Boletim de ocorrência



 

                                    267 BOLETIM DE OCORRENCIA

 

- Chamo-me Felipe, senhor Delegado. Felipe Santos.

  Nasci aqui em São Paulo, isso mesmo. Quando nasci? Eu não sei, não.

  Minha mãe dizia que tinha foguetório estourando nas ruas, quando nasci.

 

- E ela nunca lhe disse o por quê?

 

- Não senhor; nunca. Acho que nem ela sabia.  Pode ter sido em um fim de ano, mas nesta terra soltam fogos para qualquer coisa; podia ser pelo Corinthians, ou festas de São João, ou até o Natal ...  

É isso mesmo,  doutor :   acho que nasci num dia de  Natal como hoje ...  recém nascido aqui é recebido a tiro,   para aprender logo onde caiu....  

 

- Só responda ao que lhe perguntam, moleque atrevido!

 

- Sim, seu doutor, desculpe...

 

- Fale-me de sua mãe ...

 

- O que o doutor quer que eu diga?

 

- Diga o que souber dela.

 

- Bem, minha mãe nunca me deu atenção. Ela tinha  três filhos mais velhos e nasceram outros três depois. Uma escadinha.

 

- Sete irmãos naquele barraco?

 

- Sim senhor, mas a gente sai o tempo todo. Vai para a fila do leite, da bolsa, da merenda. Quando precisa mostrar documento, a gente tira de outro que já passou. Pegamos a sopa na igreja, uns pacotes de arroz nos adventistas, umas frutas no fim da feira. Tem feirante que deixa de propósito alguma coisa ainda boa, separada do lixo, para nos ajudar, acredita, doutor?.

Às  segundas não tem feira, então a gente gatuna um pouco.

 

- Gatuna?

 

- É, doutor, a gente afana algum dinheirinho dos distraídos, ou de quem carrega muita sacola  e não pode correr atrás da gente.

 

- Ele nunca o pegaram?

 

- Das vezes, sim;  quanto puxão de orelha levei!  Mas faz parte.  Sem riscos não dá para viver. Uma ou outra vez as pessoas ficam com pena, porque a gente faz cara de choro, de fome  e eles ainda dão alguma coisa pra gente, antes de nos soltar... Mas não dá pra viver sem garfar alguma coisinha, aqui e ali...

 

- E dá para viver assim? Digo, é  o bastante?

 

- Sempre arranjamos alguma coisa. A gente tem que se contentar com o que consegue. Em casa, sempre dividimos  tudo. Quem come sozinho, sem dividir – porque a fome às vezes nos mostra o  mau caminho -  leva uma surra de chinelo do mais velho, diante de todos – o maior vexame ....

 

- E o que houve com sua mãe?

 

- Depois de dez filhos  (três tinham morrido, não sei de quê) - um médico muito bravo lhe  “fechou a fábrica”, como ela dizia.  

  Ela não tinha mais vontade de correr atrás dos moleques. Vivia doente.

Mas aprendemos muita coisa com ela. Principalmente a nos ajudar e proteger  – quero dizer, os irmãos, os da nossa família.  Os outros que se danem, doutor.

 

- E o que aconteceu depois?

 

- Uma tarde, quando cheguei em casa, ela estava deitada no catre.  Não tremia, como das outras vezes. Pus a mão na testa dela e tirei logo. Estava gelada. Tinha morrido.  O rabecão demorou até as sete da manhã, para levá-la embora.

 

O moleque calou-se. Não estava triste, ou comovido, ou assustado.  Creio que todos ficaríamos assim, se a vida nos pusesse uma pedra de granito no lugar do coração.

 

Pensei nos meus filhos:  dois apenas, com  chegada planejada, espaçados o bastante para não terem ciúme, bem cuidados desde o início da gravidez; nascidos numa sala cirúrgica asséptica, imaculada, com médicos e enfermeiras eficientes,  deslizando silenciosamente como num balé ensaiado.

Pensei nos panos desinfetados, fervidos em autoclaves. Nas roupinhas novas limpas, arrumadas.....

 

- Então, seu doutor, o que vai fazer?  Estou cansado e com fome; quero ir para casa. Moro longe. Vou demorar duas horas para chegar!

     Era a voz impertinente do garoto trazendo-me de volta à realidade.  

