Andando na linha



A atmosfera naquele quarto era terrível. Cigarros jaziam no chão, garrafas de uísque e cerveja disputavam o espaço com roupas sujas e restos de lanches. Os ratos não tardariam a chegar, como sempre chegaram...

Jonas nasceu prematuro no ano de 1968. Era um período conturbado politicamente, mas menos morto culturalmente do que os tempos de hoje. “Tínhamos um inimigo concreto contra o qual lutar”, dizia o ex-idealista Jonas. Dos sonhos e utopias, restavam apenas a tatuagem desbotada do símbolo do anarquismo e os posters surrados de Che, Proudhon, Bakunin, Malatesta e do Black Block. O caminho para ele sempre foi tortuoso, de forma que se acostumou a nunca andar na linha. Adorava ouvir música clássica no máximo volume fumando seu baseado e tomando cerveja gelada. Gostava muito de Johnny Cash, especialmente de Walk the line. “Because, you are mine, I walk the line”. Era a sua música, a música que embalou seus primeiros encontros com Geórgia no final dos anos 80. “Eu lembro como se fosse hoje. Tocava Bob Dylan, não lembro certo o som, e ela balançava seu vestido no ritmo do som. Cheguei timidamente e lhe ofereci uma cerveja que foi recusada. Mulher difícil, é dessas que eu gosto, pensei”, confidenciava aos amigos, entre as baforadas.

