Casa Grande e São Paulo de 1975



Casa Grande e Senzala e São Paulo de 1975: continuidades e rupturas

Ricardo Taraciuk

Para desempenhar as relações de continuidades e rupturas de diferentes momentos históricos, devemos considerar alguns cuidados e limitações do debate, para não concluirmos raciocínios simplistas, deterministas, reducionistas ou anacrônicos. Portanto, torna-se relevante verificar a longa duração que separa esses períodos, na qual ela representa realidades distintas e, também, o fato de analisarmos essas épocas, somente, na perspectiva de duas obras, ou seja, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e São Paulo 1975, Crescimento e pobreza, que dentre outros autores se destacam Cândido Procópio Ferreira de Camargo e Fernando Henrique Cardoso. Por isso, não podemos esquecer a ocorrência de outras interpretações de análises históricas e sociais que foram realizadas por diversos autores, nos respectivos períodos.

  • Continuidades existentes entre o Brasil da Casa Grande e Senzala e o Brasil de São Paulo, 1975

Na obra de Freyre, notamos algumas características gerais da colonização portuguesa do Brasil, como por exemplo a formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. O autor nos evidencia um método científico para obter uma compreensão da sociedade, recriando o período colonial com suas características e singularidades bem como o período anterior à colonização, mais precisamente, quando é constatado a experiência sociocultural vivida por Portugal, no século XV e XVI.

Em Casa Grande e Senzala é exposto algumas peculiaridades dos portugueses que possibilitaram seu sucesso na colonização, como por exemplo os contatos culturais e sexuais com os mouros, sendo fundamentais para que os portugueses realizassem sua empreitada colonial. Nesse sentido, também é explanado "o clima, a terra e a gente" que o português se encontra, que facilitaram a adaptação ao clima tropical e as relações com os índios, visto que as índias, por vezes, foram vistas como semelhantes a "moura encantada".

Encontramos, nessa obra, a ponderação que o mundo colonial se legitima através da constituição da família patriarcal, tendo em vista que essa instituição foi a que mais ajudou na colonização, possuindo o papel de "base social", pois tudo gira no seu entorno: constituição de uma unidade produtiva, compra de escravos, bois e ferramentas. Desse modo é, basicamente, ela quem dita as regras no Brasil colônia, em um período, na concepção de Gilberto Freyre, com fortes feições patriarcais, escravistas e aristocráticas.

Em Casa Grande, enfatizo os apontamentos em relação ao plantio de cana-de-açúcar, a falta de alimentos e o problema de nutrição. Essa desnutrição produzia uma população fraca e deficiente e a falta de alimentos detectada, se justifica pela extensa plantação de cana-de-açúcar. Assim, consignamos uma crítica a nutrição da família colonial brasileira, dos engenhos e das cidades e sua má qualidade está interligada na pobreza de proteínas de origem animal e na falta de vitaminas. Essa situação vem da ganância da monocultura que impedia o desenvolvimento de outras plantações como mandioca para a produção de farinha e legumes, além de impedir a criação de gados e outros animais. Vale ressaltar que um exceção desse modelo foi o do planalto paulista que se caracterizou por uma considerável criação de bovinos.

O debate das "questões das raças" ocasionadas pela miscigenação, também, é um dos legados para a historiografia contemporânea que o autor nos deixou. Dessa forma, de uma maneira geral, tentei expor um levantamento histórico, cultural e econômico do período colonial, aos olhos de Freyre, que entende a construção do Brasil como nação sendo efetivada pelo seus antagonismos. A contribuição da obra, outrossim, está enraizada no intuito de pensar em como se deu a formação da sociedade brasileira, descrevendo o modo de vida da sociedade colônia bem como seus hábitos e costumes.

Analisando a obra São Paulo 1975, crescimento e pobreza , torna-se possível realizar reflexões em relação ao que poderemos considerar como continuidade da Casa Grande de Gilberto Freyre. Acredito que, essas continuidades, se evidenciam nas relações humanas e na mentalidade dos homens de 1975, que são herdeiros de um passado colonial, no entanto, estão inseridos em uma sociedade com uma nova estrutura econômica e política.

Apesar do progresso econômico, da modernização do Estado, da acumulação de capital e da mão de obra ser assalariada ao invés de escrava, encontramos um desnível nas condições de vida no qual a opulência são para poucos e a dificuldade são de muitos. Essa constatação não é muito diferente do período colonial que Freyre nos apresentou, visto que, embora os homens estejam em um espectro social estruturalmente diferente, ainda encontramos um contraste entre riqueza e pobreza.

O passado da Casa Grande, em nossa análise, torna-se um dos caminhos para detectarmos o entendimento da essência do preconceito dos anos 70. Sendo assim, percebemos que os empregadores de São Paulo poderiam ter preferências por homens ou mulheres, jovens ou velhos, migrantes ou não-migrantes, brancos ou negros, sua opção pode resultar tanto de motivações econômicas ou por preconceitos sociais e raciais.

Nesse sentido, em muitos casos, nota-se a discriminação contra determinadas categorias de trabalhadores, como por exemplo as mulheres, a mão-de-obra que era considerada "velha" e os negros.

No que tangem aos negros e mulatos, verificamos que estavam mais concentrados entre os empregados e que eram, principalmente, assalariados da indústria, do comércio, do transporte, dos serviços urbanos e apenas uma parcela deles se encontravam na classe média e, praticamente, não havendo negros e mulatos na alta burguesia. Por isso, constatamos elementos dessa nova sociedade que se redefiniram e se legitimaram através do tempo, mas que possuiu sua origem na forma que era estruturado o Brasil Colônia. Saliento, também, que desde a abolição dos escravos, já havia uma diferenciação entre trabalhadores brancos e ex-escravos.

