E O POVO FALA ATRAVÉS DO SAMBA



                 E O POVO FALA ATRAVÉS DO SAMBA
                        
            O seguinte artigo é o responsável por apresentar de maneira mais detalhada possível, a realidade cotidiana dos componentes humanos, ideológicos, sociais, econômicos e culturais de uma época na cidade do Rio de Janeiro, retratada em depoimentos ou em músicas, criados por pessoas que marcaram a história e até hoje influenciam a vida e a maneira de ser do povo carioca. Esta terceira parte de nossa pesquisa, é voltada para a interpretação dos sinais presentes nas letras de samba, criadas no período que vai de 1930 a 1940.
Sendo uma característica marcante a sátira, o escárnio, a crítica social, a religião, a comida, a exaltação a mulata(herdada do lundu), o crioulo, o português, o malandro, a sogra, o carnaval, a boemia, os animais, o divórcio, o jogo do bicho, o samba, os dotes femininos, a morte, a festa, os bairros, enfim o senso comum transferido para o universo sambístico sempre com um tom de humor. Procuraremos evidenciar o talento de compositores variados, acreditando que este estudo tem a função de homenagear a cultura popular como um todo dando voz aos humildes. A técnica metodológica utilizada será a análise do discurso, com o intuito de demonstrar e descortinar a mensagem implícita nas músicas.
Embora nosso corte temporal seja a década de 1930, não poderemos deixar de citar o primeiro samba gravado em 1917, chamado “Pelo Telefone”, a respeito desse samba gerou-se muita polêmica, a primeira delas, registrada pela história oral, nos informa que por ter sido criada em uma roda de samba na casa de Tia Ciata, de maneira informal como um partido-alto, contava com a participação de várias pessoas, dentre elas o jornalista carnavalesco, Mauro de Almeida e Sinhô(José Barbosa da Silva), aliás sendo este último dono da célebre frase “ samba é que nem passarinho, está no ar, é de quem pegar”.
A música em questão, foi cantada pela primeira vez no Cinema Teatro Velo, localizado na Rua Haddock Lobo, na Tijuca. Por fazer grande sucesso, logo apareceram vários “donos” para a composição, inclusive a própria Tia Ciata. A letra deste samba amaxixado foi registrada por Donga(Ernesto Joaquim Maria dos Santos) na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, como se ele fosse o único dono, por conta disso houve um mal estar entre ele(Donga) e Tia Ciata, que nunca mais mantiveram contato.
A letra da música tinha o intuito de mostrar a polêmica em torno da prática do jogo, muito comum na cidade, e a proibição da polícia. Por surgirem inúmeros conflitos a época, logo foram criados os versos conhecidos por todos os admiradores do samba.
“O chefe da folia pelo telefone manda lhe avisar/ Que com alegria não se questione para se brincar/ O chefe da polícia pelo telefone manda lhe avisar/ Que na Carioca tem uma roleta para se brincar...” (DONGA,1917)
Outro registro retirado da história oral é apresentado por SANDRONI(2001), e refere-se a mesma estrofe, segundo o autor, a alusão ao “telefone” é feita em virtude de um incidente ocorrido na cidade durante a campanha contra o jogo “ No dia 26.10.1916, o jornal ´A Noite` noticiava: ´os conflitos, às vezes sangrentos, explodem diariamente nos clubes de jogos chiques, nas barbas da polícia” (SANDRONI, 2001). No dia seguinte o chefe da polícia reagiu a notícia, enviando um ofício ao delegado do distrito “(...) ordenando-lhe que lavre auto de apreensão de todos os objetos de jogatina” (SANDRONI, 2001). No entanto em mesma nota o chefe da polícia continua, e lança mão de uma ordem curiosa e evidentemente satirizada posteriormente, “(...) antes porém de se lhe oficiar, comunique-se-lhe esta minha recomendação pelo telefone oficial.”(SANDRONI, 2001). Se lermos tal frase rapidamente, teremos a impressão que o chefe da polícia mandou comunicar “pelo telefone” a todos os donos dos clubes, onde ocorria a jogatina, que a polícia estava a caminho, assim teriam tempo para guardar todos os objetos. Instaurada a duplicidade do discurso, o povo não perdeu tempo e satirizou o episódio.
