AO SOM DA MÚSICA N.O 2 [Jacquerie Vogel, Direitos Reservados]



Me veio numa noite de inverno. Em comum com noites como estas, o frio; o vento e a melancolia. Andando só por uma rua de luzes baixas, encharcada pela chuva que havia caído a pouco, vento e água, cheiro de terra. Caminho até o último sobrado, apertado entre outras casas, porta entreaberta, sua sala parece ter metros e metros de comprimento, não se dá na vista, muitas janelas por todos os lados, pessoas andando lentamente pelo espaço, passam por mim, não me conhecem, não as conheço; caminho em direção a janela prateada que dava ilusão de luz às sombras; em frente a ela, sentado, um homem sem rosto, moreno, baixo, vestindo um manto cinza; vem um pó em meu rosto, não enxergo, ouço uma voz baixa: - Você precisa fazer.

Deitado na cama grande e verde, coberto pelo pano grosso azul escuro; em meu braço sinto o vento que passa através da veneziana de madeira. Entre flutuante ou ancorado. Não sei o quanto estive assim. Uma porta bate. Vejo o guarda roupas vermelho; o quarto iluminado pela luz fraca do corredor; o cheiro de alecrim disperso. No criado mudo azul claro estão alguns livros; lápis e um caderno. Penso em anotar algo, desisto; calço os chinelos brancos e caminho até a sala; acendo um cigarro, tomo um copo de água. O vento cercando a casa. Ligo o aparelho de som em forma de cubo; violinos e pianos, álgidos; lembro do homem: – Você precisa fazer.

Me preparava para abrir um livro de capa roxa e título preto, quando alguma coisa no segundo quarto me chamou. Naquele quarto, uma parede amarela, atrás da mesa de escrever marrom escuro; vi a caixa de papelão, cheia de imagens coladas. Na caixa, coisas que agradavam estavam guardadas. Não a abria desde que os meses começaram a ser contados de acordo com o calendário. Em pé, com as mãos no bolso da calça de algodão, encontrei: fotos de amigos; uma caneta; uma poesia; um pequeno avião de plástico, meu brinquedo preferido; giz de cera; anotações; um bilhete. Paro um pouco, agora. Fiquei exausto tentando dizer. Não sei, mas é desse jeito que tudo surge, com esforço, brotando tudo cinza, confuso; e dizer que estraguei anos de minha vida, que eu quis morrer, que tive meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu gênero. Adormeço.

Enquanto esperava decidir sentar em frente ao mar. Inverno, vento forte, ondas pequenas e turbulentas mostravam a força da água. Cheguei até uma pequena calçada, curta, com mesas onde podemos jogar xadrez; mas naquele sétimo dia ninguém as usava. Sentei no último degrau da escada de madeira que levava até a areia pérolabege, e sem encostar os pés, fiquei observando, era um cheiro de mar; o olhar longe, às vezes nas rochas, outras nas águas. Ali a experiência do tempo não era. Outra temporalidade. Sensação de que o tempo não está estagnado e nem desajustado. Ouço agora os violinos e o piano, e desta vez alegres instrumentos. Hesito um pouco. Levanto devagar, sinto tudo ao redor; então danço com a música, girando de braços abertos como se faz ao abraçar alguém, suspiro e sorrio. Um velho baixo e moreno, com o rosto sulcado do tempo se aproxima, sorri e pergunta: - Você gosta muito dela hein? Respondo sem pausa: - Dela quem? E sigo dançando. www.opassaro.com


Autor: jacquerie vogel


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