foi visto isso pode ser aprovado sob o ponto de vista que traz a vontade como algo natural do homem, e ao mesmo tempo sua inclinação para o mal. Entretanto, não se pode atribuir isso ao livre-arbítrio como sendo algo culposo. A livre vontade existe no homem como um bem favorável a ele, não como algo que possa ser prejudicial.

Penso, portanto, que tu te lembras como em nosso primeiro diálogo ficou suficientemente estabelecido que nada pode sujeitar o espírito à paixão, a não ser a própria vontade. Porque nem um agente superior nem igual pode constrange-la a esse vexame, visto que seria injustiça. (Agostinho, 2004, p.149)

Assim, se a paixão leva o homem a se afastar de Deus, não é unicamente porque o mesmo possue a livre vontade o condiciona a fazer isso, mas pelo fato dele mesmo tender a isso por sua própria limitação.

A vontade é voluntária e, diante disto, não pode ser condicionada ou imposta ao homem. O livre-arbítrio entra como uma forma de responsabilizar o homem de suas atitudes. Uma vez que se aproxima das boas ações deve ser recompensado por isso. Ao contrário, quando se afasta de Deus e de tudo aquilo que lhe agrada, deve ser repreendido. Por isso, o livre-arbítrio não se torna uma forma de proporcionar que o homem caia no pecado, mas sim, uma maneira de ajudá-lo, caso ele se veja movido pelas más paixões.

Quanto ao movimento pelo qual a vontade se inclina de um lado e de outro, se não fosse voluntário e posto em nosso poder, o homem não seria digno de ser louvado quando sua vontade se orienta para os bens superiores, tampouco ser inculpado quando, girando, por assim dizer, sobre si mesmo, inclina-se para os bens inferiores. (Ibidem, p.151)

Segundo Agostinho, Deus jamais quer proporcionar o mal à sua criação. Unicamente propõe uma condição para que o homem saiba sempre quando estiver se afastando do caminho reto.

Conciliação Entre o Pecado e a Presciência de Deus

Em meio a toda esta discussão acerca das influências do livre-arbítrio na vida do homem, Evódio coloca um elemento que chama muito a atenção para as afirmações que alegam ser o livre-arbítrio algo de bom oferecido por Deus, ou seja, aponta a presciência divina como sendo uma forma encontrada para condicionar o homem.

Segundo ele, se Deus sempre sabe o que vai acontecer na vida do homem, conseqüentemente sabe o que ele vai fazer de errado. Assim, já tem prévia noção da punição que a ele será implicada. Desta forma, o mal que é realizado pelo homem não pode ser evitado fazendo com que desta maneira o livre-arbítrio não tenha nenhuma influencia ao ser humano.

Desse modo, não digo que ele não devia ter criado o homem, mas, já que previra seu pecado como futuro, afirmo que isso devia inevitavelmente realizar-se. Como, pois, pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão inevitável? (Ibidem p.152)

Como condições para o entendimento de tal pensamento, Agostinho aponta o cultivar sentimentos de piedade e crer na providência Divina. Assim, Deus é colocado mais uma vez como aquele que faz o bem ciente de suas conseqüências.

Segundo Agostinho, a presciência divina longe de acabar com o ato livre, exige muito mais de sua existência. O homem não perde seu caráter de ser dotado de liberdade de escolha entre o bem e o mal. Mesmo que sua vida já esteja sob o conhecimento de Deus, mesmo antes de seu nascimento, o homem é responsável por escolher ou não fazer o mal. Assim, continua sendo culpado por suas ações.

A presciência de Deus não faz das atitudes do homem maneiras naturais de agir, mas traz em si a oportunidade de escolha e uma vez que exista a escolha, o homem é incriminado por tudo o que venha a fazer de ruim.