 

- Cuidado com a boca, moleque, já disse. Comporte-se! Se não .....

 

- Se não?  - arremedou o garoto. -  se não o que? Vai me pôr na cela, junto com os bêbados e os malandros? Vai arriscar a me deixar nas mãos de algum advogado – já vi um aí atrás, que está prestando atenção na nossa conversa e está pronto para entrar na história e ganhar um dinheirinho....Sabe, doutor, é véspera de Natal; todo o mundo precisa de uma graninha a mais....

 

Era ao mesmo tempo irônico, sem agredir, e arrogante sem ofender.

Pensei logo que se tivesse estudado, seria uma flor de malandro.

Melhor ele ter ficado analfabeto...

 

- O que você estava fazendo , na frente da loja de chocolates?

 

- Só olhando. Não sabia se decidia por um panetone de dois quilos ou um papai noel de chocolate, de  três quilos.... E o senhor, o que acha, doutor?

 

O moleque sem-vergonha ainda achava o jeito de ser sarcástico – sem saber o que é o sarcasmo... Era um dom natural.

 

Não respondi. Pensava nos meus meninos bem tratados, lá em casa, prontos para devorar o panetone e o papai noel de chocolate, que eu já tinha deixado no meio da mesa, de manhã,  aguardando a ceia de logo mais. 

 

O garoto me olhava, com uma vaga interrogação nos olhos escuros.

Pode-se mentir com tudo, mas os olhos revelam sempre a verdade, a quem sabe interpretá-la.

Comparei sem querer os olhos brilhantes, vivos, saudáveis das minhas crianças com esses baixos, tristes - até esfomeados, pensei - do pobre garoto que estava na minha frente, desafiando-me, não se importando de forma alguma com consequências ou  resultados de tudo o que dizia.

Porque estava sozinho no mundo, não possuía nada e assim nada teria a perder.

 

Ora que diabo! Eu sou apenas um  delegado de polícia,  devo me encarregar da ordem pública; e às vezes, por extensão, até da limpeza pública e da saúde pública.  Porque devo responder pelas “crianças públicas” ?

Porque essas crianças não são de ninguém – e portanto, são de todos nós.

O garoto, a bem dizer, não fez nada. Não assaltou a loja, não atacou ninguém, nem incomodou as pessoas que passavam, com pedido de esmola. Tinha apenas ficado um tempão com o nariz encostado na vitrine, sonhando, pensando, ou até  esperando - quem sabe – que acontecesse algum milagre.

 

E aconteceu; a viatura 137, da patrulha da tarde, passou por lá e o agarrou. 

E agora cabe a mim, delegado de plantão, registrar a ocorrência, carregando nas tintas, porque crime não houve; intenção, talvez: seria, no máximo, um pecado de gula, curtido por anos de fome e de desespero.

 

E  aquela magnífica arrogância, aquele orgulho insolente do garoto,  de pronto me pareceram justificados, legítimos, pois ele estava cobrando um preço irrisório, pelos sacrifícios que a nossa sociedade lha impunha.

 

Não sei bem o que aconteceu.

Pequei a viatura, enfiei nela o garoto, cheguei em casa, sai com o panetone e o papai noel na mão, e os entreguei ao moleque.  Sai depois, cantando pneus, rumo à favela.

Achei melhor não entrar, porque a favela é como uma rede de fios elétricos descascados. . Basta uma faísca de nada para estragar tudo. E ninguém iria querer isso, em véspera de Natal.

Quando o moleque desceu,  olhei firme nos seus olhos – e já eram olhos bem diferentes – e disse apenas: “Comporte-se!”

“Sim senhor, doutor, sim senhor!”  E sumiu num instante, pelo labirinto insondável das vielas estreitas.

Sei que, infelizmente, ele vai voltar, vezes e vezes, à delegacia, por motivos mais ou menos graves.

Sei que um panetone não resolve os problemas de ninguém.

 

Mas há de existir lá em cima, alguém que entenda as coisas, não pelo que parecem, mas pelo espírito que elas contêm.

 

Alguém que toque o coração daqueles que pensam ser nossos donos.

 

Não posso deixar de pensar assim, mesmo que pareça estúpido e ingênuo.

Porque imagino que quando nossos corações tiverem aprendido a cantar a mesma melodia, teremos  o mais bonito concerto de Natal do mundo.  

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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