Apesar da discussão sobre a criação do samba “Pelo Telefone” ser demasiada longa e reunir inúmeras conjecturas, problematizações e pesquisas de historiadores respeitados, não é nosso objetivo desvendar o mistério sobre a origem do samba, se é carioca, ou baiano, e se a primeira composição gravada tem muitos ou poucos “donos”, apenas evidenciamos que a tradição oral permeia o cotidiano de todas as civilizações, independente do corte temporal estudado, e foi o cotidiano desses indivíduos, em princípio marginalizados, que norteou e norteia nossa pesquisa.
Convém ressaltar que a tradição cultural em foco é anterior ao preconceito estabelecido, e sobreviveu pela necessidade de manutenção da identidade de uma comunidade, um povo. O advento do rádio, apenas instituiu ao compositor o status 
de músico profissional, mas esse artista já “se define como aquele que produz sons” (SODRÉ, 1998), e os produtores de sons têm destaque no presente trabalho, uma vez que são eles os responsáveis pela transmissão da tradição dos redutos aos grandes salões.
Nosso primeiro personagem é o sambista Sinhô(José Barbosa da Silva), nascido no Rio de Janeiro em 1888, ficou conhecido por unificar a autoria de músicas, tirando-as da produção coletiva. Sinhô utilizou-se de inúmeras composições folclóricas, dos provérbios que se constituem a partir de uma experiência da vida real, forjando-se enquanto instrumento pedagógico nas sociedades tradicionais e as popularizou, porém torna-se conveniente ressaltar que “Não é que a letra de samba se pautasse necessariamente por provérbios conhecidos ou de forma acabada, mas antes pelo modo de significação do provérbio” (SODRÉ, 1998).
Sinhô compôs cerca de 150 músicas com temas variados, abrindo caminho para uma série de compositores que veremos detalhadamente. Optamos por não selecionar letras de Sinhô por não estar enquadrado em nosso corte temporal específico, mas sua importância é incontestável.
Todavia, em meio ao que concerne a temática em questão selecionamos um dos compositores que se destaca pela abordagem “malandra”, Wilson Batista, o que a nosso ver convém apresentar, tendo em vista, a perseguição oferecida pelo presidente Getúlio a classe e a boemia . Wilson Batista de Oliveira, nasceu em Campos, no estado do Rio de Janeiro em 1913, teve seu primeiro samba gravado em 1932 intitulado “ Por Favor Vai Embora”, no ano seguinte escreveu “ Lenço no Pescoço” que fazia apologia ao perfeito malandro da época, por isso, o tema que lhe cabe é a malandragem. Mas quem era esse indivíduo que recebe a alcunha de malandro, é real ou imaginário?
O malandro emerge das classes populares, entretanto, ao mesmo tempo que se integra a ela também é marginalizado. O malandro é praticamente uma figura mitológica e inseparável do sambista, e “ um dos atributos do sambista é justamente ser o ´mestre de harmonia`. No samba, o mestre de harmonia orienta a integração cadenciada entre os diversos instrumentos(...)” (MATOS,1982). Mas dentro do universo do samba o malandro não desrespeita valores presentes no interior desse sistema da classe a qual integram.
Concluímos que trata-se de um figura solitária e carrega consigo o estigma de um grupo marginalizado em meio ao coletivo instaurado, e representa o próprio caos inerente a sociedade com suas ambivalências. Essa duplicidade se observa no comportamento e até no vestuário desse personagem, o malandro da década de 30, não é o mesmo da década seguinte, em virtude do comportamento da sociedade, por isso, para continuar sendo aceito, o malandro se regenerou indubitavelmente influenciado pelo comportamento do governo estadonovista que declarou sua abominação por esta figura. Notamos algumas peculiaridades, no que se refere a esse personagem e a um episódio muito curioso ocorrido entre Wilson Batista e Noel Rosa.