Porque, se o objeto da presciência divina é a nossa vontade, é essa mesma vontade assim prevista que se realizará. Haverá, pois, um ato de vontade livre, já que Deus vê esse ato com antecedência. E por outro lado, não seria ato de nossa vontade, se ele não devesse estar em nosso poder. Portanto, Deus também previu esse poder. (Ibidem,p.159)

Como foi visto, a vontade humana é tida como opção pessoal do indivíduo e não pode ser conduzida por ninguém, a não ser por ele próprio.

Deus estabelece esta relação entre sua presciência e a vontade livre no homem como forma de garantir nele a opção de escolha. Uma vez que Deus não possuísse a capacidade de saber o que acontece com a vida do homem em qualquer fase que seja seria uma forma de limitação de seu Ser. Assim, mesmo podendo de certa maneira prever o que o homem virá a cometer de mal, dá a ele o livre-arbítrio como possibilidade de conhecer e distinguir entre as boas e as más ações.

Ainda que, sem dúvida, ele houvesse de pecar, pois de outra forma não terias tido a presciência desse acontecimento futuro. Assim também, não há contradição a que saibas, por tua presciência, o que outro realizará por sua própria vontade. Assim, Deus, sem forçar ninguém a pecar, prevê, contudo, os que hão de pecar por sua própria vontade. (Ibidem, p. 160)

E mesmo que o homem afaste-se de sua grande bondade, Deus, como já foi visto anteriormente, sempre está disposto a lhe estender a mão. Mesmo tendo em vista que o sujeito nem sempre retribui este ato de amor e doação.

Relação entre o Pecado e a Providência Divina

Para estabelecer esta relação entre o pecado e a providência divina, Agostinho elabora seu pensamento em cinco passos que possibilitam uma melhor compreensão do que vem a ser explanado. Por isso deter-se neles proporciona uma melhor continuidade do que vem sendo elaborado desde o início.

A – Regra fundamental: Louvar a Deus por ter dado o ser às criaturas racionais, ainda que pecadoras

Segundo Agostinho, é preciso sempre expressar os louvores a Deus por todas as boas obras que ele realiza na vida do homem. Louvar a Deus não unicamente por ele ter criado as criaturas superiores, mas também pela criação das inferiores.

Ora, entre toda a terra e o céu, qual não é a distância! Entre eles, com efeito, interpõem-se os corpos úmidos e os gasosos. E a partir desses quatro elementos (terra, céu, água e ar) resulta outra infinita variedade de formas e espécies, que só Deus pode enumerar. (Ibidem, p.164)

Deus criou os seres e deu a eles a liberdade de escolher entre o bem e o mal. Muito embora tenha criado alguns dotados de razão e outros não. Desde os antigos filósofos o homem é colocado no topo da lista hierárquica dos seres criados. Isso se deve pelo fato de que o único animal dotado de razão é o ser humano.

Uma vez que este é dotado de razão, cabe a ele a responsabilidade por suas atitudes. Os demais animais, por serem possuidores de instinto não têm a possibilidade de escolha que é oferecida ao homem. Por isso o homem é o único ser dotado de livre vontade. Pode conhecer tanto o que é bom quanto o que é ruim, e escolher entre estas duas opções.

Deste modo, uma criatura que peca, mas tendo em vista a capacidade de escolha, se torna melhor do que aquelas que não têm a possibilidade de pecar, mas pelo fato de não possuir livre vontade.

Por esse motivo as almas espirituais são superiores às demais. Segundo Julián Marías, [1]Agostinho enfoca com muita ênfase esta questão das almas espirituais superiores às demais. Todos aqueles que são movidos pelo espírito têm maior ligação com o criador e, por esse motivo, possuem maior excelência.

Assim, pois, qualquer alma vale mais do que todo ser corporal, e nenhuma alma pecadora, seja qual for a profundidade de sua queda, por mudança alguma, torna-se jamais um corpo. Nem se pode retirar-lhe nada da perfeição que faz dela uma alma. Portanto, ela conservará sempre sua superioridade sobre o corpo. (Ibidem, p. 167)

O fator através do qual é concedida a capacidade de reconhecer o bem e o mal é unicamente a posse da razão. Com isso, a razão se torna elemento que diferencia o homem dos demais animais, assim como já fora visto. Isso faz com que não se possa dizer que Deus seja a causa do pecado, mas o próprio indivíduo que pode escolher entre comete-lo ou não.