Dia 28 março de 1987

A ditadura militar já havia terminado. O Brasil vivia uma nova era e logo seriam convocadas eleições para a presidência da república. Eleição que elegeria um dos maiores crápulas que este país já teve. Apesar da ditadura ter, oficialmente, terminado, a polícia continuava sua “dura” nas ruas. Mais de dois jovens reunidos era considerado motim. Nesse dia, Jonas ia para uma festa de formatura de um amigo seu. Michel e Roberto, seus colegas da faculdade de Música, chegaram pontualmente às 20 horas. Eles fariam o aquecimento ali, bebendo cerveja e fumando a ótima maconha que Michel sempre conseguia com um amigo seu paraguaio que costumava plantar em casa. Os pais de Jonas sempre foram liberais nesse sentido. Eram ex-hippies. Foi deles que o rapaz herdou o idealismo e sua fome de viver. Devidamente chapados, os três partem para a festa.
No caminho, uma barreira policial estava ocupada em espancar dois negrinhos mirrados no chão e por isso não se ateram àqueles três jovens de classe média e “emaconhados”, como diriam os antigos. “Bah cara, que horror . Olha o que estão fazendo esses covardes! Vamos denunciar”, disse Michel. Era o mais afoito da turma. Os outros dois, visto o absurdo da frase, riram. Afinal, como denunciar o Poder? Para quem? Além do mais, Michel, o porralouca estava com シ de maconha no bolso do paletó. Assim continuaram no caminho. Passando por um buteco, Jonas quis pegar mais uma cerveja para ir tomando. No local, já subúrbio da cidade, havia toda a espécie de excrementos sociais, prostitutas, pederastas, velhos bêbados e mendigos. “Hey, me dá uma Polar”. A garçonete, uma gorda de sobrancelhas grossas, entregou o pedido. O três seguiram.
Mais uma barreira policial. “Porra, os homens estão afim de trabalho hoje, hein?”, disse Roberto. “Pois, parece que sim”, retrucou Jonas amedrontado com a situação. Dessa vez não haviam negrinhos mirrados para salvá-los do atraque. Michel mexia nos bolsos enquanto iam em direção aos dois policiais que os fitavam diretamente. “Moleques, o que fazem na rua essa hora?” . Apesar de não esconder o nervosismo foi Michel quem respondeu à inquisição: “Estamos indo para uma festa de formatura”, disse com um sorriso nervoso. “Pois, apressem-se, as ruas estão cheias de marginais afoitos para roubar e praticar violência com jovens como vocês”. Ufa, estavam a salvo mais uma vez. O preconceito os havia salvo mais uma vez. “Ah cara, tudo bem que foi bom para nós, mas tu sabes bem por que eles não nos revistaram, né?”, questionou Michel. Todos fizeram sim com a cabeça. Finalmente chegaram no local onde seria a festa. Apesar de ser no subúrbio da cidade, a casa era grande e estilosa. Tinha dois andares e só se ouviam gritos e muito rock n roll. A noite prometia.
Os três entraram na casa cheio de banca e distribuindo “ois” e olhares pretensamente sensuais para as garotas. Chegaram no formando, um garoto que nenhum dos três suportava, mas tinha amigas muito bonitas, tinha bom gosto musical e dava festas regadas a muita cerveja e uísque 12 anos. Cumprimentaram Aldo rapidamente e foram em direção a um canto. A vitrola arrotava Little Richard. Um grupo de garotas dançava provocante logo à frente. Os três as fitavam. “Porra cara, estou apaixonado, eu acho”. “Ah, eu estou é com pau duro”. “Sei lá, não achei nenhuma delas lá essas coisas”,. O terceiro era o efeminado Roberto. Todos já sabiam da sua fama de fazer programas com velhas e velhos em troca de drogas. Jogava nos dois times, mas tinha um lado gay mais forte, embora ninguém quisesse admitir. De qualquer forma, a pureza daquela amizade, construída desde os tempos de colégio, era mais forte do que qualquer preconceito. Somente se olharam e riram. Michel foi buscar mais cerveja na geladeira. Já trouxe seis de uma levada só para não ter que fazer todo o trânsito novamente. “Cara, só tem garotas lindas nesse lugar. Que paraíso!”, disse satisfeito. Abriram as latas e tomaram. Jonas já não tirava uma das meninas do seu campo de visão. Ela saia, ia buscar refrigerante, conversava com Aldo, ia no banheiro, sentava, levantava e lá estava o olhar apaixonado de Jonas. Foi inexplicável. Duas cervejas depois, Jonas exclamou: “cara, eu preciso fumar um baseado. Vou chegar naquela de vestido azul”. Era Geórgia.
Jonas pegou o baseado com Michel e foi em direção ao banheiro passando, propositadamente, por Geórgia e a encostando no ombro. Ele estremeceu. Simplesmente inexplicável! Está certo que Jonas nunca foi um cara de transar muitas mulheres, pois era introvertido demais, apesar de não ser feio. Era alto e loiro, tinha um físico privilegiado pelos 10 anos de natação. Naquela altura, no auge dos seus 19 anos, tinha trepado com apenas sete mulheres, sendo duas ex-namoradas e o restante prostitutas. Uma coisa era certa, esse frio no estômago, que corria pela espinha, ele nunca havia sentido.
Trancou-se no banheiro e acendeu o baseado. O banheiro já fedia a mijo. Lembrava uma rodoviária. A estratégia era fumar aquele baseado o mais rápido possível. Foi o que fez, apesar de que, quando ficava chapado dificilmente conseguir discernir corretamente o passar do tempo. Foi demorado para ele, mas rápido para vocês, leitores. “Puta merda, e se estão sentindo o cheiro? E se estão todos na porta esperando eu sair para me darem o flagrante? E se...”.
Saiu do banheiro e foi na geladeira pegar mais cervejas. Não queria se juntar com os dois amigos, queria apenas ficar ali, tomando cerveja e criando coragem para chegar em Geórgia. Quase uma hora e depois de ter visto ela dar fora na metade dos caras do recinto, Jonas resolveu chegar. O que poderia receber? Um não? A vida já lhe dera vários e ele estava ali, forte. “Olá, quer uma cerveja? Legal esse som, né?”. Na vitrola rodava um Willie Nelson, provavelmente lá dos primórdios, que pouco conhecia apesar de ser um adorador do folk norte-americano. Geórgia, sem deixar de se remexer e mal lhe olhando, disse secamente: “Não”. Jonas virou-se e foi ao encontro dos amigos. “Vamos embora pessoal, acho que essa festa acabou”, disse. O seu ar autoritário raramente era contestado pelos amigos, que o seguiram.
No caminho para casa, Jonas não conseguia mais interagir com seus interlocutores inevitavelmente bêbados, chapados e chatos. Finalmente em casa, conseguiu parar para pensar. Não poderia deixar escapar aquela garota, que despertou-lhe um sentimento tão inesperado quanto estranho. Mas Jonas sabia-se um covarde quando o assunto era esse. “Eu preciso do telefone dela, algum contato”, pensou. Maquinando a madrugada toda, lembrou de perguntar para o Aldo, se ele tinha o contato da menina. Ligou imediatamente. “Aldo, por um acaso, tens o telefone daquela menina, a Geórgia?”. “Está afim de comê-la, né? Mas esquece, a cidade inteira quer, mas acho que ela é frígida ou machorra mesmo. Todas as amigas já deram e dela não se tem notícia. A última que lembro é que um cara resolveu espalhar mentiras sobre ter bolinado ela e ela arrebentou a cara do coitado com um tijolo”. “Eu não quero comê-la, cara. Eu quero amá-la de verdade também”. Aquele papo piegas levou Aldo a chorar de tanto rir. Quando parou o espetáculo fiasquento, Jonas voltou a questionar: “E aí, tens o telefone ou não?”. Aldo conseguiu notar que o negócio estava ficando sério, apesar de toda sua debilidade mental que geralmente o tirava qualquer capacidade de discernimento. Era o legítimo chato. “Toma. Anota aí”.