Em 1933, com a composição de “ Lenço no Pescoço”, Wilson Batista resolveu exaltar o estilo de vida adotado por ele e admirado naquele momento histórico, na música o artista caracterizava a maneira como o personagem se vestia:
“Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ De ser tão vadio” (BATISTA, 1933)
No mesmo ano(1933), Noel Rosa começa a provocar Wilson Batista por não concordar com a imagem imposta aos sambistas de modo geral, e que segundo Noel, denegria sua imagem(do sambista), compôs em resposta “ Rapaz Folgado”, que só foi gravada por Araci de Almeida após sua morte em 1938 :
“Malandro é palavra derrotista/Que só serve pra tirar/Todo o valor do sambista/ Proponho ao povo civilizado/Não te chamar de malandro/E sim de rapaz folgado” (ROSA, 1933)
Em resposta a Noel Rosa, Wilson Batista compôs “ Mocinho da Vila” em 1933 que dizia:
“Você que é mocinho da Vila/Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais/ Se não quiser perder/Cuide do seu microfone e deixe/Quem é malandro em paz/Injusto é seu comentário/Fala de malandro quem é otário/Mas malandro não se faz/ Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz” (BATISTA, 1933) 
Noel Rosa em 1934 compôs “Feitiço Da Vila” em parceria com Vadico(Osvaldo Gogliano), continuando a polêmica na música o “poeta da Vila”, como ficou conhecido afirmava:
“Quem nasce lá na Vila/Nem sequer vacila/Ao abraçar o samba/Que faz dançar os galhos,/Do arvoredo e faz a lua,/Nascer mais cedo./Lá, em Vila Isabel,Quem é bacharel/Não tem medo de bamba./São Paulo dá café,/Minas dá leite,/E a Vila Isabel dá samba./A vila tem um feitiço sem farofa/Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem/Tendo nome de princesa/Transformou o samba/Num feitiço descente Que prende a gente/O sol da Vila é triste/Samba não assiste/Porque a gente implora:/
"Sol, pelo amor de Deus,/não vem agora/que as morenas/vão logo embora/Eu sei tudo o que faço/sei por onde passo/paixão não me aniquila/Mas, tenho que dizer,/modéstia à parte,/meus senhores,/Eu sou da Vila!” (ROSA, VADICO,1934)
Em 1934, Wilson Batista respondeu com o samba “ Conversa Fiada”:
“É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço/Eu fui ver para crer e não vi nada disso/A Vila é tranqüila[sic] porém eu vos digo: cuidado!/Antes de irem dormir dêem duas voltas no cadeado/Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados/A lua essa noite demorou tanto/Assassinaram o samba/Veio daí o meu pranto” (BATISTA, 1934)
A resposta de Noel Rosa também veio em forma de música, em 1934 com “Palpite Infeliz” em parceria com Araci de Almeida:
“Quem é você que não sabe o que diz?/Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!/Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,/Oswaldo Cruz e Matriz/Que sempre souberam muito bem/Que a Vila Não quer abafar ninguém,/Só quer mostrar que faz samba também/Fazer poema lá na Vila é um brinquedo/Ao som do samba dança até o arvoredo/Eu já chamei você pra ver/Você não viu porque não quis/Quem é você que não sabe o que diz?/A Vila é uma cidade independente/Que tira samba mas não quer tirar patente/Pra que ligar a quem não sabe/Aonde tem o seu nariz?/Quem é você que não sabe o que diz?” (ALMEIDA, ROSA, 1934)
Wilson Batista ainda escreveu outros dois sambas em 1935, “ Frankenstein da Vila”, fazendo referência ao porte franzino e ao queixo defeituoso de Noel Rosa, e “ Terra de Cego”, mas não obteve resposta.
Ao final dessa disputa todos saíram ganhado, o samba, com todas essas composições cantadas até hoje em todas as rodas e os compositores, que acabaram ficando muito amigos. Wilson Batista faleceu em 1968 no Rio de Janeiro, e apesar de ser um costumás vendedor de sambas, morreu pobre num hospital na cidade em que vivera.