B – Objeção – E o desejo da própria morte?

Quanto a isso Agostinho afirma que é impossível a qualquer pessoa a vontade de deixar de existir. Mesmo que alguém afirme que preferiria a própria morte ao sofrimento que esteja passando, não significa que gostaria de deixar de existir, mas sim, sair da condição de sofrimento e infelicidade na qual se encontra. A infelicidade sim, é causa de mal para o indivíduo.

Não é da própria vontade da pessoa se encontrar em uma situação de infelicidade. Nem mesmo está sob seu próprio poder sair ou não daquela condição. Entretanto, sempre se faz necessário agradecer a Deus e confiar em sua bondade.

Pelo contrário, aquele que possui maior amor à existência do que aversão a viver infeliz, que aumente esse amor à existência e assim se afastará daquilo a que tem tanta aversão. Pois logo que conseguir possuir perfeitamente aquela existência que convém à sua condição, não será mais infeliz. (Ibidem p.173)

Todo ser existente é amado. Isso unicamente pelo fato de provir do sumo Ser, ou seja, Deus. Se uma coisa provém de Deus não poderia deixar de ser amada por Ele. Uma vez que ninguém é consultado antes de seu nascimento para poder dar a opinião sobre o que pensa de sua existência futura, mesmo sabendo dos sofrimentos que virão, Deus cria a cada um da mesma maneira amorosa. Por isso, o sujeito que sofre deve enfrentar seu sofrimento e, uma vez que a solução dos mesmos não está em suas mãos, precisa esperar até que sejam supridos. A solução é amar cada vez mais a vida e sempre aspirar pelas coisas eternas.

Mesmo aqueles que se suicidam não prefeririam deixar de existir. Se a eles houvesse dada uma possibilidade que seja de sair de seus sofrimentos não decorreriam ao fim que tomaram. Ninguém deseja deixar de existir. Mesmo que permaneça na lembrança das pessoas, nunca poderá deixar de ser. Jamais será apagado, uma vez que já tenha existido.

Desse modo, todo desejo daquele que quer morrer é dirigido, não para cessar de existir pela morte, mas para encontrar a tranqüilidade. E assim, enquanto crê, por engano, obter o não-ser, sua natureza está a aspirar pela tranqüilidade, isto é, deseja possuir uma realidade mais perfeita. (Ibidem, p.176)

Por isso não é a necessidade de deixar de viver que traz ao indivíduo esta sensação, mas a carência de abandonar o sofrimento. A infelicidade sim é causa da desistência da vida por parte de muitos.

C – O Pecado e a Ordem do Universo

Não se pode censurar Deus pela criação dos seres menos perfeitos. Cada um tem a sua importância na obra da criação divina. Tudo colabora na manutenção da ordem do universo.

A variedade dos seres é também uma forma de expressão da grandiosidade de Deus. Por isso, se torna uma fonte de agradecimentos da parte do ser humano. Mesmo que Deus somente tenha dado ao ser humano a capacidade da razão e, por isso, considerá-lo superior aos demais, não é motivo para menosprezar as outras formas de manifestação da criação de Deus.

