Nudez E Pacifismo Nos Anos Da Contra-cultura



A nudez é um dos temas fundamentais na história da arte, mas, o seu significado variou muito, em função da ideologia e do contexto sócio-econômico na qual foi veiculada.

A nudez dos indígenas ou dos homens das cavernas nada tem em comum com a nudez dos gregos e romanos. No primeiro caso trata-se de uma contingência imposta pelas condições materiais de vida e adaptação ao meio-ambiente, enquanto no segundo caso trata-se de uma solução da ordem da estética, com amplo lastro da filosofia e da doutrina moral então dominante.

No século XX o naturismo (“nudismo”) surgiu por volta da década de 1930, quando a medicina enfim reconheceu as virtudes terapêuticas da exposição aos raios solares (infra-vermelho) e mais pessoas passaram a freqüentar praias e piscinas. Embora desde o início tenha sido uma postura revolucionária (no Brasil um dos pioneiros foi o sociólogo Gilberto Freire, autor de Casa Grande e Senzala), não era uma atitude necessariamente ligada ao pacifismo, já que tanto nazistas quanto fascistas estimulavam os seus jovens à prática dos exercícios físicos, à nudez ou semi-nudez e ao contato com a natureza.

O ideal do jovem ariano, nu e não circuncidado, foi a temática preponderante da estética nazista. Como exemplos poderíamos citar os trabalhos do escultor Arno Brecker ou as pinturas de Walter Hoeck. A nudez sob o fascismo/nazismo era ideológica: plasmava a sua juventude próxima ao ideal da beleza e da perfeição clássica e, como subproduto, tornava mais fácil identificar os judeus.

A nudez só passou a estar associada definitivamente ao pacifismo, entre outras coisas, na década de 1960, quando a revolução sexual aproximou meninos e meninas e a estética já havia liberado as artes plásticas da obrigação da mímesis, de uma maneira definitiva. A nudez invadiu o mundo real na exata proporção em que deixara as telas e as esculturas, tornadas abstratas ou concretas nas décadas anteriores. Quando Andy Warhol vier a produzir os seus “torsos” (na verdade, fotos coloridas a tinta plástica de torsos masculinos nus, onde a genitália ocupa lugar de destaque) ele o fará concomitantemente aos seus filmes experimentais e, dentro de um outro contexto, sobre o qual falaremos um pouco adiante.

O concílio Vaticano II (1965) estimulou os católicos a buscar uma maneira mais “engajada” e atuante de vivenciarem a sua religiosidade. Então, foi possível lembrar que Cristo foi pregado nu ao lenho da cruz e que São Francisco despiu-se diante de toda Assis: a nudez, neste caso, foi sendo associada ao “estar desarmado”, “estar despido de qualquer ideologia”, “estar em estado de natureza”.

É paradigmático que, logo à seguir, Bernardo Bertolucci tenha filmado “Irmão sol, irmã lua”, a meiga e comovente versão musicada da vida de S. Francisco, que o mostra como um belíssimo adolescente que fica muito à vontade despojado de suas vestes.

O monopólio do teatro, do cinema e da música (os festivais) passa a ser absoluto, em relação à nudez e isto se dá por dois motivos: em primeiro lugar porque é nestes espaços que circula a juventude revolucionária da época e , em segundo lugar, porque estes são os veículos privilegiados da militância política através da arte neste período.

HAIR foi originalmente um musical da Broadway, lançado em 1967, no bojo da contra-cultura , do pacifismo e da contestação à Guerra do Vietnã, sob os "slogans' do "PAZ E AMOR" e "FAÇA AMOR, NÃO FAÇA A GUERRA" veiculados pelo movimento hippie. O título do filme, "cabelo", refere-se aos longos cabelos da maioria de suas personagens e que, na época, eram uma forma de contestação aos valores sexistas da sociedade tradicional, além de uma manifestação da estética adotada pela juventude . HAIR, produzido na década de 1980, é o fiel retrato de uma época em que se consolida o “poder da flor” e que, pela primeira vez na história, os jovens do mundo todo assumiram uma postura crítica e ativa: já não eram mais os jovens “rebeldes” da década anterior (1950), eram jovens genuinamente revolucionários. A sua atitude deixou de ser pautada por um pacifismo apenas conformista, deixou de ser passiva e desengajada, a sua crítica passa a ter consistência. Em várias partes do mundo os jovens demonstram que já tem consciência de sua própria força, participando nus no “Central Park” de manifestações contra a Guerra do Vietnã (1968) ou então de manifestações em prol dos direitos civis dos negros no sudeste dos Estados Unidos e contra o “Apartheid” na África do Sul. O que nós podemos vislumbrar, além dos conflitos internos intrínsecos das personagens, é o conflito social e o choque cultural inerente a esta época, o que nos faz afirmar que existe uma grande dose de universalidade no filme HAIR, pois os ideais de seus jovens personagens são também os ideais de todos os nossos jovens que resistiram à ditadura e que procuraram democratizar as relações intersexuais , questionando os papéis homem/mulher, interaciais, religiosos e políticos.

Em 1969, mesmo ano do primeiro e antológico Festival de Woodstock – onde imperou a nudez, Jimmy Hendrix incendiou a sua guitarra e onde, pela última vez, brilhou Janis Joplin - Kenneth Tynan, um dos mais intelectualizados e irônicos críticos de teatro da época, lança “Oh ! Calcuttá! “ (originalmente “Oh! Quel cult t’as!”) com contribuições de John Lennon, Jules Feiffer, David Newman e Robert Benton e Samuel Beckett.