Em síntese, portanto, consignamos duas tendências principais nas relações raciais em São Paulo de 1975. Primeiramente a expansão e diferenciação da sociedade urbano-industrial que diversificou o mercado de trabalho, possibilitando novas possibilidades de ocupação e profissionalização para os negros e mulatos. Entretanto, a outra tendência, desse contexto, corresponderia que na disputa pelas vagas havia um preconceito que, por muitas vezes, deixavam os negros e mulatos em segundo plano, logo verificamos uma sociedade que se tornou legítima pela cultura das diferenças étnicas e raciais.

Desse modo, considero relevante o "casamento" da Casa Grande de Freyre com a análise dos autores que escreveram sobre a realidade de São Paulo, da década de 70. Assina-lo que o desenvolvimento econômico paulistano mostrou uma perpetuação das desigualdades existentes e uma discriminação racial, então, os tempos da Casa Grande tem muito a nos dizer sobre essa "nova" realidade.

  • Rupturas existentes entre o Brasil da Casa Grande e Senzala e o Brasil de São Paulo, 1975

As rupturas estão mais enraizadas na nova estrutura econômica e política que a sociedade se legitimou.

São Paulo, nesse período, possuiu uma posição econômica privilegiada, na qual estava a frente no processo de industrialização, desempenhando uma considerável acumulação de capital que visava o lucro. No entanto, essa concentração de riqueza, não significava que a população fosse rica, tendo em vista que deve-se considerar como o ocorria o processo de distribuição de capital.

A população da Grande São Paulo, nessa época, contava com, aproximadamente, 11 milhões de habitantes e seu crescimento econômico se dava na produção industrial, no setor financeiro e na renda per capita.

Houve, também, uma considerável expansão da escolarização, apesar de nos questionamos se o aumento ao acesso à escola expressa maiores possibilidades de ascensão social ou se a partir das novas exigências da divisão social do trabalho, reforça as diferenças já existentes.

Em São Paulo, até o século XVIII, parte dos problemas eram resolvidos no âmbito do poder municipal. Assim, na "Assembléia dos homens bons" se discutia questões de defesa do território, relações com os índios, administração eclesiástica, controle de preços e mercadorias, obras públicas e serviços municipais. Nesse sentido, também se evidencia uma explicita ruptura ao modo que os assuntos políticos e administrativos foram tratados nos anos 70, em tempos de ditadura militar.

Dessa forma, desde a época que a Casa Grande e Senzala se referia, até o Brasil e , mais precisamente, São Paulo de 1975, passaram por diversas transformações , como por exemplo, várias experiências de administração política: monarquia, republica, getulhismo, populismo e ditadura militar. Acompanhadas por essas mudanças, vieram as de âmbito social, econômico e cultural, uma vez que a sociedade brasileira, ao longo dos séculos, vai se tornando, cada vez mais, complexa com novos segmentos sociais, junto com os avanços da indústria, da educação, do aumento da densidade demográfica, e do crescimento e modernização das cidades e bairros criando, aparentemente, novas realidades e contradições.

  • Perspectivas sociológicas para o futuro da sociedade brasileira

 

De acordo com os autores de São Paulo 1975, crescimento e pobreza, a discussão fundamental que devemos realizar para pensar em futuro seria a democratização da sociedade. Assim, se admite que um modelo de uma sociedade renovada não decorrerá da imposição de valores por um grupo iluminado das elites, mas sim de uma soberania do povo. Se alcançaria, portanto, uma forma democrática de organização social quando se atingisse uma capacidade de manifestação, pelas camadas populares, sem o terror da represália.

Desse modo, percebemos que para esses autores a perspectiva de democratização está aliada no intercâmbio de experiências e desejos populares bem como no suprir das necessidades sociais básicas de todos como emprego, alimentação, educação e abrigo que seriam essenciais para a instauração de uma liberdade efetiva. Era preciso, outrossim, para diminuir as desigualdades sociais, que se efetuasse reformas básicas.

Trazendo essas discussões para nossa atualidades, percebemos que elas ainda fazem sentido. As perspectivas sociológicas do nosso futuro estão interligadas nas resoluções dos problemas que obtemos depois da consolidação de um regime democrático presidencialista que tanto foi aspirado pela oposição do regime militar.

Nós vivemos em um país, aparentemente, democrático mas ainda com evidentes dificuldades sociais que se explicam pelo próprio processo histórico em que se formou a sociedade brasileira. Ainda que, ao meu ver, somos contemporâneos de um período de maior estabilidade econômica e até mesmo de melhor distribuição de renda.

É difícil falar de futuro, uma vez que as perspectivas que temos dele condiz com a mentalidade que possuímos no presente. E, hoje, nós achamos que a democracia é a mais viável forma de legitimar o poder, que a inclusão social deve ser estabelecida de maneira que todos tenham direito das necessidades básicas e que devemos vencer, de uma vez por todas, o preconceito. De uma maneira geral, pensamos assim, e é isso que espero do futuro, não negligenciando, portanto, que nem sempre os homens tiveram essa mentalidade na qual não deve ser julgada e sim compreendida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

GOMES, Flávio Santos Gomes. Historias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro século XIX. Rio de Janeiro. Arquivo Nacional, 1995.

 

 

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formacao da familia brasileira sob o regime de economia patriarcal . Rio de Janeiro. J. Olympio, 1961.

 

 

CAMARGO, C. P. F.; CARDOSO, F. H.; MAZZUCHELLI, F.; MOISÉS, J. A.; KOWARICK, L.; ALMEIDA, M. H. T. de; SINGER, P. I.; BRANT, V. C. São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo, Edições Loyola, 1976

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Autor: Ricardo Taraciuk


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