E não se pode dizer que Deus não devia ter dado a existência a essas almas. Igualmente, é erro afirmar que ele não seja digno de louvor por ter dado o ser a outras criaturas ainda bem inferiores do que essas almas infortunadas. (Ibidem, p.179)

O pecado nada tira da ordem do universo. Isso por não ser uma condição obrigatória para todos os seres. Mesmo tendo a possibilidade do pecado, não significa que os seres devam pecar. Sempre existe probabilidade de não o cometer. Por isso, já que o pecado não é fator determinante e natural no universo, conseqüentemente não pode vir a tirar sua ordem. A esse respeito afirma Agostinho:

A isso responde: não são os pecados mesmos, nem as desgraças mesmas, que são necessários à perfeição do universo, mas as almas enquanto almas, as quais se não quiserem pecar não pecam, mas tendo pecado tornam-se infelizes. (Ibidem, p. 179)

Desta maneira, uma vez que uma alma cai em condição de pecado é atribuída a ela uma punição. Assim tudo isso colabora para a manutenção da ordem no universo. Contudo, pelo fato da grandiosidade tamanha da alma, mesmo sendo pecadora, é admirável sua condição vital. Por isso, mesmo que não seja possível a ela habitar no céu, em função de sua condição de pecado, é dado como punição viver na terra.

As conseqüências do pecado original se tornam causa de dificuldade para o afastamento do pecado. Uma vez que o pecado pode se dar de duas maneiras: a primeira pelo pensamento espontâneo; a segunda através da persuasão de outrem. Sempre se leva em conta a possibilidade de escolha imposta pela livre vontade.

A alma que se desliga de Deus e por seu orgulho abandona a obra de sua redenção, somente voltará a alcançar este benefício quando fizer uma manifestação exterior de sua contrição. Uma vez feita esta humilhação visível voltará à sua elevação invisível.

Segundo Agostinho, a submissão ao Senhor, livra a alma do homem do poder do demônio. Dessa maneira se pode interpretar o demônio como sendo a força que move o ser humano em direção ao pecado. A proximidade com Deus é uma forma encontrada para distanciar-se desta tendência.

Assim, toda criatura, seja ela boa ou má contribui para estabelecimento da ordem universal. Na medida em que o bem e o mal existirem se poderá constituir a continuidade da ordem estabelecida no universo. Por isso não há somente a necessidade do bem, mas também do mal para conservação desta ordem, ou harmonia, como podemos chamar.

É assim que ninguém pode contemplar com inteligência o céu, a terra e todos os seres visíveis com suas proporções e sua ordem conforme seu gênero próprio sem reconhecer que Deus somente é o autor de todas as coisas, e sem admitir que é preciso lhe atribuir inefáveis louvores. (Ibidem, p.190)

Desta maneira, de qualquer forma que se direcionar esta reflexão, ela encontrará Deus como sendo guia e fonte de discussão. De um lado, Deus que proporciona todo bem. Do outro, Deus que redime e acolhe, mesmo que dando uma punição, todo mal. Este é o pensamento característico de Agostinho e, ao mesmo tempo, a idéia que vigorava na época.

D – O Pecado e a Bondade das Criaturas

Mais uma vez vale à pena assinalar a importância de sempre renovar os agradecimentos pela grandiosidade da criação de Deus. Diante do princípio da criação, por ter sido Deus o criador de todas as coisas, toda a obra criada é por sua essência boa. Assim, todo ser é bom. Contudo pode-se deparar com a pergunta: E o mal o que é? O mal se trata de uma privação dos seres criados. Por isso, ao afirmar que toda substância é Deus ou procede de Deus, Agostinho demonstra que tudo o que é criado é bom, pois Deus é bom.

Uma vez que se é reconhecida a limitação dos seres e, ao mesmo reprovado qualquer ação que se volte contra Deus ou se distancie do mesmo, faz-se automaticamente um louvor Àquele a quem o desrespeito foi acometido.

Logo, se é digna de louvor uma natureza racional, que não é senão criatura, não há dúvida que também deve ser louvado Aquele que a criou. E caso ela seja censurada, ninguém duvida que seu Criador venha a ser igualmente louvado por essa censura. Com efeito, se o que reprovarmos nessa criatura é precisamente o fato de não querer gozar do Bem supremo e imutável, isto é, de seu Criador – é bem este a quem louvamos, sem dúvida alguma. (Ibidem, p. 192-193)

Todavia, o indivíduo não pode ser reprovado por não permanecer unido a Deus, a não ser pelo fato de que esta união constitui o seu grande e primeiro bem. E donde mais poderia vir tantos benefícios senão do próprio Deus.

