Um caso de teimosia



069 - UM CASO DE TEIMOSIA

De Romano Dazzi

 

A velha senhora chegou  de surpresa e:

-Vamos! – ordenou. – Estou com pressa!

José levantou lentamente a cabeça, olhou para um lado, olhou para o outro, largou o sapato que estava reformando e:

- É comigo? -  perguntou com falsa inocência.

- Sim, meu lindo, é com você mesmo! Vamos!

- Não senhora – respondeu calmamente o José – Não vou, não.

- Como, não? Que novidade é essa?   Estou mandando; vamos!

- Já disse que não vou e não vou. Pronto. Não vou a lugar nenhum  -   repetiu  o José, agora  com  ar desafiador.

- Como se permite recusar?  Você sabe quem eu sou?

- Sei, sim senhora.

- Então vamos ...Vamos embora!

Mas o José continuava firme, sacudindo a cabeça,  recusando-se terminantemente a  negociar:

- Quantas vezes tenho que repetir que não vou? Você é surda? Você não manda em mim! Volte outra hora!, Volte quando o trigo estiver maduro! E não me aborreça!  – protestou decidido..

A velha senhora  ficou confusa.

Nunca tinha sido maltratada assim.

Todos tinham por ela pelo menos um grande respeito, mesmo que não se tratasse, propriamente, de  consideração;  muitos a tinham chamado, em um momento qualquer da vida,  pedindo-lhe que viesse resolver algum problema grave. Mas ela não atendia assim, facilmente. Só vinha quando queria. 

Pensando bem, ela não conseguia lembrar de ninguém que não  tivesse recorrido a ela, mais cedo ou mais tarde.

Mas este José, arrogante, orgulhoso, senhor sabe tudo, era o cúmulo da falta de respeito!

Ela reconhecia não ser uma figura simpática, agradável; a idade, os modos, a forma  de aparecer, quase sempre de surpresa,  com uma impressionante falta de “timing”, eram mais que criticáveis: eram chocantes.

Mas enfim, no mundo não existem somente pessoas jovens, bonitas e simpáticas. E todos acabam encontrando o seu lugar.

A velha senhora sabia, no fundo,  que o José tinha razão; só não queria dar o braço a torcer. Teimosia, por teimosia.

Na sua função, às vezes era chamada a trabalhar duramente, sem descanso,  em lugares os mais diversos e disparatados. Frequentemente tinha que correr de um lado para outro sem poder descansar um instante.

Assim, nas raras ocasiões em que o serviço arrefecia, tentava pôr em dia suas tarefas, apressando um pouco o tempo.

É por isso,  que tinha chegado ao encontro com o José antes da hora. Mas era só uma questão de poucos anos, nada que fizesse uma grande diferença, diante da eternidade. 

Porém, esse era um homem teimoso – e mal educado. Neste momento, ela o odiava. Ah, se pudesse..Mordeu  o lábio, arrependida do mau pensamento.

Passaram-se  alguns minutos.

Tanto ela quanto o José estavam reconsiderando e procurando colocar panos quentes na situação.

 

- Velho maluco! – comentou a  Senhora, com uma expressão vaga,  a esconder uma leve nuance de simpatia – então, você quer ganhar todas, não?

 

José também desfez a carranca, baixando a guarda e colocando de lado os sapatos consertados.

- Esta tenho que ganhar – comentou aliviado – e você não perde muita coisa, esperando um pouco para me levar...

- Sabe José, no fundo eu gosto de lutadores, gosto de quem resiste e não se dobra e – mesmo sabendo que no fim perderá  - me olha firme nos olhos e me desafia.  Este apego à vida é uma das melhores qualidades do Homem.

Mas chega de papo; já estou muito  atrasada. Acerte o seu relógio, José!

Daqui a trinta anos, dois meses e vinte e um dias, volto para te levar. Adeus!

- Bom, resmungou o José – sou um dos poucos que têm o azar de saber o dia certo em que vão morrer!  Até lá, não me preocupo.

Retomou nas mãos o par de sapatos, observou-o com atenção e carinho e comentou: Bom serviço, José! Eu sei mesmo fazer um bom trabalho .....

 

Passaram-se exatamente 11 039 dias; José já estava bem maduro, cansado por uma longa vida, por muitas lutas, por muitas solas consertadas; sabia que não duraria muito e aguardava o momento com certa impaciência.

Mas era um teimoso incorrigível.

Durante todo o tempo que lhe sobrara, pensava numa forma de enganar a velha, mesmo que fosse para ganhar só alguns instantes.

Assim, quando amanheceu aquele que deveria ser o seu último dia, saiu de casa cedinho, com uma máscara imitando uma caveira e vestindo uma roupa usada e rasgada como a que tinha visto a velha senhora usar.  

Era tempo de carnaval e ninguém estranharia o disfarce; às costas, levava uma foice, igualzinha às das cartas de tarô.

Chegando  na cidade próxima, porém, viu-se, de repente, cara a cara com outro José; igualzinho,  roupa surrada, sapatos impecáveis.

E este José, mostrando-se surpreso e apavorado, começou a gritar:

“É a Morte! Olha a Morte aí!  É a Morte! É a Morte! Mata! Mata! Mata ela!”...

Juntou muita gente, cada um com seu medo e sua coragem;

Quando o homem está só, o medo domina-o facilmente. Mas quando está com  outros, sua coragem multiplica-se. Chama-se “covardia”

Assim, todos pularam sobre o pobre José, com seu inútil disfarce, sem dar-lhe nenhuma chance.  Em cinco minutos, acabaram com ele.

Então  a morte, retomando suas feições e rindo como só ela sabe fazer,  pegou sua alma e o levou.  

 

Moral: Pode-se enganar todos, a vida toda; mas há um momento em que não  podemos enganar ninguém, e muito menos, nós mesmos.

Temos que reconhecer este momento e aceitá-lo, com coragem.

É a única  maneira bonita de morrer.

 

 

 

 

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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