As composições de nossos ilustres personagens são permeadas de experiências e elementos presentes no cotidiano, comecemos interpretando os sinais presentes no samba “ Mocinho da Vila” de Wilson Batista, em resposta a Noel Rosa, o compositor faz referência ao estilo de vida de Noel, afinal ele era integrante da classe média do bairro de Vila Isabel, e cursou dois anos de medicina, mas esse fator não o impediu de integrar-se totalmente o universo do samba. Nos dois primeiros versos, Batista faz menção ao “ mocinho” em questão, e diz “ Você que é mocinho da Vila/Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais(...)” (BATISTA, 1933). No entanto, para darmos continuidade a interpretação dos sinais presentes no discurso e compará-los entre si, julgamos necessário abrir um parênteses para falarmos de um personagem importantíssimo no presente trabalho.
Noel de Medeiros Rosa, nasceu em 1910 no bairro de Vila Isabel, morou durante todos os seu vinte e seis anos de vida na rua Teodoro da Silva, era integrante de classe média daquele lugar. Teve durante seu nascimento fratura e afundamento de maxilar, provocados pelo uso do fórceps, além de uma pequena paralisia na face direita o que lhe conferiu aparência característica durante toda a vida. Sambista de vida boêmia e poeta reconhecido, Noel Rosa recebeu o título de “Poeta da Vila”, por sempre valorizar seu lugar de origem em sua composições, teve durante sua vida muitos amores, as mulheres, a boemia, o samba e a Vila Isabel, morreu em 1937, prestes a completar vinte e sete anos, de tuberculose, desfrutou da vida e zombou da morte em um célebre samba, “Fita Amarela”, no qual faz referência ao seu enterro iminente, afinal naquela época a tuberculose não tinha cura, aproveitou o tempo que lhe restava, na composição Noel Rosa diz:
“Quero que o sol/não invada meu caixão/para a minha pobre alma/não morrer de insolação/Quando eu morrer,/Não quero choro nem vela,/Quero uma fita amarela/Gravada com o nome dela/Quando eu morrer,/Não quero choro nem vela,/Quero uma fita amarela/Gravada com o nome/Se existe alma/Se há outra encarnação/Eu queria que a mulata/Sapateasse no meu 
caixão/Não quero flores/Nem coroa com espinho/Só quero choro de flauta/Violão e cavaquinho/Fico contente,/ Consolado por saber/Que as morenas tão formosas/A terra um dia há de comer/.Não tenho herdeiros /Não possuo um só vintém/Eu vivi devendo a todos/Mas não paguei a ninguém/Quando eu morrer,/Não quero choro nem vela,/Quero uma fita amarela/Gravada com o nome dela/Quando eu morrer,/Não quero choro nem vela,/ Quero uma fita amarela/Gravada com o nome/Meus inimigos/Que hoje falam mal de mim/vão dizer que nunca viram/uma pessoa tão boa assim/Quando eu morrer,/Não quero choro nem vela,/Quero uma fita amarela/Gravada com o nome dela.' (ROSA, 1933) A história oral nos fornece informações riquíssimas de pessoas reais, com expectativas e impressões do cotidiano próximas a todas as pessoas, os
compositores aqui retratados são figuras reais que foram capazes de criar verdadeiras obras de arte na música popular brasileira, por sua sensibilidade exacerbada foram responsáveis por manifestar os acontecimentos que permeavam 
o cotidiano coletivo.
Analisando o discurso da música “Feitiço da Vila”, perceberemos a presença de sinais marcantes desse cotidiano comum a todos, apesar desta composição não ter sido a primeira de Noel Rosa, com certeza rendeu a ele o posto de verdadeiro poeta da Vila Isabel e do samba. Nos quatro primeiros versos Noel diz “ Quem nasce lá na Vila/Nem sequer vacila/Ao abraçar o samba/Que faz dançar os galhos,/Do arvoredo e faz a lua,/Nascer mais cedo(...)”, pois segundo ele(Noel) o fato de nascer em Vila Isabel confere a pessoa a capacidade de enveredar pelos caminhos do samba, aliás é o samba que faz os galhos das árvores que compõem o Boulevard 28 de Setembro balançarem. Convém lembrar que a preocupação do prefeito Pereira Passos, na época da urbanização da cidade era transformá-la em uma extensão de Paris, para isso, houve o alargamento das ruas, recebendo o nome de bouleveres, em se tratando de área residencial, o prefeito(Pereira Passos) ocupou toda a avenida com árvores, que são a referência feita na música em questão.