29 de março de 1987

Agora o próximo passo era ter coragem e ligar. Haja uísque, haja maconha, haja coragem diluída em anfetaminas das mais variadas cores. O dia amanheceu igual a todos. Sol e pássaros cantando. Não, não, o sol não cantava. Jonas queria ficar na cama, mas o trabalho lhe chamava. Era escravo de uma loja de departamentos. Ficava responsável pela parte dos esportes, graças aos seus conhecimentos no assunto. Aquele dia todo ficou desligado. Só conseguia pensar em Geórgia e em qual abordagem faria quando ligasse para ela. A decisão estava tomada.
“Porra Jonas! Olha o cliente ali, vai atender! Em que mundo tu estás?”, esbravejou o gerente ao ver uma senhora de meia-idade que, provavelmente iria comprar um presente para seu filho, marido ou amante mais jovem. Foi atendê-la e era isso mesmo. “Quero um tênis para corrida. Meu namorado (ruborizou a face quando falou isso) adora correr na avenida principal”. Ofereci o mais caro, que me daria uma comissão melhor. Ela levou. Michel apareceu na loja logo depois do meu lanche. Estava eufórico, provavelmente bêbado ou ligado com alguma anfetamina, a droga do momento. “O que tu queres cara? Estou trabalhando!”. Michel mexia freneticamente no bolso e denunciava o nervosismo através do seu cacoete, o olho piscando. Ele não respondeu nada. “O que houve?”, questionou Jonas. Ele parou de se mexer, olhou para os dois lados e chamou Jonas em um canto da loja. “Cara, a polícia está na minha cola. Fiquei sabendo que estiveram lá em casa quando não tinha ninguém. Um vizinho me contou”. A situação dele era complicada, mas não muito mais que a minha. Ambos tínhamos medo. Maldito medo que nos torna humanos, demasiadamente humanos. “Cara, fica lá em casa uns dias. Meus pais não reclamarão, desde que tu fiques o tempo todo no meu quarto e não coma os salgados de soja deles”. “Obrigado, Alemão. Sabia que não me deixarias na mão”. Dizendo isso, virou as costas e foi embora com aquela ginga de malandro que só ele tinha. Parecia um dançarino de street dance, apesar de dizer odiar Hip Hop.
Chegando em casa, meus pais já haviam chegado do trabalho e estavam bebendo no sofá e vendo pela milésima vez o Ponto de Mutação, de Franz Capra. Peguei uma cerveja e fui para o quarto. “O que eu falo? Preciso achar um gancho... ora ora, foda-se vou convidá-la para ir no cinema. O que está dando no cinema? Porra, só tem lixo nessa cidade... Shows? Bom, vou ligar para o Júlio”. Júlio tinha uma banda de rock n roll clássico que tocava só covers de Jerry Lee Lewis até Raul Seixas e Camisa de Vênus. O nome de sua banda era Rollover. Ele sabia tudo o que estava acontecendo de bom na cidade, o que não era muito. “Alemão, final de semana que vem tocará uma banda chamada Caralho Afoito, no Trashes. Eles tocam muito. São recém chegados de Vacaria”. Buenas, o programa já estava confirmado. Faltava a coragem.


Licença para encarnar no personagem: sabe, algumas mulheres realmente assustam, e são dessas, justamente, as que mais gosto. Elas querem a nossa alma. O único medo, e é por isso que me poupo, é de que, uma vez com a minha pobre alma, elas não a cuidem direito. Trepar por trepar é muito bom, sem envolvimento, mas quando se leva a chamada “chave de buceta”, meu irmão, se está fudido. Eu tinha medo.


Dia 2 de abril de 1987

“Boa tarde, eu posso falar com a Geórgia?”
" É ela mesma. Quem está falando”
“ Jonas. Te conheci na festa do Adroaldo ontem. Não sei é se tu me conheceu”
“ Não sei. Tanta gente ontem. Tanta gente chata que prefiro nem lembrar”
“ Eu não sou chato. Te ofereci uma cerveja e você não quis. Virei as costas e fui embora”
“ É, ontem eu estava tomando remédio e não podia beber. Mas lembro de um cara que não foi tão insistente. Parabéns”

Jonas respirou fundo. Ela estava dando abertura e ele ia ficando cada vez menos nervoso.

“Mas eaí, no próximo final de semana tem um show muito legal da uma banda chamada Caralho Afoito. Eles tocam um rock n roll de primeira. Está afim de ir?”
“Que tipo de rock n roll?”
“Ah, pelo que me disseram tocam folk também, tipo Willie Nelson, Johnny Cash, Joan Baez e Bob Dylan, Tem até uma garota no vocal”
“Pô, legal. Adoro Cash. Vou certo, só não sei onde tu moras. Tu sabe onde moro? Pode me pegar aqui? Final de semana já vou estar bebendo e tudo pode ficar mais divertido”.


