LARGO DA QUINTA FEIRA [Jacquerie Vogel, Direitos Reservados]



(Ao som de Adagio un Poco Mosso – Beethoven)

Centro da cidade do Rio de Janeiro, numa quinta-feira, manhã de primavera, céu nublado, chovia por todo o Estado Fluminense. Quatro vassouras grandes de cerdas duras; duzentos litros de água em um latão; uma pá e uma enxada; era isto que levava o caminhão carroceria da prefeitura, dirigido por Teóforo. Na traseira da carroceria a frase: Dirija com seriedade – Justiça e Paz. Teóforo é um homem velho, alto, magro, mas forte, com uma calva pronunciada e os olhos pequenos. Funcionário exemplar exercia sua função desde que se mudou para esta cidade nos anos 70. Vindo de outro estado qualquer para tentar uma vida melhor na cidade grande. Certo é que Teóforo não percebe as disparidades sociais e econômicas de seu país em sua complexidade. Tão certo é quanto Teóforo as percebe intuitivamente enquanto dirige seu caminhão; que naquele dia queimava muito óleo, pois a secretaria não tinha verba para a manutenção. Seguiu dirigindo obstinado, porque sua vida agora era melhor, tinha dignidade, podia comprar bens jamais antes imaginados por ele ou por seus familiares que lá em seu estado ficaram. Teóforo tinha seu carro usado e financiado, tinha seu celular que mostra programas de TV e toques polifônicos; tinha até um pequeno negócio em seu bairro suburbano e sempre dizia satisfeito aos amigos: - Onde é que poderíamos ter tantas oportunidades, digam companheiros? Onde?... Chegou no Largo da Segunda-Feira onde fora chamado para uma limpeza.

Tijuca, que somente a partir de 1870 foi considerada Zona Urbana da cidade do Rio de Janeiro, e que até esta época era caracterizada por imensas propriedades: Chácara do Andaraí; Chácaras do Trapicheiro; Chácara do Portão Vermelho e a propriedade de Militão Máximo de Souza; passou, no início do século XX, por uma transformação muito grande, o progresso finalmente tocou as terras desta baía: ruas foram abertas, casas populares construídas para aluguel, palacetes de novos republicanos; bondes elétricos e praças. No encontro entre as ruas Haddock Lobo, Conde de Bonfim e São Francisco Xavier encontramos o Largo da Segunda-Feira. Alguns dizem que o nome origina-se das feiras que ocorriam neste local às segundas-feiras. Mas preferimos a versão mais curiosa. Contam os mais ilustres antigos cariocas que "as terras dos jesuítas, postas à venda pelo governo colonial e adquiridas em 1762 por Manuel Luis Vieira, eram terras de um resto de canavial, cortado por um pequeno arroio, sobre o qual havia uma improvisada ponte de madeira. Numa segunda-feira, perto dessa ponte, um homem amanheceu misteriosamente morto. Enterraram-no nesse local, no largo ainda mal desenhado, que por esse ocorrido, passou a ser chamado de Largo da Segunda-Feira. O acontecimento foi considerado incomum para o século XVIII, pois a área era pouco habitada e os episódios de violência eram raros. Havia nesse local uma cruz, alusiva ao acontecimento, que tombou em 1880". Atualmente o largo é um movimentado e importante logradouro, onde predomina nestes dias uma das áreas mais comerciais da Tijuca contendo supermercados, bares, lanchonetes, restaurantes, lojas, bancos e prédios.

Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, 5h: 30min, quarta madrugada da primavera, céu nublado, chovia por todo o Estado Fluminense. Nastácia caminhava obstinadamente para seu trabalho. A segunda personagem de nosso conto era uma mulher negra, bonita, infeliz e assustada desde a infância, comum em nossos dias, cabelos curtos e crespos, pele reluzente, manicure em um salão da zona sul. Naquele dia Nastácia desceu no Largo da Segunda-Feira para apanhar sua terceira condução, estava atrasada, roupas e cabelos molhados, sentia atavicamente a indignação. Pensou naquele momento ir-se embora para lugar distante, pensou que estava cansada de tantas atribulações. Mas, certo era que Nastácia estava longe de conseguir ter certeza de que a lei vale pouco e é na prática inacessível para a grande maioria da população; longe de ter certeza de que o grau de transparência é baixo entre os que são da corte de nosso país. Às vezes Nastácia chegava a acreditar que o poder de corromper era vantagem. Contudo, Nastácia tinha dificuldades de proceder além do ponto inicial da indignação e atravessou a rua com pressa.

Largo da Segunda-Feira, milhares de carros, milhares de pessoas indo e vindo, por todos os lados vendia-se ou comprava-se algo, ônibus, grevistas, táxis, vans; afobada cidade do Rio de Janeiro, primavera, céu nublado, chovia por todo o Estado Fluminense. Num semáforo da Rua São Francisco Xavier esquina com Haddock Lobo dois homens armados numa motocicleta tentaram assaltar um carro preto, mas o motorista do veículo acelerou. Sinaleiro vermelho. Teóforo assistiu tudo ao lado de seu caminhão. Nastácia atrasada na faixa de pedestre foi atingida pelos tiros na barriga e no braço. Chão vermelho. A motocicleta desapareceu no trânsito congestionado. Teóforo correu para salvá-la, mas nunca foi possível salvar Nastácia. Silêncio no Largo da Segunda-Feira.

De pasto a logradouro importante, de terras jesuítas à terras burguesas, de passeios à passeatas contra a repressão, de prosas à poesias, música de Erasmo. De tudo agora apenas o silêncio de um povo lascivo que já está calejado demais para reagir e transformar Nastácia em símbolo de alguma coisa. Calejado e ordeiro para fazer a violência-vingança transformar-se em luz para clarear as vistas da realidade. Calejado e anestesiado para fazer do Largo da Segunda-Feira palco de acontecimento incomum. Impressionado, mas, sem conseguir formular o pensamento com competência, Teóforo fixa o olhar no infinito em sua frente. Verde o sinaleiro. Buzinas. Teóforo de súbito é novamente capturado pela cidade. Não lhe cabe mais do que proceder além do ponto inicial da indignação; apenas abandonar o presente e lançar no futuro a possibilidade da frase gravada na carroceria tornar-se possível. Lágrimas resignadas. Silêncio no Largo da Quinta-Feira...(www.opassaro.com)


Autor: jacquerie vogel


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