O JOGO IRLANDÊS - O FANTÁSTICO REPARADOR DE FERIDAS



by Maria da Glória Stevam

Feche os olhos...

Imagine uma platéia relativamente cheia, composta por pessoas aparentemente interessadas, no caso, em assistir à peça "O Fantástico Reparador de Feridas". Imaginou? Muito bem. Agora imagine essa mesma platéia, cinco minutos após o início do espetáculo...

Se eu lhe contar, que após um curto espaço de tempo, todos os espectadores dormiram (exceto um rapaz de óculos e esguio, sentado à minha frente, e o autor deste texto), e que alguns inclusive roncaram, em alto e péssimo som, durante toda a apresentação, você acreditará em mim, se eu lhe disser que a peça é boa? Ou pior ainda, que é muito boa?

Como pode perceber, escrevo esta reflexão em primeira pessoa, pois devido ao que vivenciei no Centro Cultural de São Paulo, naquela sexta-feira, não posso dignar-me a discursar esperando a identificação da "massa"(o que já não acontece com a "LOBA" de Cristiane Torloni)... Mas, como andam dizendo por aí que a tal "unanimidade é burra", até fico, de certa forma, "feliz" por esse momento único (e apreensiva quanto a minha sanidade em tratando da tal "LOBA", mas essa já é uma outra história)... Não, definitivamente feliz não é a palavra certa... Gostaria sim, de ter compartilhado os sorrisos e apreensões com os meus amigos, e os demais, mas infelizmente, não foi possível. A minha pessoa e o rapaz esguio, da outra fileira, fomos solitários em nossas viagens através do jogo de palavras dos personagens.

Porém, mesmo que tivéssemos navegado, todos juntos, pelas cenas propostas pelos monólogos, o "nós" não seria ideal. Muito pelo contrário, o "nós" não existe quando se trata de revelar opiniões acerca de um mesmo tema, e isso fica muito evidente na peça (e na humanidade, quando o "nós" existiu acima do "eu", o perigo se não matou, esteve à espreita: um minuto, quer dizer, uma eternidade de silêncio pelo holocausto. E então surgiram os "BASTARDOS"... Porém, essa também, já é outra história). Por isso, assim como na obra de Brian Friel, permito-me exercitar o sempre "fantástico eu".

Exposta a situação da primeira pessoa do texto, vamos ao que realmente interessa, antes que você caia no sono, e comece a roncar também. Essa foi péssima, desculpe... É que ao escrever, em primeira pessoa, ganha-se um tanto de liberdade e perde-se um pouco o respeito, certo? Não, isso não deve ser verdade...Verdade?

Afinal, onde está a verdade quando se trata de falar em primeira pessoa, e principalmente, ao reconstruir o passado? Quem está com a razão? Qual das versões é a correta? Frank, Grace e Teddy... Em qual dos personagens devemos confiar? Qual possui a visão correta sobre tudo o que se passou?

Vamos ao jogo do irlandês: três peças sobre o tabuleiro. A primeira se apresenta, e acreditamos que conseguimos compreendê-la. Então a segunda aparece, e a partir de seus movimentos, passamos a compreender melhor sua antecedente. E quando tudo está quase se encaixando, a terceira surge, e nos oferece outra opção de entendimento, sobre as anteriores e si mesma.

Talvez, eu possa dizer que o texto de Brian Friel explora a inexistência da realidade como algo objetivo. A realidade seria uma oblíqua sobreposição de imagens, sons, cheiros e outras várias sensações, que resultam em uma composição cubista tridimensional (pode ser redundância dizer que uma obra cubista é tridimensional). Concordo com essa percepção. E é por esse motivo que prefiro obras, cujo conteúdo é expresso de forma fragmentada, à medida que se aproximam mais da experiência humana da realidade. Uma observação: essa idéia de sobreposição esta presente, muito antes dos atores entrarem em cena, com o confuso som das vozes sobrepostas.

Sei que o questionamento sobre o poder de reparar as feridas, é o fio condutor da peça. Mas, por razões desconhecidas do meu consciente, não me interessei por esse tema. Bem, talvez isso esteja ligado à minha falta de informação sobre o contexto histórico, em que foi desenvolvida a obra de Brian Friel... Eu estive mais preocupada com o jogo de memórias, como o ato de construir e desconstruir os indivíduos, a partir do que nos é relatado, e também à reflexão sobre o quanto omitimos, de nós mesmos, dados importantes de nossa caminhada, a fim de não tocar "nas feridas" não cicatrizadas.

Mencionando "cicatrizes" e "feridas", não poderia deixar de expressar minha profunda admiração pelo cão morto por insuficiência pulmonar. Não que eu tenha a pretensão de morrer da mesma forma, Deus me livre! Mas a idéia de um cão tocando gaita, em busca da perfeição me fez rir, e ao mesmo tempo me emocionar. Dentro do ridículo humano, que aí sim, nos envolve a todos, sem exceção, permito-me ir às lágrimas, imaginando aquele cachorro, cuja única ambição na vida, era encontrar as notas musicais. Saí do teatro questionando-me que tipo de cão eu sou (e se for possível uma associação abusrda, lembrei-me de "CÃES DE ALGUEL" de Tarantino).

O impacto a imagem, citada acima, levou-me a concluir o seguinte: depois de tantas interrogações, parênteses e reticências, o que me restou? O quadro composto pelo trio (voltemos ao jogo do irlandês), mais especificamente, um homem bêbado, e seus dois cães: um cão detentor de uma inteligência prática e patética, e o outro, burro, porém, fatalmente genial... E sem a pretensão de ter entendido alguma coisa, sugiro que a humanidade possa estar dividida entre, ser ou não ser, um desses cães.

Mas, peço desculpas, se o fiz acreditar que iria terminar o texto dessa forma, prefiro finalizar com um breve relato:

– No momento em que o personagem Teddy contava a história de seus animais domésticos, eu e o rapaz esguio (lembra-se dele?), ríamos em comunhão, alcançávamos verdadeiras gargalhadas, enquanto compartilhávamos da impressão de que os atores nos olhavam nos olhos, devido ao simples fato de o restante da platéia estar, com os mesmos, fechados. No entanto, algo de sobrenatural aconteceu ao final da apresentação...

Feche os olhos...

Imagine uma platéia relativamente cheia, composta por pessoas aparentemente desinteressadas, no caso, assistindo/dormindo (não sei como definir este estado) ao "O Fantástico Reparador de Feridas". Imaginou? Muito bem. Agora imagine essa mesma platéia, cinco segundos após o fim do espetáculo.

Se eu lhe contar, que todos estavam de pé, aplaudindo alucinadamente, com direito a: - Bravo!!! Você acreditaria em mim, se eu disser que o público não gostou do que viu? Ou pior ainda, do que não viu?


Autor: Maria da Glória Stevam


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