Dia 9 de abril

Jonas nem podia acreditar. Geórgia parecia outra pessoa. Receptiva, animada. Mal a conhecia e já sentia-se preso à sua alma. Meu deus! Isso tinha tudo para dar merda! A semana custou a passar. Trabalho, faculdade, os mesmos papos idiotas, os mesmos colegas, os mesmos amigos sequelados, as mesmas drogas... tudo igual. E só uma coisa no pensamento: aquele anjo. Geórgia tinha mais ou menos minha altura, era alta para uma garota, olhos amendoados, cabelo bem preto e liso, tinha traços indígenas. Um sinal de que, provavelmente, Jonas estava ficando apaixonado era ele ter reparado nisso e não na bunda ou nas coxas da moçoila. Chegou o final de semana. Ele não sabia direito onde era aquele endereço e ligou para o Adroaldo. “Cara, onde fica a rua Shunman?”. “Velho, tu queres comer a Geórgia, né? Já disse para tu tirares isso da cabeça, porra! Ela não dá para ninguém!” “Não te perguntei isso seu saco de merda. Eu quero saber onde é essa merda de rua”. O chato do Adroaldo falou.
Depois de quase uma hora de caminhada, Jonas chega na frente de uma casa simples, de alvenaria. Sua mão estava suando. Toca a campainha e quem abre é Geórgia. “Oi, você que é o Jonas? Bom, me lembro do seu rosto”. Po, isso já era um bom sinal. Quer dizer, se a lembrança foi positiva. Ele poderia ser feio demais, ou escroto demais... ela poderia lembrar também do seu rosto em alguma foto que tenha visto na casa do Adroaldo, o que não é lá muito positivo. Jonas tinha vergonha de ter alguma espécie de ligação com aquele debilitado mental. Ficou mudo por uns instantes. Ela parecia mais linda do que o seu pensamento pôde construir. Irradiava beleza. “Entre”. Aí ela se virou de costas e, pela primeira vez, ele reparou no balanço da sua bunda. Estava completamente apaixonado! Conversaram um pouco sobre amenidades, ela buscou algumas cervejas e foram rumo à festa.
Quando chegaram já estava rolando o som e era, justamente, Ring of Fire, do Johnny Cash. Uma garota esguia e bela fazia as vezes de June Carter. “Esse som é muito bom, um dos melhores do Cash. Não achas?”, questionou a animada Geórgia. “Gosto de todos, mas meu preferido é Walk the line”. Ela começou a dançar e a provocar com aquele olhar malicioso. Jonas foi buscar mais cervejas. Ficou um tempo no bar, reparando-a de longe. Será que teria essa sorte? Mas Geórgia é do tipo de mulher que não pode ficar um segundo sozinha. Logo chegou um armário nela. Era um playboy babaca que, pelo pouco que conhecia dela, logo iria ser dispensado. Mas ele insistiu. Ele notou que ela estava desconfortada com a situação e começou a ficar nervoso. Tinha que tomar uma atitude. Aí, de uma maneira brusca, ele pegou no braço dela e a tentou beijar. Porra, Jonas tomou um golaço da cerveja e já foi tirar satisfações com o armário que tinha o dobro do seu tamanho. ”Olha aqui seu...” não terminou a frase e estava no chão. O murro foi tão forte que parecia ter esfacelado seu nariz. A raiva sempre foi o forte de Jonas, que nunca se deu muito bem com os amores da vida. A raiva o movia e estava suficientemente abastecido para derrubar três daqueles armários. Quando conseguiu se reestabelecer e viu o gigante beijando Geórgia a força levantou já com uma garrafa de cerveja na mão. A quebrou na mesa e sentou na cabeça do filhodaputa que caiu como o Wall Trade Center. No chão, Jonas ainda pegou a garrafa que já tinha virado uma faca e a empurrou na barriga do armário a virando lentamente. De repente cessaram as resistências e os gritos, que antes eram de euforia, se transformaram em gritos de pavor. O homem começou a regurgitar sangue. Era um sangue denso, desses que habitam os órgãos mais profundos e vitais de um ser. Era lindo. Jonas enfiou mais a faca artesanal e começou a esmurrar a cara do valentão até ela se transformar em um purê de sangue e miolos. Tudo eram gritos. A polícia chegou. Geórgia olhava aterrorizada todo aquele pavor e não conseguia falar. Seu olhar, porém, transmitia uma tranquilidade que poucas vezes fora sentida por Jonas.


Dia 10 de abril

Na cadeia, Jonas foi jogado numa cela junto de outros presos de “menor periculosidade”, como políticos corruptos e estelionatários de todos os tipos. Eles não enfiariam uma faca na barriga de Jonas, pelo menos não materialmente falando.


Dia 11 de abril

Depois de uma noite mal dormida, no chão e com um filhodaputa roncando como uma retroescavadeira do lado, Jonas teve um encontro com seu advogado. Seus pais viriam logo em seguida. O advogado era um jovem executivo, desses que aparecem em capas de revistas de fofocas com modelos. Um sujeitozinho bem arrogante, com pinta de galã mexicano, com aquele bigodinho de carroceiro. Ele já queria ser “amigo” e todos sabem como são as amizades com advogados. “Cara, você é violento. Poderia ter matado aquele cara, embora ache que você o tenha feito. É uma questão de tempo. Ele está em coma induzido no hospital municipal. Você realmente fez um estrago danado no estômago dele, a informação médica extra-oficial é de que vazou comida por tudo e ele está com uma hemorragia forte”. “Tá, e daí? Se ele não morrer, fico menos tempo com esses idiotas aqui na cela? Tu não tens noção de como ronca aquele dali...”, disse Jonas, apontando para um dos presos. “Eu tenho sim, já defendi ele. Ele tem aquela porra de apneia do sono e come como um porco”. “Foda-se... quando eu saio daqui? O cara vai morrer ou não? Quais as chances?”. “Olha, tenho uma boa notícia. Ele estava fichado como traficante foragido, então tanto faz, você acabou fazendo um favor para a polícia. É até melhor que morra. Quanto ao seu caso, acho que logo consigo te tirar daqui. Seus pais virão falar contigo sobre isso. Se importa se eu participar do encontro? Quero acertar os honorários com eles. Trata-se de uma causa ganha. A propósito, na cena do crime tinha uma moça, Jeania...” “Geórgia?” “Isso mesmo. Ela estava chorando muito, em estado de choque. Daí perguntaram para ela se tu eras conhecido. Disse que sim, que você salvou ela daquele brutamontes”. É foi mais ou menos isso. Onde ela está?”.
Toca um sinal. Seus pais haviam chegado. Com semblante abatido sua mãe foi a primeira a falar. “Jonas, por que tu fizeste isso? Já não falamos, milhões de vezes, que a violência não é um meio de resolver as coisas?”, e desatou a chorar. Seu pai, mais duro, mas com o mesmo espírito hippie de não agressão e essa cretinice cristã toda, segurou a mão de sua mãe e disse. “Pois é, eu não sei onde erramos com esse garoto”. Jonas só os olhava. Até que seu advogado interrompeu aquele silêncio constrangedor. “Ele sairá dessa fácil, a vítima era um foragido da justiça”. “Ah, é? Pelo que?”, questionou o pai. “Tráfico de drogas”. “Porra, isso nem deveria ser crime”, resmungou o pai. “Mas estou aliviado. Pelo menos a injustiça da Justiça vai tirar o meu filho desse antro de lixo humano”, completou. Jonas continuava olhando. Os honorários custariam para seus pais mais de R$ 1 mil, o que não é muito. Seus progenitores eram ex-hippies bem sucedidos e poderiam arcar com os custos sem maiores problemas. Soou um sinal. O horário de visita tinha terminado.