Trata-se de vários esquetes, que exploram com irreverência a nudez e a sexualidade, sempre com um forte conteúdo pacifista. O elenco discute relacionamentos humanos, senilidade, drogas, circuncisão e mais uma série de assuntos até então tabus, que incluíam a bissexualidade.

Também nesta época “Godspell” e “Jesus Cristo superstar” associaram “paz e amor” ao rock-n-roll, levando os ideais da contra-cultura e do movimento hippie aos palcos de todo o mundo. Veicularam a nudez dentro de um contexto mais amplo, pacifista, e aproximaram a juventude de um certo viés de religiosidade, que o Vaticano II parecia apontar.

Existe um outro contexto, mais específico, no qual a nudez desempenhou o papel de suscitar ao engajamento político e que, tal como o pacifismo e o movimento “hippie”, incendiou os anos da contra-cultura.

Muito mais cedo, em 1893, Florenz Ziegfeld apresentou ao “show-biz” um alemão musculoso, que ele chamava de “Sandow, o magnífico”. Ele inaugura a moderna mania pelo fisioculturismo que se consolida com o lançamento da primeira revista do gênero, em 1908.

Desde o início a contemplação destes homens viris, em trajes sumaríssimos (Sandow chegou a exibir-se usando unicamente uma folha de parreira a lhe cobrir a genitália), serviu como uma luva ao insipiente público homossexual. Havia poucas décadas que o termo “homossexualismo” fora forjado na esfera médica e, poucos anos antes, o grande dramaturgo inglês, Oscar Wilde, fora condenado à cadeia por sua ligação com um jovem aristocrata. Neste contexto , os apreciadores do “amor grego” do início do século necessitavam de um pretexto cultural, socialmente aceito, para extravasarem a sua sexualidade.

Logo nas primeiras fotos (Sandow retratado como Hércules, ou como Sansão, que derruba as colunas do templo) o apelo erótico ficou evidenciado, mas, como a medicina passou a estimular o desenvolvimento físico e, como dissemos antes, a exposição do corpo aos raios solares, a justificativa cultural deixara a esfera da moral e passara à esfera médica.

Os “anos dourados” do “beefcake” (exposição dos corpos musculosos, nus ou semi-nus) tem início em 1952 com a publicação de uma pequena revista chamada Physique pictorial editada por Bob Mizer, um fotógrafo. Muitas outras revistas apareceriam à seguir, diversificando propostas e disputando o mercado, mas nenhuma teve uma sobrevida tão grande (a revista só fechou as portas em 31 de dezembro de 1993).

Numa época em que a livre expressão da homossexualidade era crime, e que Tim Morrison, líder do grupo de rock The doors, foi preso por exibir a genitália à platéia num show em São Francisco, estas revistas eram a cultura gay. Houve inúmeras batalhas na justiça e sanções judiciais por parte de alguns censores, mas, em 1968 a jurisprudência estabeleceu que estas imagens não eram pornográficas.

Em 1969, um ano atribulado e riquíssimo do ponto de vista cultural, como já dissemos, também foi marcante para o movimento gay. A primavera de Praga e o maio de 1968 em Paris haviam deixado lições e, em 27 de junho os homossexuais que freqüentavam o Greenwich Village decidiram que não iriam se submeter caso fossem confirmados os boatos de que a polícia invadiria o bar Stonewall no dia seguinte.

Nesta época, precisamos entender, a homossexualidade era encarada como doença (a organização mundial de saúde só formalizou a sua retirada desta condição em 1985!) e as leis americanas proibiam dois homens de dançarem juntos. Foi em decorrência desta proibição que a polícia invadiria o bar.

Realmente em 28 de junho, por volta das 2 horas da madrugada, a polícia invadiu o bar e, durante a verdadeira batalha que se seguiu, onde muitos recorreram à nudez como forma de protesto, alguém bradou “Gay power” . Estava inventado o orgulho gay.

Havíamos falado anteriormente em Andy Warhol, e sua linguagem experimental. Neste momento, já podemos contextualizar melhor a sua proposta e entender o papel de ícone da cultura gay que ele ocupou: em sua arte, mais do que em qualquer outra, o corpo masculino torna-se objeto de consumo, sujeito imediato de manipulação pela cultura de massa e de divulgação por várias mídias.

Antes de existir a expressão “multi-meios” Andy Warhol já era o expoente máximo desta categoria e era, em grande medida, ponto de referência para a consolidação de toda uma estética, assumidamente homossexual.

Como pudemos demonstrar ao longo deste breve texto, a nudez metamorfoseou-se em atitude crítica, ativa e politicamente engajada nos anos da contra-cultura. Estes anos, com certeza, são recordados com nostalgia nesta nossa época de “neo-liberalismo”, “neo-conservadorismo” e em que Antonio Carlos Magalhães clama pela volta do exército às ruas...

Luiz Carlos Cappellano, maio de 2000.

Artigo NUDEZ E PACIFISMO NOS ANOS DA CONTRA-CULTURA in: SIMPRO (sindicato dos professores de Campinas e região), revista CULTURA ano VII, nº 44 , agosto de 2000, pp 9-11.


Autor: Luiz Carlos Cappellano


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