Para Noel, a lua nasce mais cedo para que o samba tenha mais tempo para ser ouvido e cantado, afinal nem a lua consegue esperar por esse momento, nos versos que se seguem o compositor nos mostra, “(...) Lá, em Vila Isabel,/Quem é bacharel/Não tem medo de bamba./São Paulo dá café,/Minas dá leite,/E a Vila Isabel dá samba(...)”, para Noel os compositores são verdadeiros diplomados na arte do samba e são os bacharéis da música, e o “bamba” é o malandro, já os versos que mencionam São Paulo e Minas Gerais chamam atenção para a política
do Café-com-Leite, anterior a Revolução de 30.
Nos versos seguintes vemos: “(...)A vila tem um feitiço sem farofa/Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem/Tendo nome de princesa/Transformou o samba/Num feitiço descente/Que prende a gente(...)”. A “farofa, a vela e o vintém” são elementos muito utilizados no candomblé em oferendas para entidades conhecidas como “exús”, os mesmos são colocados em vasilhames de barro, que recebem o nome de “alguidar”, estes são colocados, ou como dizem os religiosos, “despachados” em cruzamentos nas ruas. Para Noel, o feitiço da Vila é decente e não precisa desses artifícios, e por ter o nome da Princesa Isabel, transformou o
samba nesse feitiço que envolve as pessoas. 
Nos últimos versos Noel Rosa e Vadico, contam o que acontece ao final da noite: “(...)O Sol da Vila é triste/Samba não assiste/Porque a gente implora:/
"Sol, pelo amor de Deus,/não vem agora/que as morenas/vão logo embora/Eu sei tudo o que faço/sei por onde passo/paixão não me aniquila/Mas, tenho que dizer,/modéstia à parte,/meus senhores,/Eu sou da Vila!”, no momento em que o Sol aparece o samba acaba, por isso ele é triste, porque não participa da festa e é indesejado, afinal quando chega as morenas vão embora, para Noel o sambista sabe por onde passa e a paixão não lhe envolve, justamente, sem falsa modéstia, ele é da Vila.
Após interpretarmos os sinais presentes nesse samba de Noel Rosa e Vadico criado em 1934, em resposta a Wilson Batista, é incontestável e belíssima homenagem ao bairro de Vila Isabel, além de exaltar o samba, trazer elementos presente na religião originariamente africana(o candomblé), e fazer menção a política anterior ao governo Vargas.
Em nossa pesquisa não poderíamos deixar de falar sobre o samba produzido no Estácio de Sá, seu principal representante é Ismael Silva, nascido em Jurujuba, Niterói(Rio de Janeiro) no ano de 1905, após a morte de seu pai, mudou-
se com a mãe e os irmãos para o sopé do morro do bairro do Estácio, compôs seu primeiro samba em 1922, com apenas quinze anos de idade, intitulado “ Já Desisti”.
Era assíduo frequentador das rodas de samba dos morros de Salgueiro e da Mangueira, fazendo amizades no meio do samba como Nílton Bastos, Brancura(Sílvio Fernandes, recebeu esse apelido pela sua pele negra reluzente), Bide (Alcebíades Barcelos) e Francelino Ferreira Godinho, fundaram juntos o bloco
“Deixa Falar”, que seria mais tarde a primeira Escola de Samba, afinal denominavam-se professores da arte e a “Escola de Samba” seria o local onde esse conhecimento seria criado, mantido e transmitido .