Deste modo não se pode reprovar o vício, no qual venha a cair o homem, sem antes reconhecer a atuação da natureza. Isso por não se poder reprovar algo como vício se não for atribuído pela natureza do ser que o comete. Uma vez que seja reprovado por essa natureza constitui algo que não é necessário no ser humano, e por isso, trata-se de um vício.

Segundo Agostinho, natureza alguma se corrompe sem já estar viciada por condições anteriores. Nada pode de uma hora para outra mudar seu comportamento de bom para ruim. É preciso que seja conduzida a isso por alguma outra conduta que já tenha esperimentado tal ação.

Finalmente, se uma natureza mais forte corrompe outra mais fraca, essa corrupção dá-se, ou bem pelo vício das duas, se for o fruto das paixões depravadas de ambas, ou bem pela influência do vício da mais forte, caso esta goze de tal superioridade que, mesmo viciada, guarde a prioridade sobre a natureza inferior à qual corrompe. (Ibidem, p. 195)

Muito embora existam condutas que possuem a necessidade de censura, nem todas as condutas corruptivas são dignas de censura. Existem aquelas que não tinham a intenção de se desviar do caminho reto, e mesmo não deixando de ser erradas, não precisam atribuir punição para si, porque não haverá mais a intenção de cometê-las. Assim sendo, de todas as corrupções, somente as viciosas são dignas de reprovação. As outras devem ser evitadas, mas não punidas.

Por isso todas as vezes que a natureza é louvada, seja em qualquer de suas manifestações, também é louvado aquele que a criou. Daí a necessidade de sempre reconhecer a grandiosidade da criação de Deus.

E – O Pecado e a Justiça

Se reprovar os vícios é uma forma de louvar a Deus, ainda mais a contemplação da perfeição de sua obra. Em tudo existe a possibilidade de reconhecer Deus como bom. Desde as coisas reprováveis até as coisas elogiáveis. Por isso, mesmo diante da condição de pecado, se é possível louvar a Deus, em especial quando se usa da justiça.

As criaturas inferiores não faltam ao que devem. Se uma criatura é feita para viver apenas por um curto período de tempo, não constituir que ela é portadora da ira de Deus, mas unicamente denota que cumpriu o seu papel no ciclo da vida.

A razão, que é o elemento que dignifica o homem e o separa dos outros animais, é o meio que proporciona ao mesmo uma chance de se afastar do mal e praticar o bem. Ao mesmo tempo, isto se torna uma forma na qual o ser humano estabelece uma dívida com Deus.

Procura, pois, de que uma natureza pecadora está em dívida e reconhecerás: das boas ações. Procura, também, em relação a quem ela está em dívida e reconhecerás: em relação a Deus. Porque d'Aquele de quem ela recebeu o poder de agir bem, querendo-o livremente, recebeu também o poder de ser infeliz, caso não o fizer. Entretanto, será feliz se praticar o bem. (Ibidem, p. 200)

Este é o motivo dos castigos impostos àqueles que cometem o mal. Caso a vontade livre do homem não devolver a Deus aquilo que lhe pertence, por ter sido concedido por Ele, nada será mais justo que aceitar os castigos estabelecidos como forma de tentativa de agradar o Criador. Isso é muito marcado no ponto de vista de Agostinho e do contexto social e religioso de sua época.

Assim, Deus nada deve ao homem, ao contrário, o homem deve tudo a Deus. Deus dá tudo gratuitamente ao homem ao que este, muitas vezes lhe retribui com a prática do mal. Assim sempre existirá esta relação de dívida da parte dos homens para com Deus.

