CLOACA - PERSONAGENS



by Maria da Glória Stevam 


 
O telefone toca, e o "conflito" se apresenta. Este é o início da peça CLOACA, que aborda o universo masculino, e principalmente, os efeitos da passagem do tempo sobre as perspectivas do ser humano.Texto de Maria Goos, e direção de Eduardo Tolentino (grupo Tapa).

Peter, Maarten, Tom e Jean são quatro homens muito diferentes, que na época da faculdade tornaram-se grandes amigos. E agora, se vêem diante de uma nova situação, onde suas respectivas personalidades, e as suas ações decorrentes, deverão fazê-los interferir, de forma drástica, um na vida do outro.

Ao atender ao telefone, Peter recebe a notícia de que deve prestar contas ao estado, devido ao fato de ter se apropriado de oito pinturas, antes esquecidas no porão da repartição pública, onde trabalha, cujo valor aumentou substancialmente. Então, surge Jean, um político prestes a ser nomeado ministro, pronto para se instalar no apartamento do antigo amigo, a fim de fugir de seus problemas com sua mulher. Em seguida, apresenta-se Tom, um advogado, recém saído de uma clinica de reabilitação, oferecendo-se para defender a causa de Peter. O quarteto é completo com a chegada de Maarten, um diretor de teatro, que além da amizade com aqueles homens, mantém relações sexuais com a filha de Jean. O quinto elemento da peça, é uma mulher, que para sustentar suas filhas, recorre à prostituição. Esta, é contratada para "animar" o aniversário do político, que em vez de consumar uma ardente noite de prazer, termina sendo embalado pela prostituta, como a uma criança desprotegida.

Acredito que o que há de interessante na peça, mais do que a história em si, é a construção das personagens, são as diferentes visões de mundo, constantemente em choque na peça, que nos levam ao riso. Quando a prostituta diz: "...eu não sou uma puta, eu sou uma mãe.Mas de um país fudido..."Aquela mulher, que a principio é feita somente de seios fartos e um belo quadril, se transforma diante dos nosso olhos, assim como se transformam todos os personagens, de acordo com as circunstâncias, e a passagem do tempo.

Peter é idealista, solitário, mas generoso e sensível, tem fé no ser humano, apresenta gestos delicadamente desenhados e conhece o próprio corpo. Às vezes, passa a impressão de estar constantemente constipado, como se estivesse segurando algo dentro de si, para não transbordar. Este personagem é assumidamente homossexual, e revela que só os garotos jovens e impetuosos lhe interessam. Ao falar, parece estar declamando poesia. No início, esta última característica causa certo estranhamento, mas com a evolução das cenas, nota-se que isso pode estar relacionado com sua visão romantizada da vida.

Maarten é boêmio, possui um andar vulgar e a fala arrastada de bêbado, tem a luxúria como anestésico. É um diretor de teatro que lança mão de metáforas, como quem entorna litros de cerveja, sem se dar conta, o que torna suas montagens superficiais. No entanto, talvez por fazer teatro, e estudar a alma humana, Maarten tenha sido, o único dentre os quatro "amigos", capaz de enfrentar o momento, em que era preciso revelar uma situação difícil, a um possível suicida (no caso Peter), e posteriormente, contemplar a morte do amigo como quem analisa uma pintura.

Tom é franco e visceral. Mas é também um homem que não soube lidar com a passagem da adolescência para a vida adulta, e esse ruído de transição o acompanha até hoje. A droga como um amortecedor, vai tecendo horas de alienação e provocando, obviamente, um pavor em lidar com a realidade. Por isso, apesar de seu grande coração, e real vontade de ajudar, ele foge, quando o assunto é sério. Os momentos de ruptura não lhes são fáceis.

Jean é o mais inseguro dos personagens, e muito vaidoso. É um político que vive tenso, com o corpo travado, e possui um medo mórbido da opinião alheia. Fantasia as manchetes que poderão ser escritas envolvendo seu nome. Sua preocupação, consigo mesmo, é tão exagerada, que não consegue se interessar pelas pessoas ao seu lado. Esparrama-se no sofá, deita-se sobre o tapete, instala-se feito um felino, que força um carinho, sem se importar com a vontade do dono. Porém, como acontece com todos os personagens de CLOACA, e na vida real, Jean tem seu lado bom, ele ama seus filhos (apesar de não se lembrar dos aniversários, e da ordem cronológica de nascimentos desses), e acaba conseguindo estabelecer um afeto, sincero, com a prostituta, ao revelar suas angústias e medos.

A peça tem movimentação e ritmo, prende a atenção. O cenário, e a iluminação funcionam bem para distinguir as diversas atmosferas, ex: o ambiente pode ser uma manhã fria, quando Jean, acorda Tom, dizendo que vai embora, ou uma noite quente, quando Peter celebra sua conquista, dançando dentro de seu hobby floral. Falando em figurino, esse realça as características dos personagens. Quando Tom entra em cena, com o cabelo emplastrado de gel, o cachecol enrolado no pescoço, de maneira sufocante, e com um terno que parece desproporcional, é possível imaginar que há algo de "errado" ali, é como se um leão, ou um urso, estivesse tentando ser domesticado.

Outro ponto interessante é o seguinte: no palco, os homens formam a maioria, mas suas inquietações, sobre o feminino, estão sempre presentes: Peter relata, com lirismo, o momento em que viu Cone, a mulher de Jean, após essa ter dado a luz. E Jean, com irritação, descreve-se como vítima, ao relatar as acusações, que lhe faz a sua mulher. Maarten fica desnorteado, impotente, diante da prostituta que debocha do tamanho do seu órgão sexual. Tom, apesar de estar sob o efeito de drogas, em um determinado momento, discuti com Jean, em favor de Cone, afirmando que esta esperava uma atitude mais decidida de sua parte.

Entendo que a peça fala de amizade, egoísmo e da fragilidade humana, sem a pretensão de estabelecer uma moral rígida, apontando o caminho a ser seguido. E sim, abre um debate sobre os nossos valores, as nossas escolhas, e até que ponto a sucessão de experiências, que a vida impõe, podem nos modificar. Assim, a reunião desses quatro homens, tratando de seus problemas pessoais e profissionais, visitados pelo olhar feminino, resulta em diálogos muito interessantes em CLOACA, cujo humor ácido, nos leva ao riso, mas não inibe a nossa reflexão, muito pelo contrário.


Autor: Maria da Glória Stevam


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