A Feitura de um Construtor



Este pequeno texto busca uma análise do poema de Vinícius de Moraes O operário em construção, tendo a poesia como uma representação do real e identificando nela categorias fundamentais para a leitura da sociedade e as ralações sociais que a convulcionam e transformam continuamente.

As categorias de analise que propomos aqui foram postuladas pelo sociólogo alemão Norbert Elias, o qual aprofundou seus estudos no âmbito das configurações sociais, na formação dos grupos e no constante dinamismo das relações no interior destes, o qual gera novas situações, que aparentam estabilidade, mas ao mesmo tempo criam novas mudanças, estando, assim, em permanente mutabilidade.

Usaremos duas estruturas de pensamento nesta analise de discurso. A primeira delas é denominada habitus e, segundo Elias, constitui aquilo que o indivíduo vai adquirindo socialmente. É a vivência social que é internalizada em forma de regras, preconceitos, conhecimento, condicionamentos, maneiras de se comportar, etc.

No poema a ser analisado podemos identificar a referida categoria na terceira estrofe, onde Vinícius coloca nos primeiros versos:

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário. (MORAES, 1992: 243)

Percebemos que tanto a produção (o fazer de alguma coisa), que Vinícius cita no poema, como tudo aquilo com que temos contato em nosso dia – a – dia, o que lemos, sentimos, enfim, vivemos constrói quem somos, e constrói de maneira única. Mesmo que duas pessoas passem juntas por uma mesma experiência, elas não vão ter a mesma leitura, a mesma forma de perceber o acontecido, pois ambas tiveram vivências distintas, as quais "educaram" seus olhares como se criassem um crivo, possibilitando percepções próprias de cada objeto.

Essa questão do que vamos adquirindo com a experiência, e que está a constituir o nosso eu, fica bem expressa na última estrofe do poema quando o autor diz assim:

Razão, porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.(Idem, p. 248)

Temos então que, a partir de que se auto - percebe como sujeito modificador e responsável pelo mundo ao seu redor ("Ao constatar assombrado/ Que tudo naquela mesa/ - Garrafa, prato, facão/ Era ele quem os fazia/ Ele, um humilde operário/ Um operário em construção."), nosso operário parte em uma jornada de alerta e despertamento dos colegas de profissão e de luta classista por direitos, o que muito desagrada o patrão, sofrendo por isso ameaças e agressões, só que tudo isso apenas contribui para a formação, ou melhor, para a continuação desse sujeito, e para a consolidação de suas idéias e de seus ideais, ou seja, ele se constrói, ao final do poema, com aquilo que vivenciou.

Outra categoria formulada por Norbert Elias que usamos em nosso texto é a de interdependências, a qual se enquadra na idéia de redes sociais.

Para Elias os indivíduos constroem a sociedade e são construídos por ela, como já vimos, no sentido em que nós, coletivamente, criamos normas e convenções sociais, e, individualmente, decidimos aceitar e cumprir, ou rejeitar e descumprir essas normas, havendo assim tensões sociais em maior ou menor grau, sendo tais tensões que modificam e garantem a dinâmica da sociedade.

Elias acredita na idéia de redes ou teias sociais, onde indivíduo e sociedade estão em constante relação de interdependência. Como exemplo, ele usa a noção de um tecido, onde vários fios se ligam de determinado modo a formar uma unidade, porém o conjunto dos fios isolados não constitui um tecido, bem como o tecido não anula cada fio em si. (ELIAS, 1994: 35)

No poema podemos perceber uma correlação com estas idéias na continuação da terceira estrofe e na décima quinta estrofe:

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

- Garrafa, prato, facão –

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo que existia

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão. (MORAES, 1992: 243 e 244.)

...e:

Em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão. (Idem, p. 247)

O operário, a partir de sua "conscientização", podia ver-se como parte integrante de tudo que havia a sua volta. Entendeu como o seu trabalho gerava os lucros do patrão, de modo que, o seu papel de operário era importante na manutenção da ordem social, e a tentativa de mudanças dentro dessa ordem gerava tensões, como podemos observar nos seguintes versos:

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não. (Idem, 7ª e 8ª estrofes)

Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Ao ouvido do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação.

- "Convençam – no do contrário –

Disse ele sobre o operário. (Idem, 11ª estrofe)

Fica claro que o nosso operário conseguiu mobilizar outros para lutar por melhorias de condições de trabalho, porém, o poema também nos indica que alguns outros operário não compartilhavam das mesmas intenções, havendo, então, um confronto de interesses entre os dois grupos.

Temos que, seja para o "lucro do patrão" e a manutenção da ordem vigente ou para a modificação e melhoria das condições dos operários, havia um jogo de interesses onde a vontade grupal era fundamental, de modo que, nem o operário nem o patrão sozinhos poderiam manifestar suas vontades nesse jogo.

Desse modo, temos nesse interessante e bem construído poema de Vinícius de Moraes, um exemplo da realidade, que a nosso ver, demonstra vários aspectos das relações do indivíduo para com a sociedade, partindo da sua compreensão desta e da compreensão de seu papel nela a noção de coesão grupal a fim da realização de propósitos, estando o sujeito em constante movimento social, transformando e sendo transformado pelo mundo que o constrói e que ajuda a construir.

BIBLIOGRAFIA:

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

_____________. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 1999.

MORAES, Vinícius de. Antologia Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.


Autor: Fernanda Vale


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