Dia 12 de abril

No outro dia, é acordado por um dos policiais. “Esteja livre”, disse, abrindo a cela. O primeiro objetivo de Jonas estando “livre” era ir ao encontro de Geórgia onde ela estivesse. Passou na casa dela e foi muito mal recebido. Seus pais, com medo de que ela se relacionasse com um criminoso, nem abriram a porta. “Ela não está. Vá embora”, gritou uma voz cansada. Deveria ser o pai.
Chegou em casa, cansado e chateado pela missão frustrada e, sem olhar na cara de seus pais que fumavam um baseado no sofá, dirigiu-se ao quarto. No outro dia, quem o procurou foi ela. Ele já estava devidamente chapado, quando ela bateu na porta do quarto. “Ge...Geórgia, como você está?”, disse nervoso. Seu coração pulsava. A maconha fazia um efeito contrário, parecia que seu coração ia saltar pela boca a qualquer momento. “Estou bem, bem nervosa. E tu?”. “Não dá para notar?', disse já meio mal humorado pela pergunta ridícula. “Eu vim te pedir desculpas e agradecer por teres me livrado daquele merda. Me dá um pega desse baseado!”. Jonas, que nem sabia que ela fumava, passou a baga. Já estava no fim. Ela prensou e disse. “Po, esse é do bom”. “É sim, um amigo meu consegue, plantada, bem natural, sem esses lixos químicos todos e bosta de cavalo”.
Levantou da cama e colocou um som para tentar se acalmar. Johnny Cash. Foi essa a trilha sonora que embalou o primeiro beijo, aquilo que o queimou e o matou desde o princípio. Uma centelha, uma faísca de fogo, que logo alastrou-se pelo seu coração cansado de apanhar. Ela se aproximou dele e, sem dizer nada, deu-lhe um beijo. Aquilo não era um beijo de agradecimento. Ela veio com tudo e logo estavam se despindo. Jonas começou a passar a mão nos seus peitos e foi descendo até chegar na sua, já úmida, buceta. Aquilo leva os dois para outro mundo, algo que transcende a matéria, inexplicável à luz da racionalidade humana. Ela o travou. “Chega, chega”. Nervosa colocou novamente sua blusa e caminhou para a porta. “Hey, que espécie de maluca tu és?”, resmungou Jonas, com o pau duro e uma dor imensa guardada nas calças. “Não vai ser assim”. Bateu a porta e foi embora. “Ah, que maluca. Foda-se”, pensou Jonas sem saber que quem estava “fodido” era ele.
Geórgia não saia de sua cabeça. Ligou para ela algumas vezes, mas sempre seu pai atendia e ele desligava. Sabia que seria impossível conseguir isso por meios diplomáticos... Bem mais tarde, naquela mesma noite, ele conseguiu falar com ela. “Geórgia, eu te amo”. “Para com isso seu maluco. Você só quer me comer, é mais um idiota, só isso. Eu não preciso de mais idiotas na minha vida”. Ela estava amargurada. Mas porra, quem tem a culpa? Todos precisam pagar, pelo crime de alguns? Se for assim, ela será uma serial killer em breve. O pensamento tinha sentido. “Não é isso. Quando tu saiu, eu pensei foda-se. Mas não! Tu não é como as outras garotas. Eu quero te ver novamente, nem que seja só para te beijar, quero ser um só contigo de qualquer forma. Não precisa ser sexual se não quiseres. Eu só quero te sentir do meu lado”. A declaração sincera do fundo daquele “coração de pedra”, como foi designado certa vez na sua juventude por um padre quando se revelou ateu, teve efeito. Alguns instantes de silêncio ao telefone e Geórgia disparou. “Me encontre daqui 20 minutos na frente na esquina da rua da minha casa. Leve cervejas e um bom baseado”. E assim se fez. No encontro, nem se falaram. Jonas já chegou a beijando de forma intensa. As cervejas caíram no chão e quebraram. Nada os impedia mais. Eram um. O clima foi esquentando demais para uma rua familiar e Jonas teve que dizer, cheio de receio: “Vamos para o motel?”. O convite foi aceito no ato. Chegando lá, uma explosão. Mal abriram a porta e estavam nus rolando pelo chão. Não dava tempo de chegar na cama. Com as mãos ele fazia ela gozar freneticamente. Era gritos de prazer que foram retribuídos. Ela pegou seu pau, enrijecido como uma pedra, e chupou. Chupou intensamente. “Para, vou gozar e tirou”, virando-a de forma que pudesse ver seu rosto e beijá-la. Penetrou fácil. Apesar de apertadinha, como tinha que ser, estava úmida o suficiente para facilitar os movimentos. O suor dos dois se misturava e os gritos de prazer puderam varrer a sujeira da noite gelada daquele dia inesquecível.