Ismael Silva vendeu muitos sambas na década de 1920 para Francisco Alves, aliás prática muito comum entre todos os sambistas e intérpretes, por ser difícil ganhar dinheiro como compositor na época, o maior clássico produzido por Ismael e gravado por Francisco Alves e Mário Reis em conjunto foi o samba “ Se fosse Jurar” de 1931, que trouxe para a música uma nova cadência melódica, desvinculando o samba do maxixe, e marcando um pouco mais a presença dos 
instrumentos de percussão, como o pandeiro criado por João da Baiana(João Machado Guedes), na letra Ismael Silva, Nílton Bastos e Francisco Alves dizem:
“Se você jurar que me tem amor/Eu posso me regenerar/Mas se é para fingir, mulher/ A orgia assim não vou deixar/Muito tenho sofrido/Por minha lealdade/Agora estou sabido/Não vou atrás de amizade/A minha vida é boa/Não tenho em que pensar/Por uma coisa à toa/Não vou me regenerar/A mulher é um jogo/Difícil de acertar/E o homem como um bobo/Não se cansa de jogar/O que eu posso fazer/É se você jurar/Arriscar a perder/Ou desta vez então ganhar” (ALVES, BASTOS, SILVA, 1931)
Em Setembro de 1931, seu amigo Nílton Bastos faleceu aos 31 anos de tuberculose, e após gravar seu segundo disco, mudou-se para o centro da cidade sendo apresentado por Francisco Alves a Noel Rosa, acabaram por compor juntos, em 1932, o samba “ Adeus” em homenagem a morte do amigo. Em 1935, também em parceria com Noel Rosa, Ismael Silva compôs “Boa Viagem”, que foi grava do por Aurora Miranda, nesta letra são utilizados ditados populares retirados da tradição oral:
“Se não mandei você embora/Enfim, foi porque/Me faltou a coragem/Mas se você vai dar o fora/Então, passe bem, boa viagem!/O amor é como a chama:/Tem princípio,meio e fim/Se você já não me ama/Para que fingir assim?/Não mandei você embora/Porque sou benevolente/Para que você agora/Quer sair ocultamente?/Seu desejo não me assombra/Ofereço o meu auxílio/Passa bem, vá pela sombra/Acabou-se o nosso idílio/Seu amor e o seu nome/Eu também vou esquecer/Desta vez juntou-se a fome/Com a vontade de comer! (ROSA, SILVA,1935)
O samba em questão fala sobre o fim de um romance, no qual a mulher quer ir em bora, mas não tem coragem, os compositores agregaram, principalmente nos seis últimos versos a tradição oral muito encontrada no discurso coloquial do dia-a-dia em “(...) Passa bem, vá pela sombra/Acabou-se o nosso idílio/Seu amor e o seu nome/Eu também vou esquecer/Desta vez juntou-se a fome/Com a vontade de comer!” há a recomendação que a moça vá embora com cuidado, ou seja, a metáfora do termo “vá pela sombra” nos remete ao ato de proteger-se do Sol, ou mesmo proteger-se de algo, o idílio nada mais é que o amor poético, suave e belo  que chegou ao fim. Em “ juntar a fome com a vontade de comer”, o ditado popular utilizado na composição, afirma que uniu-se o desejo da moça em ir embora com a conveniência da situação, ou melhor a vontade de ambos em que o romance acabasse.
Ismael Silva viveu de suas composições, sendo homenageado muitas vezes e reconhecido no meio sambístico, apesar de ter inúmeras composições, indubitavelmente o samba “Se Você Jurar” foi um marco para a música feita no centro da cidade do Rio de Janeiro, mesmo tendo vivido de sua arte, faleceu sozinho e pobre em uma casa de cômodos no centro da cidade no ano de 1975.
Para muitos autores, como Nei Lopes, o samba desceu o morro e se estabeleceu no asfalto, a apologia das comunidades, ou favelas cariocas como os principais redutos sambísticos, está presente até hoje no imaginário das pessoas, certamente há também a contribuição de comunidades como o morro do Salgueiro, o morro da Mangueira e o morro da Favela(atual Providência) no processo de criação, e inserção do samba no meio urbano o qual todos ocupam. Entretanto, julgamos viável destacar dois desses processos de ocupação no morro da Favela e no morro da Mangueira.
Inicialmente ocupado por ex-soldados da Guerra de Canudos, o morro da Favela recebeu esse nome em homenagem a um morro de mesmo nome na Bahia, o morro foi ocupado, durante a reforma urbana no início do século XX, e aumentou consideravelmente seu tamanho por absorver o contingente proveniente dos cortiços recém-demolidos.