De toda esta caminhada de raciocínio só se dá margem a chegar a uma conclusão: Deus é infinitamente bom e, por isso, incapaz de proporcionar o mal, sem que haja um motivo justo. Assim, o pecado é causado unicamente pela vontade livre, dom de Deus oferecido ao homem que lhe concede a capacidade de escolher entre o bem e o mal. A Deus resta apenas o louvor infinito.

Conseqüentemente, na verdade, eu não encontro o meio e certifico absolutamente não haver nenhum, que possa levar a atribuir nossos pecados a Deus, nosso Criador. Pelo contrário, encontro ocasião para louvá-lo nesses mesmos pecados, não somente porque Ele os pune, mas, mais ainda, porque não são cometidos senão quando alguém se afasta de sua verdade. (Ibidem, p.204)

Por isso, a vontade é o lugar no qual habita o pecado. Diretamente o pecado consiste em praticar algo de injusto. Visto que ninguém está forçado a pecar, ou a afastar-se da verdade de Deus, nem por força exterior, nem por força natural, só pode o fazer a partir de sua vontade.

Problemas Diversos

A – A Vontade Livre – Causa primeira do pecado

Olhando do ponto de vista no qual a vontade livre é colocada como liberdade que o homem possue de escolher ou não o bem, também se pode dizer que a própria vontade livre é a causa do pecado. Sem a liberdade não haveria a possibilidade de pecar. Uma vez que o homem conhece o bem e o mal e tem liberdade para escolher entre eles, torna-se capaz de pecar.

Contudo, a vontade desregrada que se torna uma fonte inevitável de pecado. Se existe o livre-arbítrio, mas o homem opta por fazer o bem, o que lhe seria melhor, a vontade não implica em nenhuma ocorrência de pecado. Mas a partir do momento em que faz de sua vontade algo desregrado, cai inconseqüentemente no mal, ou seja, no pecado.

Logo, é a vontade desregrada a causa de todos os males. Se essa vontade estivesse em harmonia com a natureza, certamente esta a salvaguardaria e não lhe seria nociva. Por conseguinte, não seria desregrada. De onde se segue que a raiz de todos os males não está na natureza. (Ibidem, p. 206)

Se uma coisa é inevitável ao ser, não se pode tornar pecado para o mesmo. Somente se torna pecado aquilo que não é de necessidade para o homem, e o fazer somente gerará conseqüências ruins, e mesmo assim ele o comete. Assim, qualquer que for a causa da má vontade, se acontecer ao indivíduo de maneira inevitável, não se tornará causa de pecado.

B – A Nossa Situação atual: Devida ao Pecado Original

Por conseqüência do pecado original, o ser humano se encontra em situação de pecado. Diante disto vem a pergunta que se torna infalível: Se Adão e Eva pecaram, que culpa temos nós?

Para responder tal pergunta Agostinho alega que por decorrência do pecado trazido por Adão e Eva, toda a raça humana padece justamente porque não existe um mal que seja cometido sem deixar conseqüências futuras. Por isso, as fraquezas humanas não são pecados, mas unicamente seqüelas do primeiro pecado.

Da mesma maneira, denominamos "pecado" não apenas o que em sentido próprio é pecado, por ter sido cometido conscientemente e por livre vontade, mas também o que é a conseqüência necessária do mesmo pecado, como castigo do mesmo. (Ibidem, p.212)

Diante deste mal somente resta a justiça e a bondade de Deus para com o gênero humano. Manifesta assim, na justiça daquele que pune, a verdadeira origem do mal. O ser humano não comete o mal unicamente porque precisa, mas por sofrerem conseqüências do mal feito anteriormente. Portanto, mais uma vez cabe afirmar que os pecados somente são atribuídos à vontade humana, e jamais a Deus.

Existem alguns problemas que atrapalham o homem na busca da felicidade. Um deles é a discordância quanto à origem das almas. Todavia, Agostinho afirma que mais importante que de onde o homem veio, é pensar a respeito de para onde ele vai. Esta questão não era muito tratada e se fazia necessário que se pensasse a respeito.