13 de abril de 1987

A ressaca era insuportável, apenas abatida por um sentimento intenso e inédito para Jonas. Foi acordado as 9 da manhã por batidas fortes na porta. Do seu lado, dormia, como uma deusa, Geórgia. Suas curvas marcavam o lençol. Era a imagem imaculada de uma santa que seria, por toda sua vida, a sua sepultura e essência existencial. De um pulo, levantou a foi atender a porta. Os barulhos acordam os anjos do seu sono tranquilo. Se pudesse fazer algo para que nunca mais sofresse, o faria. A vontade era de protegê-la, como um urso, de todas as maldades do mundo.
Era um telefonena. Sua mãe entrega o aparelho sem dizer nada. “Jonas? Aqui é o seu advogado. O cara morreu. Tu foste intimado a comparecer a uma audiência, mas é só pro-forma. Eu já acertei com o juiz. Será no dia 20, às 8 horas. Esteja meia hora antes no fórum para conversarmos e acertarmos os detalhes. “Ok. Tchau”. Ah, foda-se. Se jogou na cama ao lado de seu mais novo porto de segurança, nada poderia o abalar. De repente Geórgia acordou. Pensou de como era suave até nisso. “Tu disseste alguma coisa?”. “O advogado me ligou. Terei que estar dia 20 no fórum, o cara morreu, mas parece que a barra está limpa, ele era traficante”. “Menos mal. Ainda tem aquela ponta de ontem?”. “Sim, pega ali, do lado da TV”. Ela pegou a fumou o restante. Olhando para ela, tapada pela lençol até a cintura e prensando o baseado que Jonas teve uma impressão estranha. O mundo estava acabando.


Dia 20 de abril

Às 7h30 min Jonas já estava na frente do fórum, conforme o combinado. Mal dormira aquela noite, era sexo e sexo. Seu pau estava pulsando sangue ainda, o sangue apaixonado por Geórgia. “Jonas, tudo bem? Vamos entrando”. Era o seu advogado. Sem dizer nada ele se deixou guiar. Lá ouviu por alguns minutos o discurso moralista do juiz que resolveu o multar em mais R$ 3,5 mil. Ah, agora a moral tem até preço. Novos tempos! Jonas nem queria saber daquilo, queria somente ir para casa e encontrar Geórgia, fumar, beber e trepar. Era o resumo perfeito da existência, enfim tinha encontrado o que sempre quis. Aquilo era amor? Camus disse, em certa feita, que amor é a vontade de envelhecer junto. Ele tinha, tinha vontade de mais do que isso, queria morrer junto, estar ligado para sempre, com as bactérias oriundas de suas respectivas putrefações trepando e refundando o amor pela eternidade. Algo que só os anjos de carne podem conseguir. Estava feliz como nunca até que os seus pais começaram a pressionar para que voltasse para faculdade, que havia trancado quando preso, e arrumasse um emprego, nem que fosse de meio turno, como estagiário em alguma máquina de moer gente.



Meses depois

Fez de conta procurar algumas coisas, até que um dia seu pai chegou com a novidade. “Consegui um emprego pra ti no escritório do Dr. Níveo. Vais fazer a parte administrativa. Nada a ver com a tua área, mas vais garantir uma grana e parar de fumar maconha e trepar o dia todo”, Ah, viver era um pecado para eles. Mas Jonas compreendia, precisava do seu sustento, essa coisa toda. E era aquele, “meu filho, o que vais fazer quando faltarmos?” de mamãe, e o “vai trabalhar vagabundo” do papai que estava mais para um fascista do que ex-hippie. Mas ele os entendia. Agora era aula, estágio e Geórgia. O tempo foi afastando os dois. Mas todos os finais de semana, quando se encontravam, era uma explosão. Tremia as estruturas metafísicas do planeta. Era um turbilhão de energia.
Certo dia, Júlio o ligou o convidando para fazer parte da sua banda. Agora a Rollover teria que ter uma pegada mais hardcore, mas continuaria com a essência rock n roll. Não foi difícil de Júlio aceitar a condição, afinal de contas Jonas era o melhor guitarrista da cidade. Mais uma atribuição. Geórgia foi em alguns ensaios até que foi largando de mão. Os encontros foram ficando cada vez mais esporádicos. A banda tinha tudo para fazer sucesso, menos alguém em sã consciência para pensar em gravar alguma coisa decente. Eram shows, drogas e mulheres. Não necessitava mais nada.
Jonas, que largara de vez a faculdade quando entrou para a banda, estava odiando seu trabalho e conseguiu forçar sua demissão chamando seu chefe de lambedor de coturno, quando este lhe pediu para elaborar um relatório sobre seus clientes e ele notou que o respeitável doutor, amigo de seu pai ex-hippie, defendera os generais durante a ditadura militar. Conseguiu. Estava desempregado e de volta para o seu mundo, seu quarto, suas drogas, seus sons. Mas sem Geórgia. Os shows continuavam a toda. Até que uma gravadora de médio porte resolveu os agenciar. Existiu certa resistência no começo, porque achavam que teriam que mudar o estilo e parar de beber e usar drogas, mas não foi nada disso. Esse era o objetivo. Dizia-se que o grande chefe da gravadora, um gordo com nariz de porco, queria algo “original” que fosse uma espécie de “pós-punk”. Pois bem, aquele rock primata com hardcore agora tinha um rótulo. Batizados por um porco. Os shows se intensificaram e finalmente a banda gravou o primeiro compacto. O nome era “P.I.G”, em homenagem ao grande chefe. Lógico que ele não sabia e continuava bancando a cocaína e o haxixe dos integrantes, além das mulheres que eram consequência de seus árduos trabalhos. Turnês começaram a ser feitas. Geórgia queria ir junto, mas não era permitido.
Os encontros foram acabando e o relacionamento esfriando. Mas cada garota nova, no ônibus, no camarim, nos banheiros sujos das pocilgas em que tocavam, lembrava Geórgia. Era o seu rosto que via na maioria e, quando não via, simplesmente brochava e começa a chorar como criança. As garotas riam e levantavam as calças. Ninguém nunca o perguntava o por quê daquilo, de forma que começou a ficar com fama de “o brocha de banda”. Muitos shows e sessões de junkiagens depois, Jonas resolve acabar com tudo e procurar Geórgia. A banda estava prestes à embarcar para uma turnê na América do Sul, o que revoltou os outros integrantes da banda, principalmente Júlio, que foi quem o indicou. “Porra, seu fracote. Vai mesmo para o colo da tua princesinha. Nasceste mais para bolero do que para rock n roll!”. Outro disse: “tomara que ela já esteja com outro ou tenha te corneado tanto que tu nem passe mais nas portas”. Caiam na gargalhada. Jonas esboçou reação, mas achou melhor não correr o risco de levar mais uma morte nos ombros. Era muito peso para pouca consistência emocional.