No que se refere a ocupação de encostas na cidade, nosso outro destaque é o morro da Mangueira, localizado na Zona Norte da cidade, no bairro de São Cristóvão, próximo ao centro, surgiu a partir da Rua Visconde de Niterói, paralela a Estação Ferroviária D.Pedro II.
A ocupação do morro da Mangueira começou no final do século XIX, e ampliou-se também em virtude da reforma urbana promovida a partir de 1902. Com a reestruturação da Quinta da Boa Vista, as inúmeras casinhas dos soldados do 9° Regimento de Cavalaria, que ocupavam este local, foram demolidas, a solução encontrada por eles foi subir o morro com os entulhos de suas casas. Outro acontecimento que fez com que a comunidade aumentasse foi o incêndio no morro  do Santo Antônio no centro da cidade, a partir de 1916 a Mangueira tornou-se uma das maiores comunidades, composta majoritariamente por pessoas pobres, descendentes de negros e ex-escravos, tendo em sua cultura a característica afro em sua essência.
Durante os festejos carnavalescos, saíam do morro da Mangueira inúmeros blocos, ranchos e cordões, ficando então conhecidos como blocos da Estação Primeira, afinal a estação da Mangueira era a primeira parada do trem, depois que saía da(estação)central.
Em 1926 a Mangueira já era reconhecida como reduto privilegiado dos sambistas, em 1928 foi criado o bloco dos Arengueiros com as cores verde e rosa, seus idealizadores eram Cartola(Angenor de Oliveira), Carlos Cachaça(Carlos Moreira de Castro), Zé Espinguela(José Gomes da Costa) e Saturnino Gonçalves.
Este bloco daria origem a uma das escolas de samba mais amadas da cidade do Rio de Janeiro, a Estação Primeira de Mangueira sendo o seu maior destaque o compositor Cartola, personagem escolhido para representar os artistas do samba provenientes dos morros cariocas.
Cartola(Angenor de Oliveira), nasceu em Outubro de 1908 no bairro do Catete, Zona Sul, foi morar com a família no Morro da Mangueira em 1919, e em 1929, vendeu seu primeiro samba para Mário Reis, “ Que Infeliz Sorte!”, sendo gravado mais tarde por Francisco Alves, nutriu grande amizade por Noel Rosa, frequentador assíduo de sua casa na Mangueria. Cartola teve altos e baixos em sua carreira, mas é o autor dos mais belos sambas da história, viveu até 1980 e compôs nas décadas de 60 e 70 sambas antológicos como “Tive, Sim”, “Alvorada no Morro”, “Corra e Olhe o Céu”, “ Amor Proibido” e “ As Rosas Não Falam”.
Optamos por não fazer a análise do discurso dessas composições por não terem sido compostas durante o período que aqui nos cabe, mas esse personagem foi selecionado por representar para o samba como um todo, que a poesia emerge de onde menos se espera, ou seja, a sensibilidade está no sangue. Deixamos este nosso próximo personagem por último, por ser um admirador declarado do presidente Getúlio Vargas e por introduzir no samba, uma nova maneira de interpretar as canções. Estamos falando de Ataulfo Alves de Souza, nascido em Miraí, no Estado de Minas Gerais em 1909. Desde pequeno gostava de cantar, no entanto era integrante de uma família pobre , e após a morte de seu pai, viu-se forçado a trabalhar.
Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1927, a procura de melhores condições de vida, trabalhou como limpador de vidros e posteriormente como prático em uma farmácia, nas horas vagas costumava frequentar rodas de samba, acompanhado de seu violão.
