Começou assim



COMEÇOU ASSIM

de Romano Dazzi

 

Começou assim, como uma brincadeira: um jogo entre uma parte lógica e racional  e outra parte crédula e supersticiosa, ambas convivendo tranquilamente no meu ser.

Ou não diria muito tranquilamente, porque a razão quer prevalecer, quer sempre “ter razão”  ; e  este é seu grande erro.  As coisas não são racionais, quase nunca.  

 

Como dizia, o jogo era assim: qualquer coisa que fizesse, apostava comigo mesmo; penso em um número e o associo ao alfabeto; se der uma vogal, é sorte; se der consoante, é azar. Assim, estaria justificada uma topada, um escorregão, até um resfriado.

Ao levantar de manhã, sabia que tinha que pôr no chão o pé direito, antes do esquerdo.

Levantar com o pé esquerdo, todo o mundo sabe, dá azar pelo dia inteiro.

Só acaba no dia seguinte, desde que não levantarmos de novo com o pé  esquerdo.

E se podemos evitar o azar, para que arriscar ?

Quem pode, honestamente, afirmar que não acredita em azar ?

A partir daquele primeiro pé no chão, tudo para mim, por um curto período da vida, virou jogo, aposta, adivinhação. – com todas as suas conseqüências.

Saía de casa pensando:

Se ao virar a esquina encontrar um homem, - azar.

Se for uma moça,- sorte.

Se aparecesse um cachorro, não valia ;. tinha que começar de novo.

Pequenas sortes, pequenos azares, é verdade, mas todas com algum peso, alguma importância na vida de todos os dias;

Como a sorte de encontrar todos os semáforos abertos, numa longa avenida, quando você está atrasado.

Ou o azar de , ao precisar dar um recado urgente, encontrar o telefone ocupado uma, duas, dez vezes.

A minha racionalidade impede-me de acreditar em alguma conexão de causa e efeito, entre fatos tão díspares.

E entretanto ai está um dos mais importantes encantos da vida: nunca conheceremos a realidade, apesar de estarmos totalmente mergulhados nela.

Não temos acesso à verdade; estamos sempre supondo, imaginando, tentando criar regras e definições, leis e ligações de causa e efeito, dentro de um universo que vive  de incongruências, de “acasos”.

No fim, é até agradável esta confusão; se tudo seguisse um fio lógico, a matemática seria a nossa única ciência, a nossa única esperança – e tudo seria completamente previsível, equacionável.

Eu saberia desde já  o que vai haver para o almoço, onde passarei as férias, quando ficarei resfriado, quem estará onde - e quando.

Os seres humanos seriam chatos e aborrecidos; e a vida caberia num teclado e num monitor:  inseridos os dados, aparece o resultado, único, inelutável, absurdamente rápido.  Ponto.

Já acontece isto com a Astronomia.

Milhares de cálculos complexos permitem-nos localizar , sem sombra de dúvida , onde se encontrará  Marte, no mapa do Universo,  em janeiro de 2150 ; mesmo sabendo que naquele momento nenhum de nos estará vivo, lá ou aqui,  para  conferir.

As coisas tornam-se  mais interessantes quando são imprevisíveis. 

Não poder estabelecer uma regra, uma conseqüência igual diante da mesma causa, seria uma experiência frustrante, mas maravilhosa. 

Gostaria de acordar todos os dias sem ter a menor idéia de que dia será; imaginar que, visto que ontem era segunda feira, hoje deveria ser uma terça; mas em vez disso, por algum estranho desígnio do Incompreensível, hoje é domingo – de novo.

E assim posso ir ao parque - e todas as minhas obrigações são adiadas para o dia seguinte – que poderá ser uma sexta, mas sem garantia que o fim de semana virá em seguida.

A cultura da desordem, do caos, poderia ajudar-nos a enfrentar melhor o nosso destino.

A própria Morte – que é ilógica em tantos casos - tornar-se-ia tão incerta e aleatória que, escapando de todos os nossos cálculos, deixaria em paz alguns que estão mais próximos da porta e levaria outros,  afastados e escondidos no meio da multidão.          

A ilogicidade nos tornaria mais leves, menos comprometidos.

Sem saber o valor das moedas que temos no bolso, começaríamos a testar nossas improbabilidades.            

E nesse caos absoluto, seria mais fácil encontrar algum trapo imprevisto e inconseqüente, de felicidade e de paz


Autor: Romano Dazzi


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