Dias de 1999

Jonas havia voltado e terminado seu curso na faculdade. Lógico que não exerceria aquilo jamais. Música? Só para dizer que tinha a porra do diploma e para seus pais pararem de o pentelhar. Mas já estava trabalhando como atendente em uma loja para adolescentes. Como disse antes, Jonas era privilegiado nesse quesito. Tinha boa aparência e uma magreza natural que não exigia grandes exercícios apesar de, nos últimos meses, estar frequentando uma academia. A ideia era largar de vez as drogas, inclusive o álcool. Nem ouviu mais falar da sua banda. Com 31 anos era hora de tomar um rumo na vida. Conseguiu alugar um apartamento no subúrbio da cidade e o mobiliou com a grana que havia juntando com as turnês. Algumas garotas passaram por sua vida. Mas nada tirava Geórgia de seu pensamento. Nunca mais a viu ou ouviu a pronúncia do nome dela. A tarefa ficava cada dia mais difícil. Largar as drogas sem um porto seguro? Seria deveras arriscado até para um maluco como ele.

Num sábado de 1999

Fazia tempo que Jonas não ia num show de rock n roll que não fosse o da sua ex-banda. Naquele dia nem ia sair, estava cansado do trabalho e ainda por cima tinha uma garoa chata na rua. Mas seus amigos contemporâneos insistiram tanto que ele acabou cedendo. A banda da noite era Mentecaptos. Já tinha ouvido falar bem, o que até o empolgou um pouco. Chegando no bar pediu a primeira dose de uísque vagabundo que a grana suportava. Já tinha tomado sete doses e nada do show. Algumas meninas o fitavam, mas ele não estava com espírito para isso. Além disso, pareciam umas tênias versão emo, se é que isso é possível. Esqueletos pintados com muita sombra. (Naquele tempo não existiam emos, autor idiota!) Porra, isso se chama “licença poética” para a masturbação mental.
De repente avistou, ao longe, uma garota muito parecida com Geórgia. Estava com um cara. E o cara era um ex-parceria do sua banda. Isso o enfureceu. Foi tirar satisfação, mas sem antes confirmar que realmente era Geórgia. “Porra cara, é assim que se tratam os amigos? Tu não sabes que larguei da banda por causa dela?”. Neto, o baixista da Rollover, riu. Geórgia acompanhava sem falar nada. Mas Jonas, acostumado a resolver esses problemas na base da violência, decidira não fazer dessa vez. Apenas olhou para Geórgia e voltou para o bar. Algumas doses depois já estava suficientemente bêbado para não conseguir levantar do banco. Tinha medo de se esborrachar no chão, mais uma vez. Mas eis que aparece Geórgia. “Tudo bem contigo, Jonas?”. Meio de soslaio, ele a olhou de baixo. “Acho que vou sobreviver, como sempre”. Ela ainda o tentou pegar pelo braço, mas foi bruscamente repelida. “O que tu queres? Já tornou minha vida um inferno. Quer me matar? É isso? Pois vá em frente!”. Nesse momento ele quebra uma garrafa de cerveja vazia e entrega para Geórgia. O bar para para assistir o espetáculo até que um segurança o tira do recinto na porrada. Levou tanto chute na boca do estômago que mal respirava. O largaram na rua, na chuva. Geórgia foi atrás. “E o Neto, aquele cínico filhodaputa, onde está? Por que não está com seu novo príncipe? Te garanto que ele consegue pó bom e barato”. Geórgia o tascou um tapa na cara e gritou: “Seu merda, te esperei durante anos enquanto tu ficavas por aí trepando com todas as garotas que cruzavam teu caminho e tomando toda espécie de drogas. Lembrava de mim nesses momentos?” “Eu sempre lembrei”. Dito isso, o aparentemente forte e imponente Jonas começou a chorar. Era um rio de lágrimas que se misturava com a chuva que aumentava gradualmente. Os bueiros sujos da cidade iriam provar, nesta noite, o gosto salgado de sua alma. Sem forças para levantar, Geórgia o pegou pelo braço e disse. “Eu só fiquei hoje com o Neto. Não quero nada com ele, tu sabes que te amo, mas sabes que precisas mudar. Esses anos todos me trouxeram maturidade, mas parece que você não acompanhou. Continua aí, bêbado, drogado e sem perspectivas de vida”. “Eu estou trabalhando, Geórgia. Em uma loja. Além disso, estou tentando me livrar do álcool e das drogas. É sério, estou decidido. Nada mais me importa a não ser você”. Ela não disse nada, apenas se aproximou e disse baixo. “Me beije”. As estrelas pareceram brilhar mais naquela noite.


