Um raminho de miosótis



Um raminho de miosótis

 

Na mão, a caneta, na mesa, os tinteiros. Tinteiros com tintas, tinteiros com emoções. Essa cor... aquela emoção... É preciso dar o primeiro passo. Uma combinação haverá de  surgir naturalmente, dignificando a matéria do jeito que ela merece. Se não, será melhor recuar, e deixar tudo no velho baú das recordações, lacrado pelo tempo e acendrado pelo silêncio.

 

Era no Rio de Janeiro. Década de l950.  O bairro eu não digo. A rua, nem pensar. Apenas o número da casa, por imposição da forma, vai aqui  indicado: dezesseis.

 

Vá lá que seja. Era uma rua paralela à praia, uma rua estreita, por onde passavam bondes o dia todo. E tão perto passavam, que, da janela, se bem esticados os braços, dava para apertar as mãos às normalistas.

 

Todos esses escrúpulos explicam-se menos por ética ─ afinal nada escondem que possa melindrar aqueles que comigo protagonizaram  os acontecimentos ali vividos, ou sonhados (já faz tanto tempo...). Todos estes cuidados vão por conta de impedir que o visgo da história conspurque o que hoje pertence exclusivamente à saudade. 

 

Nada há,  insisto em dizer, que possa suscetibilizar os ausentes. Muito pelo contrário. O que fizemos, eles e eu, foi apenas dar passagem à vida, que jorrava abundantemente daquele manancial.

 

Deixem-me contar nos dedos: éramos oito rapazes acabados de entrar na casa dos vinte anos, em busca de estudos superiores, tão escassos no norte do país, de onde viéramos.

 

Sob o mesmo teto moravam ainda duas moças também nortistas, e uma terceira, mais madura, oriunda da Paraíba. Não eram elas estudantes. O que faziam no Rio nunca ficou plenamente esclarecido. Sei apenas que as nortistas, em plena juventude, gostavam de folgar, eram alegres e simpáticas.

 

Da paraibana acode-me lembrar que já completara vinte e cinco anos. Alta, magra, braços e pernas cabeludas, agasalhava a silhueta sob saias e vestidos indiferentes. Sua humanidade melhor se via no caráter magnânimo. Mag, assim chamada justamente por isso, encantava a todos com gestos desprendidos. A memória guardou dois deles. Eis o primeiro: era domingo, dia de ajantarado. Almoçávamos à volta da primeira mesa (a segunda era servida logo após, ali por uma hora da tarde). O prato principal disponibilizava  bolinhos lavoisier, assim entendidas as aglutinações  que aproveitavam as sobras dormidas na geladeira. Pois bem, Mag abriu mão de três dos seus seis lavoisiers, em favor de um colega, o mais alto, o mais musculoso e o mais faminto da turma. Vendo que o rapagão aceitou os bolinhos sem pestanejar, Mag alongou a generosidade, oferecendo-lhe um pouco de salada, assim como a sobremesa.

 

O segundo gesto aconteceu na noite de um grande show   no Maracanãzinho, uma noitada  imperdível, aonde todos acorreram, com exceção de mim e da viúva.

 

Viúva? Que viúva ?

 

Perdão, já explico, quero dizer, explico assim que concluir o relato do segundo gesto de Mag.

 

Teriam ido ao Maracanãzinho apenas treze hóspedes e permanecido em casa três, não fosse a generosa  intervenção de  Mag.

 

O caso foi que o rapagão, além de alto, musculoso e faminto, era também dissipador. Gastara prematuramente a mesada do mês e...

 

  Você não vai? – Mag  perguntou.

─ Não, estou liso – o rapagão  respondeu.

─ Bem, se Nerita não chegar até as oito, você fica com o ingresso dela.

 

Nerita era uma prima de Mag, de passagem pelo Rio, que afinal não compareceu.

 

Sucedeu então que, tal qual fizera com os bolinhos, Mag doou ao rapagão o ingresso da prima. A única diferença entre uma doação e outra foi que esta última valeu à doadora um beijo, o qual ela recebeu sem cor e retribuiu corada.

 

Agora, sim, podemos atualizar o cenário e o elenco.

 

Tudo isso se passava em uma casa de pensão, administrada por uma jovem e esbelta viúva de três meses, secundada por duas sobrinhas em flor, gentis e formosas. Duas outras moças muito simpáticas, uma delas um pouco estrábica  e notoriamente sensual apoiavam nos serviços domésticos.

 

Nova contagem nos dedos: dezesseis  pessoas sob o mesmo teto. Oito homens, oito mulheres, todos jovens e  saudáveis.

 

Como ficou dito, apenas a viúva e eu permanecemos em casa naquela noite.

 

O motivo da minha permanência foi o dever de traduzir do latim um poema de Catullo.  O motivo dela foi o recato da viuvez recente.

 

Motivos plausíveis, motivos razoáveis, sem dúvida, mas insuficientes para justificar os rumos transmorais que aquela noite acabou tomando. 

 

Com certeza impregnava o ar noturno a pulsação de um projeto  sensual, uma incontinência cósmica, algo que no Céu se talha, como  casamento e  mortalha.

 

Com efeito, por mais distraída que a  leitora possa estar, terá notado  no curso desta narrativa o sutil esboço de um esquema numérico, a começar pela coincidência do número dezesseis. Dezesseis lá fora, afixado na porta da casa. Dezesseis lá dentro, sob o teto, oito homens, oito mulheres,  ali assentados pela contingência   e dispostos   simetricamente, conforme o sexo de cada um.

 

Outros números reforçavam a ressonância oracular das simetrias.  Três bolinhos pra lá, três bolinhos pra cá; um beijo pra ela, um beijo pra ele; sete ingressos pra eles, sete ingressos pra elas. Oito pares, sete no Maracanãzinho,  apenas um em casa,  a viuva e eu.

 

Como ficou dito, a viúva o era de fresco e, por isso mesmo, a única do grupo habilitada, ex-officio,  a romper com a simetria da fortuna.

 

Todavia, lembrado que a viuvez trilha o caminho das flores,  inicialmente nos túmulos e depois nos cabelos, a viúva usava naquela noite um raminho de miosótis.

 

Vai senão quando, descendo eu as escadas em busca de um copo d’água, trocamos algumas palavras superficiais, e um olhar mergulhador. E ela, que folheava um álbum de fotografias, me viu arrancar dali e desfazer em dezesseis pedacinhos a foto do afortunado defunto, se é que a leitora amiga me perdoa essa adjetivação  insinuante dos encantos que eu começava a apropriar.

 

Como chorasse, como sorrisse, como fremisse, livre e soberana, rasguei-lhe as sobras do luto, e improvisei lencinhos, para aparar as lágrimas que já molhavam o meu peito.

 

Depois, conhecemos a delícia paradoxal da singularidade a dois, no corpo e na alma.

 

Depois de depois – que ironia! ─ mudei-me para um quartinho na Lapa, na Lapa boêmia,  reduto preferencial das simetrias improváveis.

 

Bem, a Lapa boêmia e a viúva estão mortas. Só a paixão subsiste.

 


Autor: Osorio de Vasconcellos


Artigos Relacionados


Água Fria E Doce

Avis Rara

Como Ganhar Almas

Novos Tempos

A Palavra-serva

A Dois

A Sina De Ser Mulher