Ataulfo Alves era um homem magro, esguio, e sempre elegante, sua marca registrada era um lenço brando, que segurava durante suas apresentações. Começou a compor em 1929, mas seu primeiro sucesso veio em 1935 com o samba “ Saudade do Meu Barracão”, durante toda a década de 1930 foi apenas compositor e em 1940 compôs “ O Bonde de São Januário” em exaltação ao trabalho, indubitavelmente influenciado pelo apreço que nutria pelo presidente, algumas pessoas não apreciaram muito essa atitude, e fizeram versões bem humoradas, e muito cantadas nas ruas. No samba de Wilson Batista e Ataulfo Alves vemos:
“Quem trabalha é que tem razão/Eu digo e não tenho medo de errar/O bonde São Januário/Leva mais um operário:/Sou eu que vou trabalhar/Antigamente eu não tinha juízo/Mas resolvi garantir meu futuro/Vejam vocês:/Sou feliz, vivo muito bem/A boemia não dá camisa a ninguém/É, digo bem” (ALVES, BATISTA, 1940)
Na versão modificada pela população, os versos “(...)O bonde São Januário/Leva mais um ´otário`:/ Sou eu que vou trabalhar(...)”, fica sempre evidente o espírito irreverente do povo carioca. Ataulfo interpretou uma de suas músicas apenas em 1941, o samba clássico “Leva, meu samba”, ficando explícito o amor do sambista pelo samba. Nessa composição, o samba é o portador de uma mensagem de amor:
“Leva meu samba/Meu mensageiro/Este recado/para meu amor primeiro/Vai dizer que ela é/A razão dos meus "ais"/Não, não posso mais!/Eu que pensava/Que podia lhe esquecer/Mas qual o que/Aumentou meu sofrer/Falou mais alto/No meu peito uma saudade/Mas para o caso não há força de vontade/Aquele samba/Foi pra ver se comovia/O seu coração/Onde dizia:/Vim buscar o meu perdão!” (ALVES, 1941) 
Outra contribuição inestimável de Ataulfo Alves para o samba, foi a utilização das vozes femininas, rompendo com um modelo pré-estabelecido, em 1946 ele iniciou a utilização das “Pastoras” durante as interpretações, sendo esse recurso muito utilizado até hoje em rodas de samba mais tradicionais. Ataulfo Alves é detentor de uma carreira de sucesso, sendo reconhecido por influenciar músicos de várias gerações, faleceu em 1969, no Rio de Janeiro, vítima de uma úlcera, que o acompanhou durante vinte anos.
De acordo com nossas ponderações esse é um momento do presente trabalho, no qual são apresentados alguns personagens desse universo cultural riquíssimo, preocupamo-nos em mostrar pessoas de verdade e parte de suas histórias, por integrarem um meio próximo, palpável e cotidiano. Através do caráter fenomenológico da pesquisa nos propusemos a interpretar as manifestações de artista, cantores, compositores, mas acima de tudo pessoas reais, que por intermédio de sua sensibilidade extrema foram o canal de integração e identificação entre diferentes segmentos sociais, deixando um legado imensurável para a cultura e para a história.
A presente pesquisa preocupou-se em buscar em fontes oficiais e na História Oral, mecanismos que nos aproximassem da realidade da época em questão, sempre respeitando seus representantes, e o fazer científico proposto desde o início da pesquisa. A oralidade foi um importante instrumento utilizado, os depoimentos impressos em obras consagradas, permitiram que o foco central da obra não se perdesse pelo afã do sucesso.
Consideramos todos os sambistas apresentados por nós de extremo destaque, no entanto convém ressaltar que essas escolhas foram de caráter pessoal, mas respeitando a devida contribuição que cada um desses, deu a cultura das classes populares como um todo, são eles em sua maioria, originários de camadas humildes da população carioca dos anos de 1930 a 1940, mas sobretudo porta-vozes dos anseios e do cotidiano ao qual estiveram integrados durante todas as suas vidas.
Em suma, os nossos principais personagens tornaram a presente pesquisa viável, ensinando que o exercício cultural é desnudo de preconceitos calcados no senso comum, ultrapassando barreiras e legitimando a produção de todos os  níveis da sociedade, permitimos que temas antes mal vistos recebam a devida valorização que lhes cabe.

BIBLIOGRAFIA:

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CALABRE, Lia. Folia na Praça Mauá: Rádio Nacional, Boemia e Carnaval In Circuito Mauá: Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Rio de Janeiro, CD-ROM, 1998

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MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982

SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, UFRJ,2001

SODRÉ, Muniz. Samba o Dono do Corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2°. ed,1998
 
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, UFRJ, 5°. ed. 2004






Autor: Rafaelli dos Santos Ribeiro


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