Algum domingo de 1999

Com uma ressaca infernal, Jonas acordou. Como de costume, vomitou antes de escovar os dentes. Ainda mantinha os costumes matinais. Sua mãe bate na porta: “Jonas, o café está pronto? Estás vomitando novamente, filho?”. Ele não respondeu. O vaso é o altar dos bêbados e essa máxima ele levaria por toda sua existência. Foi para a cozinha e tentou comer. Não passava. Algo impedia e era algo mais do que sua simples gastrite ou refluxo. Era o nervosismo. Sabia que tinha o compromisso de ir atrás de Geórgia, custasse o que custasse. Foi até sua casa, mas já não morava mais lá. Perguntou para o vizinho: “Por favor, o senhor sabe para onde se mudou a família de Geórgia?”. “Eles estão na rua de baixo, em uma casa menor, número XX”. “Ok, obrigado pela informação”. Tão perto e tão distante. Chegando lá avistou ela na frente de casa, cortando uma bonita roseira que enfeitava o jardim. Sentiu vontade vomitar, como sempre acontecia nesses momentos de decisão. “Geórgia, tudo bem?”. Recebeu um seco “sim”, mas continuou. “Desculpe por ontem, eu não me controlei. Mas podes ter certeza que meus erros todos foram tentando acertar. Me iludi com a banda. O meu único amor está em ti”. Ela ficou olhando-o por alguns instantes e disparou. “Jonas, não temos mais nada em comum. Você continua o mesmo adolescente que conheci ”. Ela o olhou e disse gravemente: “Estou saindo. Vou morar com uma amigas em Santa Catarina. Quero estudar por lá, fazer um curso de especialização em modelagem”. “Quando você viaja?”. “Semana que vem”. “Podemos nos encontrar e conversar antes disso?”. Eles marcaram para o outro dia, às 20 horas, com a condição de que Jonas se mantivesse longe do álcool durante o encontro.



Segunda, 19 horas

Ele já estava lá. De cara. Nem no dia anterior havia ingerido álcool ou qualquer outra substância. Queria fazer tudo certo. Depois de muito pensar, decidiu propor noivado com Geórgia e a chamar para morar com ele. Mas para isso teria que convencê-la de desistir dessa viagem. Seria difícil, mas não impossível. Conversaram sobre o estágios de suas vidas atuais e foram se distanciando a cada palavra trocada. No fim, foram para um motel relembrar os velhos tempos. A explosão aconteceu, mas parece ter sido motivada apenas por um dos lados. O lado de Jonas.
A deixou em casa e sentiu que aquele seria um beijo de despedida. Definitivo. Já começou a traçar uma maneira de viver sem ela no pensamento. Seria impossível.


17 de janeiro de 2000

As coisas estavam ruins. Apesar de ter sido promovido como gerente da loja, Jonas não estava satisfeito no seu trabalho e não conseguia tirar Geórgia do pensamento. A essas alturas, ela já estava morando com suas amigas, em Florianópolis/SC. No último encontro ela havia deixado um telefone fixo para contato que, presumia-se, fosse de uma república ou algo do gênero. Depois de passar o dia inteiro trancado no quarto bebendo e fumando maconha, Jonas decidiu ligar. Só ouvir sua voz poderia lhe salvar. E ele ouviu. “Geórgia, eu preciso de ti aqui e agora. Estou morrendo aos poucos. Se não vier vou acelerar isso, eu juro”. Ela riu: “Jonas, você é um covarde e sabe disso. Não teria coragem de renunciar a sua vidinha medíocre de drogas e sexo fácil”. “Geórgia, eu só quero que tu saibas que estás muito errada com relação a mim. Eu te amo como nunca amei ninguém”. Ficou um silêncio mórbido no telefone e ouviu-se um baque, que pareceu de um banco tombando. No outro dia, sua mãe resolveu conversar com ele sobre os problemas que vinha passando. Batendo na porta não recebia resposta então chamou o pai do garoto para arrombá-la. A porta estava abaixo. No chão, junto de duas garrafas de uísque e um pacote de ansiolíticos jazia Jonas. Uma grossa corda adornava seu pescoço que pendia, suavemente, para o lado esquerdo. Do seu lado, quase encostado no seu rosto, um telefone fora do gancho.

Autor: Diego Rosinha


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