CÍRCULOS DO SILÊNCIO



Senta-se à mesa, segura a caneta esferográfica e com a letra irregular tenta escrever, contudo, não consegue, não se concentra, o pensamento está fixo às cenas vividas.

- Vais jantar o quê, Samuel?

A voz clara, bonita indagava e ele, ali à mesa, lendo, respondia:

- Faça o que for mais prático, uma sopa mesmo.

Então a cadeira arrastava-se sobre o impulso do braço e da perna não afetados pela doença e ela adentrava na pequena cozinha.

Com dificuldade ela acendia o fogão e tornava a falar:

- Samuel me dê à caçarola.

Erguia-se, atendendo-a.

- O que você quer mais?

- Nada, pode voltar pra seu livro.

As cenas. Ela ali no terraço, fitando a rua estreita, ladeirada. O rosto moreno tristonho, mas, resignado ao estado de enferma. Ele se chegando, demonstrando-se solidário, humano:

- Pensando em quê, Fátima?

Sorrindo, ela como sempre, buscava tranqüilizá-lo:

- Nada não. Apenas vendo a rua.

O silêncio entre ambos. Alguém cruzando a rua, cumprimentando-os:

- Boa tarde.

- Boa tarde.

A voz dela em resposta. Ele preso ao próprio mutismo, pensativo. Contendo-se no que entendia.

- Tá precisando de dinheiro?

Novamente a solidariedade do companheirismo.

- Pode tirar de minha poupança.

- Não, por enquanto, não.

Meu Deus até quando as lembranças? Até quando viverei o passado? Por que não me adapto à solidão? Não já bastava o derrame que a inutilizou, então, por que agora o Senhor a levou?

As lágrimas caem. Com o dorso das mãos, enxuga-as, apressado.

Deixa a caneta cair na mesa e, num impulso afastando com as costas a cadeira para trás e de súbito resoluto, erguendo-se, fecha a porta ao lado, o basculante e, na sala vizinha, também o outro basculante, a porta, cruza o terraço, o portãozinho e ganha a rua, descendo-a.

Não, precisa desparecer, fugir do passado ou tentar, pois, bem sabe que não se libertará assim de repente de anos de convivência.

Seus passos apressam-se. Cabisbaixo enfrenta a avenida transversal, de resumidos passantes e veículos. O sol esfria, a noite chega, na rotina interminável de sempre.

Depois, ao regressar, lhe parecerá vê-la na salinha, acompanhando a novela:

- Fiz uma sopa de verdura.

- Sim, ótimo.

Na mão, ele conduz a sacola de pães.

- O pão ainda tá quente.

- Que bom Samuel!

Retira o lenço das calças e mais uma vez tenta esconder o que amarga, sente.

- Por que tudo isso?

Novamente se repete, indagando. Dobra a esquina, segue em frente, enquanto em volta os pedestres e carros se cruzam, na marcha coordenada por uma Força Maior.

- Samuel, eu sinto que morrerei primeiro do que você...

- Besteira essa! Como você pode saber disso?

- Não sei... Mas uma coisa me diz.

Ela pressentia, sabia. Ah se também pudesse prever o amanhã...

A noite abraça tudo. No morro circunvizinho as lâmpadas cintilam trêmulas nas moradias de porta e janela. Nas escadarias estreitas vultos sobem ou descem. Na rodovia acima, um coletivo sobe-a devagar, temendo a inclinação perigosa. De um rádio próximo vem a música antiga:

Pense em mim

Chore por mim

Ele empurra o portãozinho e adentrando na pequena residência, após abrir os basculantes e a porta traseira, outra vez à mesa, segura a caneta e inicia:

Senta-se à mesa, segura a caneta...

Na sala conjugada, ele sente a presença dela na cadeira. Fitando-o, seguindo-lhe os gestos, enquanto sorri compreensiva, como fazia.

Como fazia.

Sim, não está só, enquanto viver terá a companhia do passado.

- Samuel vem cá.

Escuta a voz. Perplexo se volta, contudo, a sala mantém o doloroso vazio, como se fosse um jogo, de repetitivos círculos.

Baixa então a cabeça, numa resignação e, a mão com a caneta treme.

Através do basculante a noite se exibe mais negra.


Autor: Paulo Valença


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