C – Problemas acerca das crianças

Nesta parte Agostinho trata sobre as questões relativas às crianças, como sua morte e outros. Tudo tendo em vista a problemática do mal. Entretanto não penso ser de muita importância, por isso veremos brevemente.

Nenhuma criança que morre prematuramente se torna contrária à ordem universal. Cada criatura gerada tem seu papel fundamental na estrutura do universo, mesmo que sua estadia dure pouco tempo. Assim, se justifica o sofrimento das crianças, que sem possuir por completo a vontade própria não podem escolher suas atitudes, e obviamente, não deveriam ser punidas. Desta forma, o sofrimento das crianças, nada mais é do que uma forma de chegar ao coração dos adultos. Por isso a necessidade de sempre tentar descobrir os planos de Deus na vida da pessoa.

Da mesma forma se dão os sofrimentos e as dores de todas as outras criaturas que não possuem razão, como é o caso dos demais animais. Graças a isso, toda criatura canta da suprema unidade de Deus, que proporciona a ordem no universo.

D – Questões sobre o primeiro pecado do homem e do demônio

Tendo em vista a condição de pecado do homem não se pode definir em que condição este nasceu, de pecado ou de sabedoria. Assim Agostinho afirma: "Como se a criatura humana não fosse suscetível entre os dois extremos: insensatez e sabedoria, de conhecer um estado intermédio, o qual não possa ser denominado nem uma coisa nem outra". (Ibidem, p. 233)

Por aí se vê que a natureza do homem nasce de um estado intermediário entre a estultície e a sabedoria. Assim sendo, o primeiro pecado não pode ser atribuído a Deus, mas ao orgulho do homem. Na tentativa de procurar chegar ao nível de sabedoria o homem cai no pecado. Ou por não se sujeitando à vontade de Deus ou não a obedecendo.

Por outro lado, o pecado é um mal que consiste em negligenciar: seja o aceitar um preceito, seja de observá-lo; seja de perseverar na contemplação da sabedoria. De onde se pode compreender como o primeiro homem, mesmo tendo sido criado sábio, podia, no entanto ser seduzido. E como a esse pecado cometido livremente, seguiu-se justamente o castigo, por disposição divina. (Ibidem, p.235)

A passagem da insensatez para a sabedoria se dá na medida em que o homem observa os preceitos divinos e reconhece que sua livre vontade é fonte de bem para si e para o louvor de Deus. Isso acontece de maneira quase imperceptível.

O orgulho se confronta com a sabedoria e move a alma pelas vontades sensoriais, o que se distancia das vontades racionais. Contudo, pelo livre-arbítrio o homem tem a capacidade de resistir aos desejos impostos pela vontade e renunciá-los.

Assim, o orgulho foi a principal fonte que moveu o demônio para o mal, ficando em coincidência com a condição que leva o homem a deixar a sabedoria. Por isso não existe pior fonte da má ação que o orgulho. Ninguém comete algo de mal se não tiver anteriormente se afastado da verdade de Deus, que se é possível chegar pelo bom uso da livre vontade. A sabedoria se torna, desta forma, a grande verdade de Deus.

Tão grande é a beleza da justiça, tão grande o encanto da luz eterna, isto é, da Verdade e da Sabedoria imutável., que mesmo se não nos fosse permitido gozar delas, a não ser pelo espaço de um único dia, em troca ter-se-ia plenamente razão em menosprezar por elas inumeráveis anos desta vida, embora repletos de delícias e transbordantes de bens temporais. (Ibidem p. 240)

Daí se conclui que todo este caminho formulado trouxe a compreensão de que o livre-arbítrio é dado ao homem por Deus para que possa fazer a opção de escolha entre trilhar o caminho do mal ou optar pela busca da sabedoria.


[1] Cf. MARÍAS, Julián. Historia de la filosofia. Madrid: Ediciones Souza, 1994.


Autor: José Reinaldo Felipe Martins Filho


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