A CUIABÁ DE SILVA FREIRE



A CUIABÁ DE SILVA FREIRE

Wanda Cecília Correa de Mello[1]

Benjamim Abdala Júnior (1988) lembra que a oscilação entre formas convencionais de escrita e novas técnicas pode estabelecer uma ponte com o público, mas privilegiar as informações novas pode afastar o autor das funções sociais das artes quando o escritor dito "engajado" tem em perspectiva uma literatura mais voltada para a "transformação/modernização de cada país". No caso, de forma paradoxal, enquanto Silva Freire buscava essa modernização na forma de apresentação de sua poesia, sua temática era intencionalmente voltada para a manutenção da ordem das coisas (culturais?) em Cuiabá, uma tendência bastante comum em seus poemas.

Entre a literatura e o real, podemos situar a obra de Silva Freire, uma vez que esta discute, retrata, amplia os limites da cidade e de seu povo. Já o imediato é envolvido pelo saudosismo e a "utilidade" da obra é discutível. Entretanto, um passeio pela obra de Freire, em especial pela Trilogia cuiabana, apresenta uma cidade em que o pitoresco é pedra de toque e faz rir, enquanto leva a refletir acerca da ótica com que Silva Freire pensava e representava Cuiabá.

Em Trilogia Cuiabana[2], Silva Freire apresenta ao leitor uma Cuiabá em que o saudosismo encontra-se com a galhofa. Os dois livros são compostos de poemas longos, subdivididos em assuntos, que podem se considerados poemas inteiros por seu formato. Em Rosa-das-rugas-do-tempo, Freire nomeia os pontos cardeais intercalando-os com informações históricas e culturais de Cuiabá, como pode-se notar nos versos abaixo:

- ao NOROpitombaESTE

com a tradição que tonifica:

-grosa de guaraná relando

as remelas do de-manhã-cedinho, e

seu sendo, na crequência pardacenta

dos muros barreados de pedra-canga...

(Trilogia Cuiabana, vol1: 38)

A ênfase dada aos elementos comuns da cultura cuiabana da época – a pitomba, o guaraná de ralar, o muro de pedra-canga – reforçam a idéia de uma construção identitária que fez escola e pode ser facilmente encontrada ainda hoje em vários anúncios institucionais veiculados na imprensa do Estado.

Sônia Regina Romancini (2005: 63) defende que

Na obra poética de Silva Freire, a cidade aparece como um dos melhores exemplos de paisagem cultural e criação social. Em sua poesia nos inspiramos para investigar as motivações dos fatos sócio-espaciais, os significados, valores e interpretações dos lugares da vida cotidiana de Cuiabá. A cidade, no olhar de Silva Freire, reflete o movimento da vida e a alegria do encontro.

A partir dessa ótica, podemos pensar os poemas de Silva Freire como "úteis" para, talvez, um estudo diferenciado tanto da linguagem quanto das características físicas de Cuiabá de antanho, nas escolas mato-grossenses.

Ao falar de Cuiabá, Silva Freire deixava claro que o fazia para tentar promover a imagem da cidade como a via, como a conhecera em criança e adolescente. A filha mais velha do poeta, a psicóloga Daniela Freire, conta que ele não se preocupava com a literatura do Estado, mas com a preservação e visibilidade de Cuiabá. De certa forma, isso se explica porque, até meados da década de 70, falar em Mato Grosso era falar em Cuiabá e falar em Cuiabá era falar nas marcas na fala, comportamento, costumes e lugares que identificavam a cidade, tanto para os "estrangeiros", quanto para os próprios cuiabanos. Numa releitura da geografia cuiabana, Silva Freire nomeia os lugares caracterizando-os culturalmente:

Cotxipó-da-ponte

É reduto e atalaia na resistência estacada

De seresteiros

Ou resumo orquestral

De chorinhos

Rasqueados

E valsas puras

Quase um turbilhão de abismo tropical de Rosa...

Ao violão

Violinos

Flauta

E cavaquinho[3].

Os ares de modernidade que sopravam na capital apontavam para a perda desses valores, e era disso que Silva Freire falava. Além disso, é preciso lembrar que o poeta pertencia à base da classe dominante regional, concentrada no norte do Estado até bem depois da Guerra do Paraguai. Para essa classe, a identidade de Mato Grosso estava umbilicalmente ligada às imagens descritas por D. Aquino e reeditadas por Silva Freire, em uma versão mais moderna, mas não mais compreensível, da cidade que elegeu como sua.

Na representação da cultura cuiabana nos escritos de Silva Freire, pode-se encontrar a transposição da oralidade para a escrita, tanto na transcrição dos aspectos estigmatizados do falar regional (tche, dje), quanto nas variantes de menor prestígio social, na descrição dos espaços físicos e das particularidades (apelidos, axiomas, expressões), que, nesse processo, tornam-se espaços de reinvenção da cuiabania, ou de lembrança desta. É preciso lembrar que a escola não ensina a variedade dialetal local, menos prestigiosa que a variedade padrão, o que provavelmente fará, com o tempo, que essas marcas desapareçam, ou ao menos se acomodem em outra direção, ficando viva apenas através da arte.




Autor: Wanda Mello


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